segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Resposta a Sabrina Fernandes - Tese Onze

 No mundo que a Senhora Soberba estudou (mestrado e doutorado) pela Carleton University, e graduação pela St. Thomas University, o que ela chama no seu Lattes de "sociologia ambiental" são questões preponderantes. Por aqui, na periferia do capital, as preocupações são bem outras! A fome, a miséria material da classe trabalhadora (precarização, terceirização e desemprego), por aqui, assistimos a morte cotidiana de pretos, pretas e pobres, violência urbana e policial, ataques profundos aos direitos humanos. 



É claro que a "questão ambiental" é sempre importante, mas temos aqui preocupações mais prementes e imediatas do que aquelas que se estudam nas universities gringas!
Aliás, na teoria da totalidade marxiana tudo cabe, por isso a Senhora Soberba encontra lastro em Marx e Engles para sustentar sua "sociologia ambiental". No entanto, é um grave equívoco teórico confundir a totalidade engelsiana marxiana com a tudologia sociológica que pensa dar conta da teoria dos velhos clássicos.
Quando se reveste a Teoria Social, que é feita aqui no terceiro mundo, de um figurino franco canadense e suas preocupações exógenas às nossas questões mais imediatas, não significa exatamente um erro estratégico, mas apenas um equívoco tático que confunde a luta da esquerda. 
Lá nas universities canadenses eles tem tempo pra pensar na "sociologia ambiental" porque não estão enfrentando um governo fascista, uma polícia racista, fome, miséria, desemprego e não são legatários de 400 anos de escravidão. 



Esse figurino francês que a Senhora Soberba veste, e a remissão teórica que faz aos velhos clássicos renanos escondem o cariz burguês e diversionista de sua tudologia sociológica. 
O ambiente é tudo, e ao mesmo tempo nada, uma preocupação teórica tão instigante quanto vazia dentro do contexto do materialismo histórico. A "natureza" é típica zona de conforto pra que quer se passar por teórico engajado, enquanto é materialmente incapaz de transcender os limites das orelhas de um livro escrito em uma língua que poucos brasileiros conseguem decodificar. 



Se o ecossocialismo é um tema interessante para quem tem o estômago cheio, pleno emprego, universidades ricas, pés quentinhos, futuro garantido; por aqui, onde cada dia é uma luta para se manter vivo, ele soa como um blábláblá retórico excelente para vender livros, mas insuficiente para enfrentar a realidade material. A questão ambiental no Brasil, não é causa da nossa crise, mas um de suas mais perversas consequências. Não precisamos de ecossocialistas (lá no Canadá eles se saem muito bem!), mas de socialistas que façam eco aos interesses materiais da classe trabalhadora: trabalho, comida, saúde, segurança. 
Quem erra na análise, erra na ação! Enquanto seguirmos dizendo amém para as teorias gringas e pensando que suas análises resolvem nossos problemas, continuaremos errando na ação e dando espaços para que mais confunde do que organiza a luta marxista. Se a Senhora Soberba entendesse a Tese 11, saberia que não precisamos que ninguém interprete o mundo pra nós, com suas categorias exógenas à nossa realidade, e só assim caberia a nós mesmos transformá-lo, por nossa conta!

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O que são instituições políticas? | Café Bolchevique, com Mauro Iasi

Aos 28:07 do vídeo

O que as crenças cegas nas instituições obscurecem é que por trás dessa ordem democrática, salva do seu caráter tosco e pitoresco, está a perpetuação de uma ordem profundamente anti-democrática".

Procurei transcrever o que pude. Caso alguém possa servir-se disto, aqui está. Peço desculpas por eventuais erros

TAIS BALDON (Nos comentários do vídeo)

" A ilusão inquebrantável de que a democracia seria uma ordem tão perfeita para corrigir desvios, que permitiria pelo seu próprio jogo, que excrescências como Trump e Bolsonaro chegassem ao poder e que seria forte o suficiente para corrigir seus erros permitindo que num novo processo eleitoral isto fosse revertido. Esta ilusão precisa ser analisada de perto, pois é perigosa, pode ser uma armadilha por entregar a ela uma expectativa de mudança ou de resistência. Quem derrotou o golpe na Bolívia foi a resistência da população, em especial dos povos originários e a mudança nos EUA foi o "black lives matter", como catalizador de um expressivo movimento de massas . O fato de terem sido canalizadas para o processo eleitoral, aqui nos importa.



