domingo, 25 de outubro de 2009

Mauss e Nietzsche


"Na baixa Iadade Média, onde de fato a Igreja era antes de tudo um amestramento, caçavam-se por toda parte os mais belos exemplares de 'bestas loiras'. 'Melhoravam-se', por exemplo, os nobres alemães. Mas com o que parecia em seguida um tal alemão 'melhorado', seduzido para o interior do claustro? Com uma caricatura do homem, com um aborto. Ele tinha se tornado um 'pecador', ele estava em uma jaula, tinham-no encarcerado entre puros conceitos apavorantes... Aí jazia ele, doente, miserável, malévolo para consigo mesmo; cheio de ódio contra os impulsos da vida, cheio de suspeita contra tudo que ainda era forte e venturoso. Resumindo, um 'cristão'..."

NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Crepúsculo do ídolos. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, 2000. p. 52.
Os impulsos da vida. É contra eles que lutamos desde que nascemos. Somos amestrados desde muito tenros a sublimá-los. A dominá-los. Vivemos sob uma gramática que enquadra corações e mentes. Educa nosso corpo (Foucault, 1977) e nossos sentimentos a viver sob a égide do medo.

"Mas todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem. os gritos são como frases e palavras. É preciso emití-los, mas é preciso só porque todo o grupo os entende. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É ssencialmente uma ação simbólica." MAUSS, Marcel. Antropologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática 1979, p.153.

É imperioso compreender quem somos, tudo aquilo que nos parece familiar e conhecido, na verdade, nada mais é do que pura "expressão obrigatória de sentimentos" MAUSS, 1979.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Batendo água"


“Batendo água”.

Ao observar os shows de e César Oliveira e Rogério Melo “O campo”, e Luiz Marenco “Identidade”, na EXPOFEIRA de Santa Maria 2008, quando da minha realização de field-work para a dissertação, atribuí muita importância a esses eventos, na medida em que são os grandes ícones da expressão da música gaúcha atualmente. Luiz Marenco foi ganhador do Prêmio Sharp de Música nos anos noventa, e a dupla venceu o mesmo prêmio (agora com o nome de Prêmio Tim de Música) em 2007. Tais premiação lhes conferem reconhecimento para além dos limites da música regional.
Os shows foram realizados dias 11 e 12 de outubro, dentro da 41ª Exposição Agropecuária de Santa Maria, dentro do Centro de Eventos da UFSM. O público, na maioria jovens universitários, lotou o espaço de um campo de futebol para assistí-los.
Em determinado momento do show do dia 11 de outubro, Luiz Marenco exclama “de vez em quando eu vou pra fora encher os olhos de campo”. Através das letras e da construção do cenário, os artistas invocam suas “identidades” e suas “raízes” no campo.

Um sul de verdade campeia em meus olhos, de bota e bombacha, montado a capricho.
(...)
É o Rio Grande gauchada amiga, de bota e bombacha tapeando o sombreiro, dobrando os pelegos tapados de terra! É um quebra-costela de atorar ao meio! É o sul mais campeiro que temos na vida! É a nossa porfia de prosear no galpão!
(Mauro Moraes e Luiz Marenco. Álbum “De Bota e Bombacha”, de Luiz Marenco e José Cláudio Machado).


A cena do campo, descrita na letra da música, bem como a leitura feita da identidade gaúcha, por parte de quem a escreveu, me parece muito apropriada à identidade do gaúcho nos dias atuais. Mauro Moraes, através da voz de Luiz Marenco, descreve “um sul de verdade”, passando como um filme diante dos olhos dos gaúchos de hoje. Esse gaúcho “de bota e bambacha, montado a capricho” se apresenta projetado diante dos olhos, através da imaginação de quem ouve a música. Ao final do show, entrevistei Marenco em seu camarim. Pilchado em tons de cinza, aspecto rústico de um peão, com um grande chapéu à cabeça, barba e cabelos longos, contrastavam com com a voz terna e gestos suaves de um artista. Perguntei-lhe o que o inspirava e como era “encher os olhos de campo”?

"Vou matar um pouco a saudades. Carregar os filhos, essas coisas.
Tchê, acredito eu, por ser espírita, que somos um meio, uma comunicação para algo, e no momento que estamos neste nível, de bem com as coisas, de bem com a vida, de bem com os filhos, de bem com a família, de bem com os amigos, enfim de bem com a vida, estamos ao alcance do nosso próprio interior e de demonstrar este sentimento.
Eu gosto muito de ir para fora, e quando vou, sempre me acontece isso, me surgem as melodias. É lá na campanha, naquele meio, naquele universo que eu amo tanto. Não que eu não ame a cidade, mas a campanha me faz brotar, me faz abrir este caminho para surgir algo. O universo do campo é maravilho, é tão calmo. Lá não se vê tanta maldade como se vê por aqui diariamente."


