sábado, 27 de fevereiro de 2016

Compreender para transformar

Para transformar o mundo, interferir nele, mudar hábitos de consumo, de convivência, criar um ambiente melhor para viver, é preciso antes conhecê-lo. Mas como se faz isso? Ora, chamamos isso de Ciência! A ciência é a linguagem pela qual a sociedade do nosso tempo expressa o conhecimento sobre o mundo à nossa volta.
Em um dia desses, em uma aula, percebi duas alunas sentadas lado a lado, mas que ao invés de interagirem ali mesmo, o fizeram por meio de seus mobiles. Prescindiram de uma comunicação direta, real, física e estabeleceram uma comunicação virtual. Naquele instante ingressei numa viagem em busca dos caminhos que possibilitaram aquela comunicação. Pensei em quantos processos existem por trás de uma simples mensagem, ou de uma chamada, ou de uma curtida... para conectar um mobile a outro as duas jovens implicou em uma ciranda de consumo que envolveu pelo menos sete marcas: Sansung, Nokia, Vivo, Claro, Whatsapp, Facebook, Instagram. Um simples click significa um ato de consumo que implica em uma ampla cadeia de relações sociais e econômicas que em nossas ações mais e cotidianas e corriqueiras, sequer dimensionamos.
Outro exemplo: o Brasil exporta carne, grãos e seus derivados. Apenas aparentemente. Ao fim e ao cabo exportamos água. Sim, água! Quando exportamos 1kg de carne bovina estamos exportando 15 mil litros de água, para 1 Kg de frango são 4 mil litros, para 1kg de arroz são 3 mil litros, para 1Kg de milho são mil litros. Ou seja, a água é a commoditie brasileira mais exportada, embora não apareça assim.
Conhecer estas relações, estas incontáveis conexões é sair da impressão imediata que temos das coisas e de nossas ações quase compulsórias e à primeira vista inocentes, e alcançar a essência do que vemos, somos, fazemos e pensamos, compreendendo profundamente nossas motivações para agir, pensar e sentir de determinadas formas.
Sair do nível imediato é alcançar a essência fundante e profunda de nossa vida social. É a isso que chamamos de “conhecimento”. Conhecer é ter a ciência, estar ciente da essência dos fenômenos, das infinitas composições de nossas ações e dos eventos que compõem a nossa vida social.
É a isto que o antropólogo Roberto DaMatta chama de “sobredeterminações”. Assim entendidos, os eventos humanos são sobre determinados, no sentido de que não podemos isolar suas causas e motivações como fazem os cientistas da natureza. O conhecimento para os cientistas da sociedade é ter consciência das sobredeterminações. E sabê-las é a única forma de nos conduzirmos no mundo de forma autônoma, de ser sujeito consciente do que pensamos e do que fazemos. Mas isso, como se sabe, não é uma tarefa fácil.

É por essa razão que devemos saltar do imediatismo de nossas ações e percepções, e procurar saber o que nos media e nos determina a ser o que somos, a fazer o que fazemos, e pensar o que pensamos. Afinal, se toda a aparência de alguma coisa ou de algum fenômeno, revelasse a essência do que realmente é ou significa, todo conhecimento e toda ciência seria desnecessária. Se até agora nos preocupamos em transformar o mundo, por ora percebemos que, ao mesmo tempo, é preciso interpretá-lo, conhecê-lo. Mãos à obra! (publicado originalmente no Espaço Ideias - Diário de Santa Maria, 27 e 28 de fevereiro de 2016) (http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/noticia/2016/02/compreender-para-transformar-4984499.html)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Crescimento e desenvolvimento

Analisando os noticiosos e discussões acadêmicas podemos perceber que há uma visível confusão entre estes dois termos quando tratamos de assuntos econômicos. Realmente são dois termos muito próximos e até intercambiantes, porém em um esforço de precisão semântica é necessário fazer uma precisa distinção.
O primeiro deles está muito mais relacionado com uma concepção economicista de verificação de o quanto uma sociedade ou uma nação ou uma corporação ampliaram seus índices de riquezas, seus ganhos, seus lucros, enfim tudo aquilo que compõe seu patrimônio e lhe dá forças para agir no mercado frente às outras instituições, governos, sociedade civil, com quem interagem.
Já a ideia de desenvolvimento é muito mais ampla. Nela o que está no centro não são os números, os índices, as taxas, mas os seres humanos. Não é portanto apenas uma medida quantitativa de mensuração e contagem da realidade social, mas sim um indicativo muito mais humanizado para apontar a qualidade de vida dos números de carne e osso, das pessoas que estão na base dos percentuais. Não podemos portanto confundi-los sob pena de fazer uma leitura confusa da realidade.