As instituições são a expressão das contradições do movimento do real, ou da práxis humana, que sempre se dá dentro de uma ordem institucional dada - ou como dizia Marx no 18 Brumário, os seres humanos fazem a história MAS não como querem e sim dentro de certas circunstâncias ora, estas circunstâncias em que os seres humanos se encontram, formam o que Sartre chama de um campo prático inerte cuja práxis choca , rompe com isto no momento da fusão da luta. Isto busca como se manter, pq nesta fusão do grupo depois da classe em luta, existem forças que tendem a dissociar o grupo e revertê-lo novamente àquela condição de serialidade , que então luta para se manter. Ao fazê-lo, ele se organiza, distribui tarefas, judicializa disputas, organiza a forma como as divergências podem ou não podem se expressar, escolhe seus bodes expiatórios e decide como julgá-los, eliminá-los ou mantê-los - tudo isto é parte do momento da ORGANIZAÇÃO. Qdo tudo isto dá certo e o grupo não se reverte à dissociação , ele se INSTITUI. Aquilo que chamamos de "Instituição" é um movimento do real num certo momento , onde ele institui a resistência supostamente de numa nova forma. "Supostamente" pq a ação da humanidade pode, ao quebrar o que existe antes, recriá-lo de uma nova forma ou pode, conforme o pensamento revolucionário, romper o existente e criar um NOVO. Mas nem sempre isto acontece pq o ser humano só pode fazer a história com os materiais que estejam a sua disposição, criar o futuro atuando no presente, que traz em si todos os elementos do passado cristalizados numa determinada ordem. Isto é o que chamamos instituição, mas é um momento da práxis. A ordem institucional não tem o poder de definir a forma como as coisas vão se dar mas são o campo onde as contradições se inscrevem , se manifestam, para garantir uma nova forma considerada adequada . O processo de alienação , segundo Sartre, se expressa na medida em que estas instituições se cristalizam. E ao se cristalizar, objetivar, se distanciam das pessoas que as criaram e de suas intenções, ou seja, se burocratizam - é a alienação, é o retorno hostil , o estranhamento, o retorno ao produtor como uma força que o controla ao invés de ser controlada por ele. Ptt, o momento do qual estamos falando das instituições não é o momento em que elas protegem aquele conteúdo transformador que está em movimento, mas é o momento em que estas instituições burocratizadas impedem que o novo surja, elas produzem uma nova serialidade e consolidam uma ordem, elas são na verdade o principal instrumento de um novo campo prático inerte que luta para não se alterar, não o movimento da práxis que leva à transformação, mas luta para impedir isto. E ao fim são varridas nos momentos mais agudos. A eleição é uma fraude, mesmo sem desvio de conduta. A fraude é a fraude da representação, do poder econômico ditando as regras de onde se dão as eleições. Isto já é fraudar aquilo que seria, na substância originária do que seriam as instituições, a "vontade popular". O risco da democracia é o da vontade das maiorias , da "tirania da maioria" segundo G Hamilton - isto seria uma defesa da ordem republicana SOBRE a democrática. Assim, a solução de compromisso do republicanismo federalista é um sistema eleitoral , com pesos e contrapesos, que evite a vitória de uma força popular, seja na constituição de um corpo legislativo, seja na indicação de um presidente da república. Aquilo que se chama de instituição democrática nos EUA , é um sistema para evitar a vitória da maioria (a tirania popular). O colégio eleitoral não é eleito pela população, eles não foram votados para isto. Eles serão indicados pelas casas legislativas dos estados e têm, em princípio, a regra tradicional de votar nos candidatos que ganharam em seus estados. Há registros de apenas aproximadamente 180 votos "infiéis" - ptt , muito raro. Ocorreram várias vezes questionamentos jurídicos na Suprema Corte, sobre a pertinência do sistema que permite que o presidente mais votado não seja eleito. .. A armadilha nisto é acreditar que há uma ordem ética nisto ou a expressão da vontade popular. O que há é uma garantia da permanência das instituições ... O cumprimento da regra é a evitação da ruptura. Não é a vitória das instituições democráticas qdo abaixo do Equador se utiliza o método para reverter um golpe (como na Bolívia agora) mas o fazer valer a regra através de um mecanismo importado de um espaço onde as contradições são outras. Ptt, a "garantia institucional " é a garantia da ordem estabelecida pelos meios da ordem jurídica e política que está dada. A esperança na força das instituições é a esperança do gradualismo , daquilo que acha que os momentos de recuo são meros momentos passageiros que podem ser corrigidos com retomadas da linha da história no caminho que as instâncias democráticas garantem. O que é muito perigoso. Elas resistem às forças de emancipação ."

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O voto é uma ilusão da democracia

 Desde as últimas semanas vivemos o que muitos chamam de “a festa da democracia”. O nome é uma remissão ao direito garantido na Constituição brasileira na forma de um dever, o Artigo 14 da referida Carta de 1988. Ali diz que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. É o único vestígio, em nossa sociedade, de que todos sejam iguais perante a Lei! Apenas uma ilusão.



O Diário da última segunda-feira noticiava que, dos 21 vereadores eleitos, 10 vão legislar pela primeira vez, e outros três já exerceram a vereança. Apenas quatro mulheres! Menos de 20%, menos de um quinto da representação é preenchido pelas mulheres.

Muita gente de pele clara e descendentes de famílias tradicionais e de caciques da política local ou apoiados pelos setores mais reacionários empresariado regional. As pretas da periferia, nem fazendo o dobro ou o triplo dos votos da elite branca e masculina, conseguem sua vaga na “casa do povo”. Uma verdadeira mistificação.

Dizem que a culpa é do quociente eleitoral, e, sim, é verdade. Ele é um modo, um dispositivo do poder, para o próprio poder constituído reproduzir a si próprio. Reconduzir reiteradamente ao poder a elite branca e masculina que governa a cidade desde sempre; mudando nomes, mas não sua lógica interna, alterando a forma, para manter intocado seu conteúdo.

Nesses termos, então, cumprimos, no último domingo, o ritual da repetição bienal do sufrágio. Rito essencialmente alinhado ao Espírito de Tancredi, o notável personagem obra "Il Gattopardo" (O Leopardo), obra-prima em forma de romance, postumamente publicado, em 1958, de autoria do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), ao dizer: “É preciso que se mude alguma coisa para que tudo permaneça exatamente como está”. Mudam-se alguns nomes, para que o poder continue intocado, nas mãos de quem a sempre pertenceu, mas legitimado pela ilusão de uma grande “festa”, para a qual, as Ritas e Alices da periferia, não tem permissão de acesso.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 18 de novembro de 2020

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/a-ilus%C3%A3o-do-voto-1.2278095

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Democracia e serviço público

A qualidade do Serviço Público é um dos pilares de uma sociedade verdadeiramente democrática. A transitoriedade dos governos é a expressão da alternância de poder frente à perenidade do Estado. Nesse sentido, a estabilidade do Serviço Público é a garantia de que o Estado e a democracia permanecem fortes frente ao vai-e-vem dos governos, via de regra, inconstantes e suscetíveis às idiossincrasias ideológicas e ao sabor das incertezas do mercado.


No livro Estatais, Alessandro Octaviani e Irene Nohara explanam um panorama global em que nações economicamente ricas não prescindem do Estado para seu desenvolvimento e ação nos mercados. A China possui 150 mil estatais; Os Estados Unidos possuem 7 mil estatais; a Alemanha, 15 mil empresas públicas; a Coreia do Sul, trezentas; e o Canadá possui 100 empresas nas mãos do Estado.