A música que encerrou seu show, foi também a mais aguardada. “Batendo água” foi cantada em coro por quase todo o público presente. Era visível a emoção a que o público foi levado durante a sua execução. As músicas e suas letras, de um modo geral, não se referem a acontecimentos épicos, não são narrativas de feitos e de fatos heróicos. Não falam do passado. Os tempos verbais são, via de regra, em sua maioria conjugados no tempo presente. As músicas celebram o “hoje”, o “agora”. O cotidiano. Não celebram o extraordinário, mas sim, o mais corriqueiro acontecimento. A cena descrita em “Batendo água” não é uma narrativa, mas a descrição de uma quadro. Também não de uma fotografia, pois há nela movimento e som. A música descreve uma cena que poderia transcorrer em poucos segundos, e dessa forma, poderia ser “vivida” através da imaginação de quem a ouve.

Meu poncho emponcha lonjuras. Batendo água.
E as águas que eu trago nele eram pra mim.
Asas de noite em meus ombros. Sobrando casa
Longe "das casa" ombreada a barro e capim.
Faz tempo que eu não emalo meu poncho inteiro,
nem abro as asas da noite pra um sol de abril.
Faz muitos dias que eu venho bancando o tino
das quatro patas do zaino. Pechando o frio.
Troca um compasso de orelhas a cada pisada.
No mesmo tranco. Da várzea que se encharcou.
Topa nas abas sombreiras, que em outros ventos
guentaram as chuvas de agosto que Deus mandou.
Meu zaino garrou da noite o céu escuro,
e tudo o que a noite escuta é seu clarim.
De patas batendo n'água depois da várzea.
Freio e rosetas de esporas no mesmo trin.
Falta distância de pago e sobra cavalo.
Na mesma ronda de campo que o céu deságua.
Quem tem um rumo de rancho pras quatro patas
bota seu mundo na estrada batendo água.
Porque se a estrada me cobra, pago seu preço
e desabrigo o caminho pra o meu sustento
Mesmo que o mundo desabe num tempo feio,
sei o que as asas do poncho trazem por dentro.
(Luiz Marenco)

É a imagem de um homem à cavalo, a trote, debaixo de chuva. Vestindo um poncho encharcado, onde as águas retidas por ele representam a sua experiência. O poncho é a sua casa e é carregada sobre os seus ombros. Ao erguer os braços, forma a imagem de um grande pássaro com suas asas abertas. Enfrenta o frio sem parar há dias. A música é ritmada em um chamamé1, compasso melódico que sugere o ritmo de um bater de cascos de um cavalo ao trote. A expressão “tocando orelhas”, quer dizer desconfiado, atento. O animal mantém uma das orelhas posta à frente enquanto coloca a outra à lateral. Trocando-as a cada instante. Na música, o animal “troca um compasso de orelhas a cada pisada”, melodicamente sobre a vegetação úmida. A relação entre a melodia, a letra da música e a cena descrita atinge seu ponto máximo nos versos “Meu Zaino garrou da noite o céu escuro, e tudo que a noite escuta é seu clarim. De patas batendo n'água depois da várzea. Freio e rosetas de esporas no mesmo trin.” O cavalo é de um tom de cor escura e se confunde com a noite. O único som audível é seu bater de cascos. A barbela do freio2 produz o som estridente de metal atritando com metal, ao mesmo tempo, ao mesmo compasso, e da mesma forma que fazem as rosetas das esporas3. O público é envolvido pelo ritmo musical que acompanha o trotar de um cavalo e simultaneamente, através da letra, são produzidos a imagem e os sons da cena descrita.
Essa produção de imagens rápidas e instantâneas, estreitamente vinculadas ao cotidiano do gaúcho campeiro, é uma das estratégias bem sucedidas das músicas que ganham o interesse do público. Há todo um vocabulário específico utilizado nas letras, e que não será entendido por um público que não tenha, mesmo que minimamente, contato com o universo rural. A música só fará sentido se for verossímil. Se parecer-se com a verdade. Não que todos ali tenham vivido uma situação semelhante àquela, mas todos ali são capazes de compreender o significado daquilo, de realmente sentir-se parte daquele universo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Diálogo com Anthony Giddens