Por vezes acreditamos que a capacidade de uma sociedade em gerar produtos, mercadorias, está relacionada com seu desenvolvimento humano, mas isto nem sempre acontece. O crescimento econômico traz consigo seus produtos, e com eles, o aumento da expectativa de vida, maior tempo livre. No entanto a expectativa de via aumentou apenas em determinadas partes do mundo,  enquanto em outros lugares outras pessoas pagam esta conta. Nunca antes na história humana houve tantos miseráveis, em números proporcionais e absolutos: perto de três bilhões de seres humanos passam fome, sede, privações, mutilações, migrações, deserções. O tempo livre estendido é para poucos, pouquíssimos! cada vez mais as pessoas trabalham em dois ou três empregos, e o tempo que lhes resta está colonizado pela indústria do lazer capitalista. Desenvolver-se é na verdade reverter este quadro, e usar os benefícios do crescimento econômico, social e tecnológico em benefício de todos os seres humanos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Unisquina

Desde a reforma universitária de 1997, levada a cabo pelo então Ministro Paulo Renato de Souza, tivemos no Brasil a liberação quase total do Ensino Superior como mais um nicho de negócios do capital. Desde então tem-se constituído no Brasil uma série de instituições que tratam da educação superior, como se ela fosse um grande negócio. Os índices mais recentes apontam que uma em cada dez matrículas no ensino superior está vinculada ao setor privado.
Em 2013 formou-se no Brasil o maior conglomerado do setor da educação privada do mundo. A fusão dos dois maiores grupos de educação atuantes no país resulta para eles um faturamento anual de 4,3 bilhões de reais, pagos pelos seus um milhão de alunos. Todos eles na expectativa de uma formação melhor para o mercado de trabalho. Para os gestores, a expectativa é bem outra, a educação transforma-se apenas em uma commoditie que já pode, devido aos seus altíssimos índices de lucratividade, figurar entre as ações negociadas no IBovespa, a bolsa de valores de São Paulo. Assim como as maiores, outras instituições de menor expressão também buscam seu espaço no mercado da educação privada.
Esse movimento devastador para o ensino superior de qualidade, chancelado pelo próprio Estado, deu origem a toda esta série de pequenas “universidades”, com suas unidades espalhadas em esquinas estratégicas dos centros das cidades, malocadas em pólos de outras instituições de ensino e até em shopping centers. Nestes lugares os professores são barbaramente explorados, em condições de trabalho e emprego extremamente precárias, onde os alunos recebem a formação que estes professores precariados e ultra explorados lhes podem fornecer.

Ao tratar a educação como um negócio confunde-se acesso com massificação.  E este é um erro político que nenhum governo pode cometer ou permitir. Desenvolver programas de acesso ao ensino superior, por meio de bolsas ou financiamentos é muito válido, porém estas estratégias não podem transformar a educação em mercadoria nem substituir ou vir em detrimento de investimentos no ensino superior público, gratuito e de qualidade. 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Trabalho invisível?

Tenho ficado espantado com algumas palavras que tem aparecido no vocabulário relacionado ao trabalho contemporâneo. O cooperativismo, o empreendedorismo, o trabalho voluntário, e o trabalho virtual. Todas elas são formas atenuadas de denominar uma relação social bem mais profunda: o próprio trabalho, velho conhecido, que aparece menos evidente, mas nunca invisível quando matizado com novos tons pela sociedade capitalista mercantil.
Um trabalhador não é necessariamente um  sujeito formalmente vinculado a um contrato de trabalho com uma empresa. Ser trabalhador hoje é necessitar vender sua capacidade laboral e criativa para consumir e existir. Ser trabalhador, na gramática do capital, é possuir a pseudo liberdade de escolher, ou a ilusão de não se submenter a ele, podendo entrever, nesta relação, a riqueza da liberdade, mas estar escravizado sob o fardo da necessidade.
O grande desafio do trabalho hoje é realizá-lo dentro de uma dinâmica social que nos amortece, nos angustia, nos fragiliza, pois o capitalismo não é só uma relação econômica, mas uma forma cultural que nos reduz a seres do capital, incluindo todo o conjunto da nossa existência. Isto é, como nos vestimos, como nos relacionamos, como nos comportamos, como pensamos, e como trabalhamos.
Não há de fato nenhuma novidade ou invisibilidade nestas formas sempre mais suaves de denominar o trabalho. A não ser pelo fato de se constituírem como ampliação das formas geradoras de valor, através do escondimento do valor aparente, subtração do valor aparente, gerando valor sob a aparência de um não valor, ampliando constantemente os mecanismos de exploração da força de trabalho.

Sempre em favor da capital, não há nenhuma forma de cooperação em favor do seu real enfrentamento. Da mesma forma, o empreendimento é uma falácia perigosa que esconde a incapacidade do dito “mercado” de incorporar a força de trabalho disponível. Voluntariado é um ato nobre que nada se parece coma forma como tem sido pensado. E virtual é apenas um eufemismo que leva para o outro lado da tela plana as verdadeiras formas de exploração do mundo real.