A empresa estatal é a ação do Estado, é o braço empresarial público na produção de uma sociedade mais igualitária. São investimentos que não visam imediatamente ao lucro financeiro, mas, antes disso, ao bem-estar social de toda a coletividade e lá no fim, a riqueza econômica de toda a nação. São investimentos em infraestrutura, controle de bancos públicos, fomento à biotecnologia, no setor energético, em transportes, logística, mineração, telecomunicações, saneamento e muitos outros. Nesse sentido, todo ataque ao setor público é um ataque à democracia, ao desenvolvimento econômico e uma defesa de privilégios de grupos privados que aparelham o Estado.

Obviamente que existem também os privilégios antidemocráticos, são os “intocáveis”, segundo a última edição do Jornal Extraclasse. O Ministério Público e o Poder Judiciário concentram as maiores remunerações do serviço público. Poupados da reforma administrativa, juízes e promotores públicos gozam das maiores regalias salariais, com direito a auxílios, subsídios e privilégios.

No Brasil, os empregos públicos representam apenas 12,1% da força de trabalho ativa. O jornalista Marcelo Menna Barreto lembra que, ao contrário do discurso de "máquina inchada", a média de servidores do Brasil é menor que a maioria das nações desenvolvidas, segundo informações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial, ou seja, o funcionalismo público brasileiro é dos menores do mundo.

Por tudo isso, cabe reafirmar a importância do serviço público para o desenvolvimento social e econômico da sociedade. As empresas estatais são o braço empreendedor e empresarial do Estado na construção de uma economia forte e competitiva. A defesa do serviço público, a despeito dos ataques ideológicos dos interesses privatistas que querem privilégios para poucos, é uma bandeira ainda em construção, mas um caminho seguro dos que buscam, como dizia um slogan militar dos anos 1960, um “Brasil acima de tudo!”

Publicado originalmente no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/democracia-e-servi%C3%A7o-p%C3%BAblico-1.2270288


segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Rezando, queimando e passando a boiada

 


Nos últimos dias o país tem assistido a cenas assustadoras de boa parte do seu território ardendo em chamas. Uns, revoltados com a falta de controle do Governo Federal sobre as áreas devastadas; outros, justificando que tudo não passa de exagero e alarme da esquerda que faz oposição ao Governo. Em síntese, o que importa é que depois de queimadas, essas áreas ampliarão as zonas agricultáveis e para criação de gado. As queimadas, portanto, possibilitam que se vá passando a boiada.

E por que o Congresso Nacional não age em relação a isso? Ora, em torno de 250 deputados são eles próprios ruralistas ou recebem dinheiro (financiamento de campanha) vindos do setor agropecuário. No Senado, a bancada ruralista soma mais de 30 (eles próprios são proprietários de terra). O Senado supera a Câmara no que se refere ao valor das propriedades listadas. O valor médio no Senado é R$ 1,98 milhão, enquanto na Câmara é de R$ 570 mil. Nas duas casas, boa parte dos proprietários possui mais de uma propriedade rural. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é a maior frente mista atualmente existente, reunindo quase 50% dos membros de cada casa – 246 deputados e 39 senadores.

Pra que se tenha medida de como o arroz e a carne, que no Brasil não são alimentos, mas commodities, se valorizaram nos últimos anos, convém lembrar que a saca de arroz em 2015 valia R$36,00, hoje ela está valendo R$90,00. O quilo do boi gordo valia em 2015 R$4,50; hoje vale R$10,00. Em números redondos, quem planta arroz pode colher 150 sacas por hectare (1 safra por ano). Quem engorda gado pode produzir duas invernadas por ano, sendo uma na “soca” do arroz (a terra remexida depois de colher o arroz), sendo um animal por hectare, e cada animal engorda 1,5 kg/dia, por uns três meses.

Para se ter noção do rendimento disso em Reais, vou usar como exemplo o campus da UFSM, ele tem 1.863 hectares. Suponhamos que ele seja uma propriedade do agronegócio. Seria uma “propriedadezinha” minúscula se comparada aos gigantes do setor agropecuário. O maior proprietário rural do Congresso é o senador Jayme Campos (DEM-MT). Ele tem participação em propriedades que somam 43,9 mil hectares, todas no Mato Grosso. Já o senador Heinze, eleito em 2018, ex prefeito de São Borja e formado em agronomia na UFSM é dono de 1,6 mil hectares. Vou repetir, 1 milhão e 600 mil hectares! Dados colhidos no site De olho nos ruralistas (https://deolhonosruralistas.com.br).

Ou seja, uma área do tamanho do Campus da UFSM, minúscula se comparada com as propriedades dos senadores e deputados e seus financiadores), tira por ano 25 milhões de reais se plantar só arroz; 2 milhões e meio de reais a mais se combinar a lavoura com gado de invernar (se for gado de cria, são outros valores). Esses são os caras que representam a sociedade brasileira no Congresso e sustentam o Governo. É claro que eles não vão interromper as queimadas, pois eles lucram muito com elas; nem o governo, que lhes protege. Nunca tudo esteve tão bem!

Nesses termos, podemos perceber que se qualquer pequeno ruralista está nadando em dinheiro, imagina os tantos “Jaymes Campos” e os “Luis Carlos Heinzes” da vida! Não tenhamos ilusão, tanto faz, pra quem vende a saca de arroz no mercado internacional a quase 100 reais e o boi gordo a quase dois dólares o quilo, se caminhamos pra uma teocracia evangélica fundamentalista. Eles continuarão trocando de Hilux todo ano e rezando pro único deus que lhes importa, o deus mercado. O fim do estado laico também não lhes assusta, pois sempre estiveram e sempre estarão acima da Lei.

Diante disso, podemos constatar que a barbárie está só começando; por enquanto, o Brasil segue rezando, queimando e passando a boiada.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/rezando-queimando-e-passando-a-boiada-1.2263046

As Instituições estão funcionando?

 


No atual momento da sociedade brasileira, muito se tem discutido se as Instituições estão funcionando no sentido de garantir a democracia ou se estão capitulando frente a uma investida contra as garantias democráticas. Nessa discussão, encontrei um interlocutor que garante que elas estão sim funcionando plenamente. Embora o ataque a elas seja real, isso o interlocutor reconhece, a força das instituições tem sido justamente a garantia de continuarmos vivendo numa democracia.