A tradição é um padrão de comportamento ao qual os indivíduos estão pré dispostos a agir. A tradição se mantém através da repetição, da continuidade, do costume, da crença de um “desde sempre”, por vezes imemorial e atemporal, porém lógico e verossímil, que age sobre os indivíduos, dando-lhes sentido e significado à sua história, seu passado e seu lugar no mundo, ou seja, situando-o em tempo e espaço.
A tradição é um paradigma, pressupõe continuidade, estabelece algo a ser seguido. É como acreditar que algo “sempre foi assim, então deve continuar sendo assim”. Para Anthony Giddens (2002), “muitas das coisas que consideramos tradicionais, alicerçadas na neblina dos tempos, não passam, na verdade, de produtos do último par de séculos, e por vezes são ainda mais recentes.” (p. 46). Para o autor, a palavra tradição origina-se no latim, do verbo "tradere" (traditio, traditionis) que significa trazer, entregar, transmitir e ensinar, “... ou dar qualquer coisa a guardar a outra pessoa.” (p. 47). Assim, pode-se entender o conceito de tradição como típico do mundo moderno, sendo produto de elaborações conscientes e inconscientes forjadas por sujeitos e por grupos, pressupondo sempre relações de poder. Dessa forma, transmite usos, costumes, crenças, maneiras, traços culturais, símbolos, idéias, histórias e memórias, que são transmitidas pelas pessoas por gerações através das interações sociais, das manifestações artísticas, e introjectadas por estes indivíduos e suas culturas como padrões ideais de ação e comportamento.
Um texto caricato que circula pela WEB, descreve de forma ilustrativa, um exemplo de como se pode notar a formação de um padrão de comportamento, que através da reprodução de um costume, se pode pensar em tradição:

Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo centro puseram uma escada e sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jato de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros enchiam-no de pancada. Passado mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar da tentação das bananas.
Então, os cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo rapidamente retirado pelos outros, que lhe bateram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo não subia mais a escada. Um segundo foi substituído e o mesmo ocorreu, tendo primeiro substituto participado, com entusiasmo, na surra ao novato.
Um terceiro foi trocado, e repetiu-se o fato. Um quarto e, finalmente, o último dos veteranos foi substituído. Os cientistas ficaram então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam a bater naquele que tentasse chegar às bananas. Se fosse possível perguntar a algum deles por que batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria:
“Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui...”


Giddens responde à pergunta feita ao final da fábula: “O que torna qualquer tradição diferente é o facto de que ela define uma espécie de verdade”. Todos os indivíduos da fábula tinham aquele comportamento como uma verdade estabelecida, irrefutável. Agiam de forma tradicional. E “para alguém que age de acordo com uma prática tradicional, as perguntas sobre a existência de alternativas não fazem sentido.” (2002, p. 49).
E é justamente buscando essa continuidade em relação ao passado, que surge o culto ao gauchismo, ao tipo social humano tradicional regional gaúcho, que é assunto que passo a tratar no próximo item. Estudar essas tradições, suas manifestações, pode ser bastante elucidativo para entender as interações humanas, e as relações dos indivíduos com o seu passado. Entendo que não se pode desvincular tradição e história. Mesmo as tradições inventadas, utilizam a história para se legitimar, justificar sua verossimilhança, validar suas ações, dar solidez às suas identidades, dar sentido à vida, “nenhum de nós terá uma razão digna para viver se não tiver uma causa por que valha a pena morrer.” (Giddens, 2002. p. 56).

GIDDENS, A. O mundo na era da globalização Capítulo 3. Lisboa: Editora Presença. 2002

Diálogo com Marshall Sahlins


Diálogo com Sahlins

“O que os antropólogos chamam de estrutura – as relações relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto histórico” (Sahlins, 1987)

"A História é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, (...) esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. (...) a cultura é historicamente reproduzida na ação." (Sahlins, 1987. Introdução) Então, se a cultura é historicamente reproduzida na ação, ela é também alterada historicamente na ação. E aquilo que se vê (estrutura) é também um objeto histórico.