Meu velho e querido interlocutor tem a impressão de elas estarem funcionando porque ele não é uma das mais de 10 mil mortes pela covid-19; porque ele não é profissional da saúde que trabalha sem EPI, porque sua avó ou neta não mora num acampamento do MST atacado pelo governo mineiro; porque não é professor da escola básica obrigado à precariedade do ensino remoto ou ao temerário retorno da voltas às aulas presenciais; porque seu filho ou filha não é balconista no setor comerciário severamente exposto ao contágio, porque não ficou preso sem provas por 580 dias, porque não foi seu neto menino que morreu sem ter recebido de volta o tablet tomado por um juiz parcial e corrupto; porque não depende do auxílio emergencial para se alimentar, porque não foi condenado por ser “integrante de grupo criminoso em razão de sua raça”.

De onde meu renomado interlocutor vê o mundo as Instituições parecem estar funcionando. Falo “parecem” à luz da história, em outros tempos as sociedades demoraram em perceber a corrosão das Instituições democráticas, e, quando perceberam já era tarde demais! A Itália levou 5 anos para imergir no fascismo; a Alemanha mergulhou nele em apenas 5 meses... Isso porque a crise nos anos 30 era mais aguda. Hoje, estamos imersos numa aguda crise humanitária, econômica e política. A profundeza do nosso abismo ditará o ritmo que nos levará ao fascismo aberto.

As Instituições pararam de funcionar desde muito tempo! Pontualmente, quando um deputado do “baixo clero” elogiou um torturador, facínora e abjeto, e não saiu daquela Casa preso. As Instituições hoje apenas reagem. O que meu querido interlocutor chama de funcionamento pleno das Instituições democráticas, em verdade, não se trata da ação delas cumprindo suas prerrogativas, de suas atribuições (justiça, saúde, educação, segurança), o que elas fazem é política! E o fazem em favor daqueles que as aparelharam ao seu favor e benefício. Assim, do ponto de vista da democracia, elas sobrevivem artificialmente, como se estivessem sufocadas por uma pandemia sem controle.

Da mesma forma que as vítimas arrebatadas pela Covid-19, as Instituições estão agonizando apenas à espera de um desfecho final. Negar isso não se aproxima da postura de um frio e lúcido analista como é meu interlocutor; pelo contrário, aproxima-se muito mais do negacionismo e do obscurantismo típicos dos que vêem nesse atual governo brasileiro, alguma possibilidade de futuro. Talvez nossa democracia não resista à Pandemia, e morra sufocada sem perceber que respirava apenas por aparelhos!

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/as-institui%C3%A7%C3%B5es-est%C3%A3o-funcionando-1.2252994

Os 100 anos de Florestan

 


Num 22 de julho, há exatos cem anos, nascia o filho de Dona Maria Fernandes, uma portuguesa imigrada para o Brasil aos 13 anos com o propósito de trabalhar nas lavouras cafeeiras do interior paulista. Depois de um tempo na dura vida rural migra para a Capital e emprega-se como doméstica em uma casa da classe média do Brás, ali engravida de outro empregado da casa. Para esconder a gravidez, muda de emprego. É nesse momento que nasce o pequeno Florestan.

O nome do motorista alemão que trabalhava na mesma casa em que ela, e por quem cultivou uma especial amizade, serviu de inspiração para o nome do próprio filho. A escolha da empregada desagradou a patroa, que era madrinha do menino. Para a patroa o nome Florestan seria mais adequado para gente de classe social mais elevada. Então passa a chamá-lo de Vicente. Assim foi chamado pela patroa o filho de Maria Fernandes. A família rica, da pequena burguesia paulistana, não admitiu que o filho da empregada possuísse um nome tão nobre, o mesmo de um nobre espanhol, personagem de "Fidelio" a única ópera escrita por Ludwig van Beethoven.

O filho de dona Maria, analfabeta, não conheceu o pai, ela foi mãe solo. Seu filho trabalhou desde os seis anos, foi engraxate e conheceu na própria carne o preconceito contra os pobres, a discriminação e o "ódio de classe". A história de Florestan, é a síntese da história de muitos "vicentes" que grassam pelo cotidiano ódio de classe brasileiro. Se Beethoven criou Fidelio, Florestan Fernandes construiu as bases da Revolução Brasileira.

Hoje comemoramos o centenário do seu nascimento, é um dos mais importantes intelectuais brasileiros! Sua teoria social denunciou que a desagregação do regime escravocrata abandonou os libertos à própria sorte, relegando-os às mazelas sociais mais degradantes. A história de sua mãe, e sua própria história, reverberaram profundamente na sua produção intelectual. O menino pobre que se transformou no maior sociólogo brasileiro é o resultado do próprio país que procurou compreender e explicar. Uma nação racista, excludente, misógina e muito desigual.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/os-100-anos-de-florestan-1.2245246

Legítima defesa imaginária

 


Na noite da última segunda-feira (22) o inquérito da Polícia Civil sobre a morte do engenheiro Gustavo dos Santos Amaral, em uma barreira da Brigada Militar em Marau, no norte gaúcho, em abril deste ano, inocentou o brigadiano que atirou no jovem de 28 anos. O delegado Norberto dos Santos Rodrigues entendeu que o policial confundiu o celular que o rapaz segurava, com uma arma. Por isso, para o responsável pela investigação, o que aconteceu naquele momento foi uma “legítima defesa imaginária”, sem nenhum indício de crime. Para o delegado houve um erro, uma série de coincidências infelizes, “uma tragédia, e ponto” aliado ao comportamento da vítima, que estava em pânico.

Procurei no Google uma definição do que fosse a tal “legítima defesa imaginária”: descobri que ela é também chamada de “legítima defesa putativa”, e remete ao fato de o autor imaginar estar em estado de legítima defesa, ao se defender de agressão inexistente. Então tudo fez sentido! O imaginário não se constrói no vazio, imaginamos com base nas vivências que temos, nas referências imagéticas que guardamos na memória, construídas na materialidade da sociedade em que vivemos.

A conclusão sobre a investigação desse crime revela todos os elementos do que conhecemos como “racismo estrutural”, aquele racismo que não se nota explicitamente, e por isso se passa desapercebido, que está nos interstícios da convivência, que é chamado de outros nomes, nunca de racismo, mas é preciso denunciar: é racismo em estado bruto!

Quando um delegado considera um crime de racismo (que é inafiançável) como injúria racial (com pena mais branda), isso é racismo! Quando chamamos de “mi-mi-mi” as reivindicações de pessoas cujos antepassados foram sequestrados em um lado do globo e levados para outro lado e obrigados a trabalhar por mais de 300 anos sem receber salário, isso é racismo! Quando um delegado branco, conclui que um policial branco atira em um homem negro segurando um celular por imaginar que ele está armado e representa “perigo”, isso é racismo!

Na conclusão do inquérito está condensada toda estrutura da sociedade brasileira. Desigual, violenta, escravocrata e extremamente injusta. O indício de crime é flagrante, o que o delegado considera “erro” e “coincidência infeliz”, nada mais que “uma tragédia”, é a morte de mais um trabalhador que morreu pela razão específica de que era preto, uma pessoa a mais na longa história do genocídio negro brasileiro. Se, “vidas negras importam”, de fato, a conclusão do inquérito da Polícia Civil deve ser denunciada como evidência concreta de racismo estrutural, pois sequer imaginamos a sua perversidade!

Publicado no dia 

Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/leg%C3%ADtima-defesa-imagin%C3%A1ria-1.2238075

domingo, 19 de julho de 2020

MARX - DURKHEIM - WEBER - Diferenças



Professor José Paulo Netto explica as diferenças metodológicas fundamentais entre os três principais clássicos da Teoria Social Contemporânea

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Diferença entre CAPITAL e CAPITALISMO



Breve vídeo explicando a diferença entre CAPITALISMO e CAPITAL
A crise estrutural do capital. István Mészáros. São Paulo: Boitempo, 2009

sexta-feira, 29 de maio de 2020

A fábula da quarentena

O tempo livre, decorrente da quarentena em isolamento social que muitos de nós estamos vivendo, têm permitido retomar leituras há muito tempo guardadas na memória da nossa infância. Reli as "Fábulas Completas" de Esopo, numa belíssima edição da Cosacnaify, com ilustrações de Eduardo Berliner. Foi revelador sobre o momento em que vivemos.

A fábula narra que houve uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou mas disse: "Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo." O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: "Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas". "Não tão rápido, amigo", disse o caçador. "E o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim".

Ela é o espelho da nossa realidade. Para retirar o Partido dos Trabalhadores do Poder (o Javali), a Lava Lato e a nova direita (o Cavalo) se uniram ao bolsonarismo (o Caçador). Para a nova direita vencer a eleição de 2018, foi preciso que Sérgio Moro prendesse Lula quando ele estava em primeiro lugar em todas as pesquisas e ganharia as eleições em primeiro turno. Era também necessário um candidato que, se vencesse, aceitasse trazer essa nova direita para dentro do poder. Foi o que aconteceu.

Depois de vencer o Pleito, Moro recebe como recompensa pela colaboração em vencer o Javali, o cargo de super Ministro da Justiça e da Segurança Pública. Em troca Moro se comprometia em blindar seu chefe, seu filhos e aliados, de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público em todas as instâncias e de todas as acusações.

Sem a aliança entre Moro, a Lava Jato e a nova direita com Bolsonaro, jamais o Cavalo e o Caçador teriam vencido o Javali. E essa aliança, como na Fábula, durou por um certo tempo. Agora, chegou o momento em que o Cavalo, já satisfeito com a ajuda do Caçador, pediu para que ele parasse de tutelá-lo, de dominá-lo. Moro não mais aceitou sujeitar-se ao bolsonarismo, com seus ministros terraplanistas, seu séquito militar e suas suspeitas de envolvimento com grupos milicianos. Moro demitiu-se, o Cavalo retirou o bridão.

A quarentena, que permitiu o tempo livre para ler Esopo, não deteve o desenrolar da História. Há poucos dias o Cavalo retirou de suas costas o Caçador e livrou-se de suas rédeas e de sua sela. A nova direita não precisa mais de Bolsonaro. Acontece que no mundo real, ao contrário da fábula, o Javali não está morto; e ameaça como um fantasma o cérebro e o coração dos vivos. Aos que sobreviverem ao coronavírus será permitido assistir a realidade superar a ficção. Fique em casa, lave as mãos. Será fabuloso!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 29 de abril de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/a-f%C3%A1bula-da-quarentena-1.2222284