A cultura gaúcha, compreendendo o gaúcho como um tipo social humano, nasce com o povoamento do sul da América pelo homem branco descendente de europeus. O mito gaúcho, ao qual me refiro, e que produz representações do passado, no presente, existiu dentro de um tempo determinado. Sua constituição se deu desde meados do século XVII, com a colonização branca, até metade do século XX com a modernização agrária sul-brasileira, promovida pela industrialização e a urbanização, com todos os seus desdobramentos. Este intervalo de tempo que compreende pouco mais de três séculos sedimentou a cultura e a etnicidade do gaúcho. Sobre este passado se produziu uma identidade e sobre esta identidade se produz, hoje e desde então, representações sobre um passado mitificado, heroicizado, e idealizado num mito de origem. No entanto o gaúcho não desapareceu do seu território. Não é um ser extinto. Ele possui uma atualidade, um presente. E é sobre este presente que fundo minha investigação, pesquisando que diálogos realiza com aquele passado idealizado. Quê representações e universos simbólicos constrói quando reporta-se àquele passado. Apontar as sociabilidades criadas, no presente, a partir desta identidade.
Marshall Sahlins, em Ilhas de História (1987), traz contribuições importantes para uma proposta interdisciplinar entre a antropologia e a história, em que medida o conceito antropológico de cultura é importante para o estudo da história e vice-versa, ou seja, qual a importância da história para o estudo da cultura.
“o problema agora é de fazer explodir o conceito de história pela experiência antropológica da cultura. As consequências, mais uma vez, não são unilaterais; certamente uma experiência histórica fará explodir o conceito antropológico de cultura – incluindo a estrutura.”(Sahlins, 1987)

O autor discute a relação entre estrutura e evento. Não se analisa apenas o fato acontecido mas sim a maneira como ele aconteceu. Sendo assim a cultura se sobreporia à história. A cultura seria, assim, a chave metodológica para interpretar a história. A cultura é o uso do passado histórico como meio de produzir um presente (Sahlins, 1987. pp192) exatamente como se dá com a cultura gaúcha acionada. O evento passa para a historiografia filtrado pelos esquemas culturais. “...a cultura funciona como uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia.” (Sahlins, 1987. p180). E este adapta as mudanças em seu próprio benefício.
O mito gaúcho é repleto de heróis e guerras. São vultos e fatos revisitados na história e revistos no presente pela cultura tradicionalista. Significa dizer que em um primeiro momento, o evento é apreendido pelos “olhos da tradição”, já que é o esquema cultural enquanto referencial simbólico compartilhado que lhe dá inteligibilidade; a tradição é como uma lente a olhar para estpensar e agir como um tradicionalistaes fatos. Contudo, no desenrolar dos acontecimentos, ao interpretar o passado, os homens repensam suas categorias, submetendo-as a riscos empíricos, do cotidiano, a fim de dar conta da contingência do evento. “O evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações variam.” (Sahlins, 1987). Desse modo, o sentido original das categorias culturais é remodelado pela introdução de novos significados, de novos símbolos, acarretando alterações na maneira de pensar e agir de toda a sociedade.
Entendo que quando olhamos para trás, através da narrativa histórica, o fazemos dentro de uma lógica cultural na qual estamos inseridos. Em contrapartida, a cultura vivida, revivida e ressignificada por nós e pelos grupos que estudamos está impregnada de história. Aos acontecimentos que iluminamos no tempo passado damos o nome de evento. Esse evento, através do tempo, é ressemantizado pelas trocas culturais, inerentes à própria dinâmica da cultura e pelas relações sociais das interações humanas, alterando as estruturas de percepções de tempo e espaço do tempo presente. Sepé Tiarajú, ao morrer, se é que um dia verdadeiramente viveu, era apenas um soldado guerreiro. O mito de Sepé (Brum, 2006), nasceu de uma sequência de eventos históricos que concorreram para sua elaboração. E as representações criadas no presente, a partir deste personagem histórico (heroicizado e mitificado), dão conta de estruturar, num tempo e espaço atuais as relações das pessoas com este fato histórico.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Maurice Halbwachs



A memória coletiva. Maurice Halbwachs. 2006. Editora Centauro.

Esta edição está dividida em quatro capítulos e um anexo (A memória coletiva entre os músicos). “A memória coletiva” é um livro póstumo de Halbwachs, publicado em 1950. já no prefácio, Jean Duvignaud, afirma que para o autor é impossível conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a estas reconstruções que chamamos de memória. A introdução é de J.-Michel Alexandre, que faz uma biografia de Halbwachs, suas idéias e sua vida, findada em março de 1945, depois de ser preso pela Gestapo, no campo de concentração de Buchenwald.

Capítulo I – Memória individual e memória coletiva.

Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação. Pg 29
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco certa quantidade de pessoas que não se confundem. Pg 30
Para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível. Aliás eles não seriam suficientes. Pg 31
Na ordem das relações afetivas, um ser humano que é muito amado e que ama moderadamente muitas vezes só se dá conta tarde demais ou talvez jamais se dê conta da importância que foi atribuída às suas menores ações, às suas palavras mais insignificantes. Aquele que mais amou, um dia recordará ao outro declarações e promessas, das quais o outro não guardou nenhuma lembrança. Um porque estava bem menos envolvido que o outro na sociedade que os dois formavam e que se baseava num sentimento desigual partilhado. Pg 35
Para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum. Pg 39
Não há lembranças que reapareçam sem que de alguma forma seja possível relacioná-las a um grupo, porque o acontecimento que ela reproduzem foi percebido por nós no momento em que estávamos sozinhos, cuja imagem não esteja no pensamento de nenhum conjunto de indivíduos, algo que recordaremos nos situando em um ponto de vista que somente pode ser o nosso?
Na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual que chamamos de intuição sensível. Pg 42
Não nos lembramos da nossa primeira infância porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos um ser social.
Imagino o acontecimento, mas é provável que não seja uma lembrança direta, apenas a lembrança da imagem que formei daquilo há muito tempo, na época das primeiras descrições que me fizeram do fato.(ver Henri Brulard) Pg 43
Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar que as circunstâncias, sobre as quais nossa vontade não tem muita influência, as despertem e as representem para nós.
A condição necessária para voltarmos a pensar em algo aparentemente é uma sequência de percepções pelas quais só poderemos passar de novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas, do mesmo rochedo etc. (esta é a relação da etnografia com o diário de campo, quando o etnógrafo relê seus dados de campo na tentativa de refazer o caminho percorrido pela etnografia com a finalidade de produzir o texto etnográfico, que nada mais são do que as memórias do próprio pesquisador). Pg 53
Um rosto não é somente uma imagem visual. As expressões, os detalhes de uma fisionomia podem ser interpretados de muitas maneiras, conforme as pessoas que o cercam, conforme a direção do nosso pensamento, nesse ou naquele momento. Por isso, para reencontrar a imagem do rosto de um amigo que não vemos há muito tempo, é preciso aproximar, reunir, fundir umas com as outras as inúmera lembranças parciais, incompletas e esquemáticas que guardamos. Pg 56
Diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que este mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar esta diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social. Pg 69

Capítulo II – Memória coletiva e memória histórica.

Existiriam memórias individuais e memórias coletivas.
Ainda não estamos habituados a falar de memória de um grupo nem por metáfora. Aparentemente, uma faculdade deste tipo só pode existir e permanecer na medida em que estiver ligada a um corpo ou a um cérebro individual. Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais. Pg 71
Examinemos agora a memória individual.
O funcionamento da memória individual não é possível sem estes instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Pg 72
Haveria portanto motivos para distinguir duas memórias, que chamaríamos, por exemplo, uma interior ou interna, a outra exterior – ou então uma memória pessoal e a outra, memória social. Diríamos memória autobiográfica e memória histórica. Pg 73
A história parece um cemitério em que o espaço é medido e onde a cada instante é preciso encontrar lugar para novas sepulturas. Pg 74
O tempo social assim definido seria totalmente exterior às durações vividas pelas consciências. Mas o mesmo acontece com as datas marcadas no quadrante da história, que correspondem aos fatos mais notáveis da vida nacional, que correspondem aos fatos mais notáveis da vida nacional, que às vezes ignoramos quando ocorrem ou cuja importância só reconhecemos mais tarde.
Um acontecimento só toma lugar na série de fatos históricos algum tempo depois de ocorrido. Portanto somente bem mais tarde é que podemos associar as diversas fases da nossa vida aos acontecimentos nacionais. Pg 74
Nossa memória não se apóia na história aprendida, mas na história vivida. Por história, devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto. Pg 78, 79
A imagem que eu tinha de meu pai não parou de evoluir desde que o conheci, não apenas porque, durante sua vida, lembranças se juntaram a lembranças: mas eu mesmo mudei, e isto quer dizer que meu ponto de vista se deslocou.
Tudo que aprendo de novo sobre meu pai, e também sobre os que mantiveram relações com ele, todas as novas opiniões que tenho sobre a época em que ele viveu, todas as reflexões novas que me vem à cabeça, à medida que me torno mais capaz de refletir e disponho mais termos de comparação, me levam a retocar o retrato que tenho dele. É assim que lentamente se degrada o passado, pelo menos tal como antes me parecia. As nova imagens recobrem as antigas. Pg 94
É impossível que duas pessoas que presenciaram um mesmo fato o reproduzam com traços idênticos quando o descrevem algum tempo depois. Pg 96
Não esquecemos nada, mas essa proposição pode ser entendida em diferentes sentidos. Para Bergson, o passado permanece inteiro em nossa memória, exatamente como fi para nós; mas certos obstáculos, em especial o comportamento de nosso cérebro, impedem que evoquemos todas as suas partes. (memória pessoas)
Para nós, ao contrário, o que subsiste em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento não são imagens totalmente prontas, mas – na sociedade. (memória social) pg 97
De tudo o que foi dito antes, concluímos que a memória coletiva não se confunde com a história e que a expressão “memória histórica” não é muito feliz, pois associa dois termos que se opõe em mais de um ponto. A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. (==> o tradicionalismo reinventa a história e a faz ser revivida como memória. O passado imemorial, histórico, é trazido para o presente.) pg 100
Em geral a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se decompõe ou se apaga a memória social. Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixá-la por escrito ou pura e simplesmente fixá-la.
Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, o próprio evento que nele esteve envolvido ou que nele teve consequências, que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrição ao vivo de atores ou espectadores de primeira mão – quando ela se dispersa por alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades que não se interessam mais por esses fatos que lhes são decididamente exteriores, então o único meio de preservar estas lembranças é fixá-los por escrito por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem. Se a condição necessária para que exista a memória é que o sujeito que lembra, indivíduo ou grupo, tenha a sensação de que ela remonta a lembranças de um movimento contínuo, como poderia a história ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê esta história e os grupos de testemunhas ou autores, outrora, de acontecimentos que nela são relatados? Um dos objetivos da história talvez seja justamente lançar uma ponte entre passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. ( a memória coletiva ou social não pode se confundir com a história. A história começa onde a memória acaba. E a memória acaba quando não tem mais como suporte um indivíduo ou grupo. A memória é sempre vivida, a história é impessoal). Pg 101
A memória coletiva se distingue da história em pelo menos dois aspectos. Ela é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retem do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Não ultrapassa os limites do grupo. Quando um período deixa de interessar ao período seguinte, não é um mesmo grupo que esquece uma parte de seu passado: na realidade, há dois grupos que se sucedem. (a memória não morre, o que morre é o grupo). Pg 102
Existem muitas memórias coletivas. Esta é a segunda característica pela qual ela se distingue da história. A história é uma e se pode dizer que só existe uma história. Pg 105
Em todo caso, o historiador acredita ser muito objetivo e imparcial. O mundo histórico é como um oceano para onde afluem todas as histórias parciais. Sim, a musa da história é Polímnia. A história pode se apresentar como a memória universal da espécie humana. Contudo, não existe nenhuma memória universal. Pg 106
É dizer que a história se interessa principalmente pelas diferenças, e abstrai as semelhanças sem as quais, contudo, não haveria nenhuma memória, pois nós só nos lembramos de fatos que têm por traço comum pertencer a uma mesma consciência, o que lhe permite ligar uns aos outros, como variações sobre um ou alguns temas. Pg 107
História ==> diferenças
Memória ==> semelhanças
Cada um dos grupos tem uma história. Neles distinguimos personagens e acontecimentos – mas o que chama nossa atenção é que, na memória, as semelhanças passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo. É o tempo decorrido, durante o qual nada o modificou profundamente, que ocupa o maior espaço em sua memória. Pg 108
Esse é ponto de vista da história, porque ela examina os grupos de fora e abrange u período bastante longo. A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro e durante u período que não ultrapassa a duração média de uma vida humana.
A memória coletiva é um painel de semelhanças. Pg 109
(a história não é memória por haver descontinuidade entre quem a lê e os grupos a que ela se refere). (a história fragmenta o tempo, se põe fora dos grupos e acima deles).

Capítulo III – A memória coletiva e o tempo.

(a memória é coletiva e é através das representações coletivas que os indivíduos percebem o passado).
A sucessão do tempo, sua rapidez e seu ritmo, não é senão a ordem necessária segundo a qual se encadeiam os fenômenos da natureza. Mas a vida em sociedade implica em que todos os homens entram em acordo sobre tempos e durações. Pg 113
Sou obrigado a regular minhas atividades segundo o andar dos ponteiros do relógio, segundo o ritmo adotado por outros e que não leva em conta minhas preferências. Pg 114
(é necessário criar padrões exteriores pois cada consciência possui o seu tempo). Ex astros, relógios.
Há horas mortas, dias vazios, enquanto em outros momentos, seja porque os eventos se precipitam seja porque nossa reflexão se acelera, ou porque estivéssemos em estado de exaltação e efervescência afetiva, temos a impressão de viver anos em alguma horas ou alguns dias. Pg 116
À medidas que envelhecemos, o ritmo da vida interior se torna mais lento e, enquanto o dia de uma criança está cheio de impressões e observações multiplicadas, no declínio dos anos o conteúdo de um dia, se levarmos em conta apenas o conteúdo real do que despertou a nossa atenção e nos deu o conteúdo de nossa vida interior, se reduz a muito menos estados distintos um do outro e, neste sentido, em um pequeno número de momentos singularmente dilatados. Pg 117
Nada provaria mais claramente que o tempo, concebido como algo que se estende ao conjunto dos seres, não passa de uma criação artificial, obtida por soma, combinação e multiplicação de dados tomados de empréstimo às durações individuais e somente a estas. Pg 119
O tempo só é real na medida que tem um conteúdo, ou seja, na medida que oferece ao pensamento uma matéria de acontecimentos. É bastante amplo para oferecer às consciências individuais um contexto de respaldo suficiente para que estas possam nele dispor e reencontrar suas lembranças. Pg 156

Capítulo IV – A memória coletiva e o espaço.