Anti-intelectualismo


Nunca antes, na história da sociedade brasileira, assistimos a tamanha rejeição ao que estou chamando de intelectualismo, uma forma de conhecimento social e historicamente reconhecido como válido. Grassa pelo cotidiano, pelos meios de comunicação, pelas redes sociais uma verdadeira apologia à ignorância, ao anti-conhecimento, ao conhecimento suspeito ou infundado, à falsidade deliberada e à desinformação. Tenho uma hipótese: essa onda contra o intelectualismo está assentada sobre três eixos, que se retroalimentam e são o combustível da ignorância. 
O primeiro deles é o negacionismo, a negação da ciência como forma válida de conhecimento. A Ciência, desde a Ilustração, assumiu a prerrogativa de explicar o mundo aos homens, ela se diferencia dos saberes comuns por ser uma forma organizada de explicação, orientada metodologicamente e fundamentada empiricamente. O senso comum é também uma forma de conhecimento, porém não possui estrutura organizativa nem orientação metodológica definidas. Dessa maneira, não se rejeita ou refuta uma forma científica de conhecimento apenas negando-a com base no senso comum, mas apresentando em seu lugar algo que lhe substitua ou complemente, que seja organizado sistematicamente, com orientação metodológica clara e possa ser empiricamente demonstrado. Os problemas da ciência só se resolvem com mais ciência. 
O segundo eixo que sustenta o anti-intelectualismo é o obscurantismo. Ao negar a factualidade histórica e teorias científicas consolidadas os anti-intelectualistas propõem colocar em seus lugares pretensas verdades infundadas, narrativas obscuras e teorias conspiratórias que, longe de explicar racionalmente o mundo, produzem uma falsa sensação de cientificidade, que temerariamente flerta com a irreverência. O obscurantismo aparece, assim, como "politicamente incorreto", independente, insubordinado, questionador; quando, em verdade, não passa de uma forma irresponsável de divulgar ideias esdrúxulas e altamente deletérias à sociabilidade humana.
Por fim, o irracionalismo enfeixa a estupidez. Ao negar o conhecimento científico, a história factual, a Teoria da Evolução, a esfericidade da Terra, por exemplo, o anti-intelectualismo nega a próprio senso lógico sobre o qual se ancora a razão humana. O irracionalismo é uma forma de compreensão do mundo que se coloca contra a lógica factual. Por isso tantos trabalhadores apoiam um Governo que lhes tira direitos, acreditam numa política social suicida, que lhes expõe a um vírus mortal, apoiam o uso de um medicamento que traz sérios riscos à saúde, defendem a volta de um Regime ditatorial que lhes restringe a liberdade, pedem o fechamento de Instituições cuja função é lhes assegurar justiça social, representação política e garantias civis! 
Por tudo isso, penso que o anti-intelectualismo tem sido a principal marca da nossa sociedade, pelo menos desde quase uma década. Isso reverbera em toda vida social: na escola, na universidade, na política, na ciência, etc. Se tempos atrás pensávamos que hoje viveríamos na sociedade do conhecimento, cujo principal instrumento é o intelecto; hoje fica cada vez mais claro que estamos imersos na ignorância, no negacionismo, no obscurantismo e no irracionalismo, cujo principal instrumento está nas antípodas do conhecimento, o anti-intelectualismo.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 28 de maio de 2020
Vídeo no Canal do Youtube acrescentando comentários ao texto

terça-feira, 10 de março de 2020

Nito Padilha canta Jayme Caetano Braun

Lá pelos idos de 1989/1990 eu era estudante do Ensino Médio em Porto Alegre e na tentativa de arranhar alguns acordes no violão que meu pai tinha deixado (me roubaram em 1997) tinha aulas com o Toneco da Costa. Apesar da competência do Professor Toneco era flagrante minha incapacidade....

Percebendo meu interesse pela música regional ele me convidou para assistir ao lançamento de um LP para o qual ele tinha produzido os arranjos, em que os poemas e payadas do Jayme Caetano Braun
eram musicados e interpretados pelo Nito Padilha

Sempre gostei muito daquele disco. Hoje procurando pelas músicas no youtube, não encontrei nada, então resolvi digitalizar e disponibilizar a duas que eu mais gosto.

ÚLTIMA CLAVADA

PRIMAVERAS

Ficam aqui as imagens do LP autografado (isso era a selfie da época....)







Pitangas & Sabiás

Letra de Nilo Bairros de Brum
Música de Dorotéu Fagundes

EU SEI QUE UM DIA HEI DE VOTAR ÀQUELE RIO
NA PRIMAVERA DAS PITANGAS E SABIÁS
PARA FISGAR AQUELE PEIXE QUE FUGIU
QUANDO A MAROMBA SE PARTIU
LEVANDO UM SONHO DE PIÁ

EU SEI QUE UM DIA VOLTAREI A MERGULHAR
NAS ÁGUAS CLARAS DO MEU DOCE IBICUÍ
E LÁ DO FUNDO VOU TRAZER PRA TE MOSTRAR
AQUELE BRILHO NO OLHAR
QUE SE APAGOU QUANDO PARTI

ANDEI SEGUINDO PLANOS
QUE LÁBIOS CIGANOS
FIZERAM PRA MIM
ANDEI COLHENDO ENGANOS
NO CAMINHO INSANO
DE UM ANDAR SEM FIM
AGORA QUERO RETORNAR AO PONTO DE ONDE PARTI
MAS TUAS ÁGUAS JÁ NÃO SÃO TÃO CLARAS NEM SOU MAIS GURI