Por que nos apegamos aos objetos? Por que desejamos que eles não mudem e continuem em nossa companhia?
Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Pg 157
Não se pode dizer que as coisas façam parte da sociedade. Contudo, móveis, enfeites,quadros, utensílios e bibelôs circulam dentro do grupo e nele são apreciados, comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do gosto, e também nos recordam os costumes e as antigas distinções sociais.
As formas dos objetos que nos rodeiam têm este significado. Não estávamos errados ao dizer que eles estão em volta de nós, como uma sociedade muda e imóvel. Eles não falam, mas nós os compreendemos,porque tem um sentido que familiarmente deciframos. São imóveis somente na aparência, pois as preferências e hábitos sociais se transformam e, quando nos cansamos de um móvel ou de um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. Pg 158
Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se fecha no contexto que construiu. Pg 159
Os grupos de que falamos até aqui estão naturalmente ligados a um lugar, porque é o fato de estarem próximos no espaço que cria entre seus membros as relações sociais: uma família, um casal pode ser definido exteriormente como um conjunto de pessoas que vivem na mesma casa, sob o mesmo teto. Os habitantes de uma cidade ou de um bairro formam uma pequena comunidade, porque estão reunidos em uma mesma região do espaço. Pg 165
Não há memória coletiva que não aconteça num contexto espacial. Nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda.
Diremos que realmente não há grupo nem gênero de atividade coletiva que não tenha alguma relação com o lugar. Pg 170
Os homens só adquirem o direito de propriedade sobre uma terra ou sobre uma coisa a partir do momento em que a sociedade da qual são membros admite a existência de uma relação permanente entre eles e essa terra ou essa coisa. Esta é uma convenção que violenta a realidade, pois as pessoas estão sempre mudando. Qualquer princípio que invoquemos para fundamentar o direito de propriedade não adquire nenhum valor se a memória coletiva não intervier para garantir sua aplicação. Pg 172
Podemos fixar nossa atenção nos limites das propriedades, nos direitos ligados às diversas partes do solo, bem como zonas ativas e passivas em cima das quais são exercidos os direitos relacionados ou subtraídos à pessoa. Também pensar nos lugares ocupados pelos bens econômicos, da consciência religiosa, entre legares profanos e sagrados. Assim, cada sociedade recorta o espaço à sua maneira de forma a construir um contexto fixo em que ela encerra e encontra suas lembranças. (a fixidez do espaço assegura a memória). Pg 188
Quando tocamos na época em que já não conseguimos imaginar os lugares, nem mesmo confusamente, chegamos também a regiões do passado que nossa memória não atinge. (se não lembramos dos lugares é porque não temos mais memória). (rememorar é, antes de tudo, reconstruir o espaço). Pg 189

Reflexões sobre Maurice Halbwachs. Debate com Bergson e Durkheim.