In: Clave de Lua e outras letras, de Nilo Bairros de Brum, p. 199

Prefácio - JAYME CAETANO BRAUN - 1990

I
AQUI ME PONHO A CANTAR 
AO COMPASSO DA MILONGA
A HISTÓRIA QUE SE PROLONGA 
DO HOMEM PENINSULAR
QUE UM DIA CHEGOU DO MAR
DAS BRUMAS DO SEU COMEÇO
E ME VIRO DO AVESSO
PRA REVIVER OS ANSEIOS
AS LUTAS E OS DEVANEIOS
QUE POR INSTINTO CONHEÇO
II
E SAIO TRANQUEANDO LOGO
COMO QUEM BUSCA UMA CRUZ
NO RUMO QUE ME PROPUS
AO PASSO QUE MONOLOGO 
E A MIM MESMO ME INTERROGO
PORQUE O INSTINTO ME DIZ
UM PAYADOR DO PAÍS
NADA MAIS QUE UM ÍNDIO BRONCO
COMO VAI FALAR DO TRONCO 
SE NÃO CONHECE A RAIZ
III
ENTÃO ME ENTRANHO NA HISTÓRIA
DA TERRA DA NOSSA GENTE
A SAGA DE UM CONTINENTE
INICIANDO TRAJETÓRIA
NOS RASTREIO DA MEMÓRIA
PAMPA E GAÚCHO IRMANADAS
AS PRIMEIRAS CLARINADAS
ANTECIPANDO COMBATES
O GOSTO AMARGO DOS MATES
ENTREVEROS E PATRIADAS
IV
POSSO VER BEM LONGE ATRÁS
MAS PERTENÇO AO MAIS ADIANTE
NO MILAGRE IMPRESSIONANTE
QUE SÓ O PENSAMENTO FAZ
PRECORRO AS SENDAS DE PAZ
NA VISÃO QUE SE DESCERRA
ESCUTO INÚBIAS DE GUERRA
ACORDANDO TOLDERIAS
E O TROPEL DAS CORRERIAS
DOS QUATRO CANTOS DA TERRA
V
OUÇO BADALAR DE SINOS
E MURMÚRIO E ORAÇÕES
MISTURANDO CANTOCHÕES
NOS ERMOS CONTINENTINOS
E AS PRECES DOS PEREGRINOS
DE OUTRAS PARAGENS TERRENAS
HÁ UM TAQUARAL DE MELENAS
QUE SE AGITAM DESPENTEADAS
E LANÇAS ENTREVERADAS
COM RELÍQUIAS NAZARENAS
VI
VEJO A CRUZ QUE FOI SINUELO
DE UM SONHO COMUNITÁRIO
REPETINDO OUTRO CALVÁRIO
NA SAGA DE COURO E PELO
PRA TORNAR-SE O PESADELO
DAS CORTES ULTRAMARINAS
E ALARGAREM-SE AS RETINAS
NO CONTATO COM A PAISAGEM
PORQUE O TUPÃ DO SELVAGEM 
DESCONHECIA BATINAS
VII
E DA BÁRBARA UTOPIA 
DOS MONGES AMERICANOS
PREGADORES E VAQUEANOS
DAS SENDAS DA GEOGRAFIA
AO LADO DA TOLDERIA
NASCE UM OUTRO MONASTÉRIO
ONDE APARECE O GAUDÉRIO
LIBERTÁRIO E PELEADOR
QUE VEIO PRA SER O SENHOR
DESTE GARRÃO DE HEMISFÉRIO
VIII
ESSA É A HERANÇA DE SEPÉ
NA VERDADE UM REI SEM TRONO
ALGUÉM QUE PENSA QUE É DONO
MAS NA VERDADE NÃO É
MAS TEM GARRÃO E TEM FÉ
NO DEUS PAMPA QUE ELEGEU
SÓ RESTA MORRER MORREU
DEIXANDO A NÓS A MISSÃO
DE DEFENDER ESSE CHÃO
QUE HOJE É NOSSO E ERA SEU
IX
SEGUINDO O TRANCO MACIO
DESTE URUGUAY QUE NÃO PARA
O PRIMEIRO TAPEJARA 
QUE A NATUREZA PARIU
MISTURA DE POTRO E RIO
DE PAYADOR E TROVEIRO
NO MEU REGISTRO PRIMEIRO
HÁ UM ALGO QUE NÃO DISTINGO
COMO É QUE ASSIM MEIO GRINGO
POSSO SER TÃO MISSIONEIRO?

Prefácio, de Jayme Guilherme Caetano Braun. In: TEIXEIRA, Gil Uchôa. Missões: Passado – Presente - Futuro. Porto Alegre: Talento Editorial Ltda, 1990. p. 45.
E no LP "Missões: passado, presente e futuro", de 1990



quinta-feira, 5 de março de 2020

Estação Primeira de Nazaré


Esse ano a Estação Primeira de Mangueira traz à Sapucaí uma oração. Seu samba-enredo é uma forma de rezar e dançar ao mesmo tempo, junta o sagrado e o profano numa mesma narrativa! Já no título do samba-enredo aparece um versículo bíblico: “A Verdade Vos Fará Livre”. E a letra, que conta essa “verdade”, é como uma oração que puxará a Escola no templo sagrado do samba, na festa profana do Carnaval.
Assim como as faces “cara” e “coroa” de uma moeda, o sagrado e o profano são dois pólos de algo que não se pode separar. Embora opostos e por vezes contraditórios, são indivisíveis, complementares. O carnaval mostra muito bem isso, ele é a festa, o impuro, o profano; mas ele é também o período anterior à “quaresma”, o tempo sagrado de purificação à Semana Santa. Não pode existir um sem existir o outro.
No enredo, a Estação Primeira é Nazaré, a terra sagrada, e seu Filho tem rosto negro, sangue índio e corpo de mulher. É um moleque pelintra, menino pobre e maltrapilho, nascido no Buraco Quente, um favelado, como seria Jesus se viesse ao mundo hoje. Filho de uma das tantas jovens mães Marias e dos carpinteiros Josés, desempregados ou precariados pelas perversas relações de emprego, trabalho e garantias sociais.
Hoje, estaria Ele a enxugar o suor de quem desce e sobe ladeira, encharcado de amor que não encontra fronteira. Ouvindo o choro sincopado de quem é silenciado pelo cara fardado. O encontraríamos nas fileiras contra a opressão e no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão. Sofrido e martirizado estaria dependurado em cordéis e corcovados e se perguntando: Mas será que todo povo entendeu o meu recado? Novamente com o corpo cravejado pelos profetas da intolerância, seria posto à Cruz, pois não sabem que esperança é luz que brilha mais que a escuridão.
Senhor, tenha piedade, olhai para a Terra, veja quanta maldade. Sua mensagem seria para todas as periferias, minorias, explorados, trabalhadores. Não permitam que pensem por vocês, ajam por vocês, decidam por vocês, não permitam que os enganem. Descubram os olhos. Diria Ele: “Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha nem Messias de arma na mão! Favela, pega a visão, eu faço fé na minha gente que é semente do seu chão”.
Assim, a Mangueira samba porque o samba é uma reza e se alguém por acaso despreza teme a força que ele tem. Muitos não o compreenderão. Irão julgar profano, insano, inventar mil pecados e restará saber de qual dos lados devemos ficar. Do Moleque pelintra de Nazaré, que nasceu de peito aberto, de punho cerrado, que fez da Cruz seu esplendor, guardamos o exemplo. O perdão, a compaixão, a devoção e a vontade de partilhar o pão. Devemos pensar em tudo isso, que é sagrado, mas como tudo tem dois lados, ficar do lado do samba também!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 05 de fevereiro de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/esta%C3%A7%C3%A3o-primeira-de-nazar%C3%A9-1.2199592?fbclid=IwAR1t_bLVeTJLLS9q76LF3RTEYmBPceivo8yLOjzvl5Q0g3ToxaUKqH2hYgo#.XjuAbIYNkbg.facebook

O veneno está na mesa


Enquanto nas redes sociais e no dia a dia a sociedade se divide entre apoiadores e opositores do Governo, coxinhas contra mortadelas, minions contra petralhas, direita contra esquerda, há uma coisa que unifica a todas e todos. Esteja do lado que estiver, uns mais outros menos, você vai tomar café da manhã, almoçar e jantar, e todo alimento terá um mesmo tempero.
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Nesse 2020, que começa efetivamente nessa semana após o carnaval, toda comida que chegará à mesa dos brasileiros e brasileiras terá um sabor especial: o veneno! Uma Portaria do Ministério da Agricultura, publicada há poucos dias, torna mais fácil a liberação de vários produtos tóxicos que chegarão a nossa mesa. O texto passará a valer a partir de 1º de abril, mas bobo mesmo é quem não tomar noção de sua gravidade.
Os que ganham dinheiro com essa liberação chamam os produtos de agroquímicos, defensivos agrícolas; quem alerta para o seu perigo chama de pesticida, agrotóxico ou simplesmente veneno. Independente do nome, eles estarão, mais do que nunca, temperando os alimentos dos vermelhinhos e verde amarelos.
A partir de agora, o Brasil passa a considerar apenas o “risco de vida” como indicativo de toxicidade. Desconsidera quaisquer outros riscos, como ao meio ambiente; ou à saúde humana, como irritações na pele, olhos, alterações genéticas que podem causar câncer. Ninguém escapa. Veganos comerão veneno no pimentão, no tomate, na batata, no feijão; onívoros comerão veneno na carne de boi e frango alimentados de grãos e medicamentos intoxicados; crianças comem no milho dos salgadinhos ou no trigo dos bolos e biscoitos, os adultos, na massa da pizza, na cerveja, no vinho, no macarrão, enfim, em qualquer receita nutritiva, saudável e envenenada.
Nunca comemos tanto veneno! Desde o ano passado foram liberados 467 novas substâncias sem uma avaliação mais criteriosa da Anvisa, da Pasta do meio ambiente, do Ibama e da Secretaria de Defesa Agropecuária. E esse número em 2020 vai aumentar muito. A justificativa para essas medidas é que tornam a agricultura brasileira mais competitiva e ampliam a concorrência do mercado brasileiro. E é sempre é bom lembrar que para o atual Governo a Nação está acima de tudo.
Assim, esteja você compartilhando nas redes sociais manifestações contrárias ou favoráveis a ele, você comerá muito veneno neste ano. A Portaria 43 do Ministério da Agricultura possibilitará que esse novo ingrediente passe mais ainda a fazer parte da mesa de todas e todos. Se coxinhas e mortadelas são alimentos tão diferentes, em essência chegarão à mesa com um mesmo tempero: sirva-se, o veneno está na mesa!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 04 de março de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/o-veneno-est%C3%A1-na-mesa-1.2206791

sábado, 4 de janeiro de 2020

Sociedade do Algoritmo


Lembro muito bem quando criei meu primeiro e-mail, nos meados dos anos 1990 e quando uma década depois, em uma aula da graduação, o professor anunciava o Google como um novíssimo site de busca. Naquele momento a informação parecia estar ao alcance de todas e todos. Ainda menino, estudante de uma escola pública na fronteira, quando precisávamos fazer trabalhos escolares nos reuníamos, via de regra, na minha casa. Filho de professora, na estante da minha Madrinha tinha a Barça, a enciclopédia que reunia todo conhecimento científico, tudo que por ventura precisássemos para o trabalho da escola estava ali naquela coleção de livros!
De que maneira esses dois momentos se relacionam?
Ora, nas últimas duas décadas a Internet nos apareceu como a democratização do conhecimento e da informação. Se lá na fronteira, há três ou quatro décadas, eu e meus colegas tivéssemos acesso à Web, todas e todos teríamos igualmente acesso ao conhecimento e a informação e não precisaríamos mexer nos livros da estante. Essa tendência, contudo, não foi exatamente o que aconteceu. Pelo contrário, parece que hoje, na medida em se amplia o acesso, se amplia também uma espécie de seleção, de filtro pelo qual passa a informação até chegar até cada um de nós: e o nome disso é algoritmo. Ele é um artifício da inteligência informacional que decide e determina antes que saibamos ou queiramos, o que veremos, saberemos, quereremos ou odiaremos.
Um caso exemplar disso está no filme “Privacidade Hackeada”. Redes sociais criam, sem que percebamos, um teste de nossa personalidade com base em cinco principais sentimentos: abertura a experiências, responsabilidade, extroversão, agradabilidade e irritabilidade. Em conjunto, esses traços dividem as pessoas em diferentes tipos de personalidade. O algoritmo é extremamente preciso. Com dez ingênuas curtidas nossas a postagens de nossos amigos ele é capaz decifrar o tipo de pessoas que somos, com mais probabilidade de acerto que nossos colegas de aula ou de trabalho; com 150 curtidas sabe mais sobre nós do que nossos pais; e com 300 despretensiosas curtidas compreende melhor nossa personalidade que nossa ou nosso parceiro (quiçá nós mesmos!). Isso sem considerar que nosso rastro digital é muito mais amplo do que apenas likes ou deslikes.Imagem
Assim, toda e qualquer informação que nos chega, ou não chega, tem por base essa triagem digital chamada algoritmo. Não vemos tudo, como a internet fazia parecer no início, mas apenas aquilo que o nosso algoritmo selecionou para nós, formando uma verdadeira bolha. Aquela promessa de mundo digital irrestrito e totalmente acessível que sonhamos está amputado por um pequeno recorte que emoldura as informações que a nossa própria preferência ou repugnância configurou.
Somos, neste cenário, mais desinformados e menos conhecedores do que os leitores da Barça dos anos 70 e 80. Vemos o mundo por uma fresta pensando que vemos o mundo todo! Só nos aparece nas redes sociais aquilo que, sem que percebamos, está configurado para nos aparecer. Os algoritmos dessas redes são como um buraco no chão, quanto mais fundo mergulhamos nelas mais fechada é a visão que temos do céu, embora sempre pensemos que aquele pequeno pedaço é o céu inteiro. A promessa da sociedade do conhecimento se realizou de modo inverso, vivemos em bolhas de uma ignorância artificial, principal característica da sociedade do algoritmo.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 30/12/2019
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/sociedade-do-algoritmo-1.2192378