Halbwachs era um seguidor da escola sociológica francesa, sua perspectiva parte do social para o individual, do todo para a parte, como tem como marca a escola francesa. Dessa forma é que se pode entender o estudo da memória para Halbwachs. Ele não nega a existência do indivíduo. Embora entenda a memória como uma construção social, partindo do todo para a parte. Quem lembra é o indivíduo. O indivíduo quando lembra entra no domínio das sensações, e se utiliza dos sentidos e percepções que só dizem relações a ele. Desta forma, cada indivíduo pode ter uma memória distinta do outro. Todo evento que guardamos na memória tem a marca social, por mais que o tenhamos vivido individualmente. Se vivenciamos um evento publicamente, mais marcante ele será, pois será partilhado, reforçando de sobremaneira sua marca social.
A maneira como formatamos nossos quadros de memória é determinada por elementos que, do ponto de vista social, possuem mais relevância. Quando vamos relatar algo de memória, “recheamos” a fala com o que chamamos de “chão”. Tentamos , com isso, ligar um fato vivido coletivamente a coisas que fazem sentido individualmente. Podemos ainda, segundo Halbwachs, distinguir os quadros de memória dos homens dos das mulheres. Uma mulher, tende a ligar seus quadros de memória a uma perspectiva do mundo doméstico, do privado, da família, enquanto que os homens ligarão seus quadros a uma perspectiva do público, do mundo do trabalho. É importante ressaltar aqui que estes vínculos não são dados por natureza, ou como condições inatas de cada gênero, mas sim, construídos socialmente.
Quando Halbwachs fala do “social” não podemos pensar apenas em sociedade do ponto de vista macro. Mas do micro, os valores, como se dá o enquadramento homem/mulher, como enquadra gerações, com o enquadra a sua vida social, enfim como percebe o mundo. Quando sistematizamos estes dados, os submetemos a algumas clivagens: clivagem religiosa, clivagem de gênero, clivagem ética, clivagem identitária, ou qualquer outra que se queira enfocar e de acordo com o grupo que se está estudando. O importante é que se tenha o foco daquilo que se quer enxergar, daí então, pode-se fazer estes outros cruzamentos.
Halbwachs, quando tratou a questão da memória, a retirou da perspectiva do individual. Ela é uma criação do indivíduo, mas partindo do ponto de vista que o indivíduo é uma criação da sociedade. Esta é uma perspectiva da sociologia francesa. O indivíduo é uma categoria que existe e foi criado socialmente. Halbwachs inicia sua carreira no final do séc. XIX e início do séc. XX. Neste momento as ciências sociais ainda não eram um campo dado. Recém começavam a definir seus métodos e seu objeto. Halbwachs foi aluno de Henri Bergson. E este pode ser compreendido como o pai dos estudos da memória. No entanto a perspectiva de Bergson ainda é aquela de que a memória é um somatório de sensações e percepções que vão gerando imagens que vão ficando guardadas em nós. Ficam “ali”, dentro de nós à espera de serem buscadas. Sendo assim, algumas sensações, como um cheiro ou um som, por exemplo, podem nos trazer a lembrança de um evento, de um acontecimento por nós vivido ou percebido. Por esta perspectiva, o indivíduo é o portador desta memória. Desta forma a lembrança é física, e o corpo entra como veículo para esta memória. Quando Halbwachs escreve, ele não despreza toda esta teoria. Embora tire o foco central da questão da memória, do indivíduo, ele reconhece a importância deste para a memória coletiva. Quem vai sentir, quem vai guardar é o indivíduo. No entanto, o indivíduo apreende isso socialmente. A ele é ensinado a maneira de como fazer isso, de como guardar, de como selecionar aquilo que deve ser registrado. Ele não escolhe apenas aquilo que quer lembrar, mas aquilo que lhe é permitido e/ou imposto socialmente. É claro que sempre haverá distinções entre uns e outros, mas até mesmo estas diferenças são dadas socialmente. Os indivíduos se distinguirão dentro de um padrão determinado, dentro de um limite, que é também construído socialmente.
Halbwachs se contrapôs à história enquanto dada. A história que realmente importa é aquela que os indivíduos realmente lembram. Então Halbwachs coloca a grande questão para a historiografia francesa: quem constrói a história, quem a escreve, pra que e pra quem? A história demorou até a metade do século XX para “ver” os rótulos subalternos. Os marginalizados, os excluídos, os negros, etc. Halbwachs coloca a história nesta perspectiva, como uma construção social.
Três grandes áreas preocupam-se com a questão da memória: a história, a psicologia e a antropologia. Seus enquadramentos possuem semelhanças e distinções. Dando prioridades a pontos de vista distintos. Quando o antropólogo estuda memória ele não busca estudar, necessariamente, a historiografia do local, mas sim as estruturas e significados ao longo de um percurso de tempo, dentro de um grupo determinado. O historiador trabalha mais no sentido de documentar, transpondo do oral para o escrito no sentido de preservar.
No entendimento de Halbwachs a memória reconstrói os fatos no sentido do presente para o passado. É com a bagagem que se tem no presente que se vai perceber o passado. É desta forma que a memória é social, pois é construída a partir do coletivo.
Para Halbwachs, mesmo quando estamos falando de nós mesmos, criando e fazendo coisas de profunda subjetividade, estamos “amarrados as objetividades”. Quando pensamos, mesmo que realizemos isto sozinhos, o fazemos coletivamente, pois utilizamos, para isso, uma língua que é coletiva. Esta linguagem nos é imposta pela sociedade. É o coletivo sobre o indivíduo. No entendimento de Halbwachs a memória reconstrói os fatos no sentido do presente para o passado. É com a bagagem que se tem no presente que se vai perceber o passado. É desta forma que a memória é social, pois é construída a partir do coletivo.
Para Halbwachs, mesmo quando estamos falando de nós mesmos, criando e fazendo coisas de profunda subjetividade, estamos “amarrados as objetividades”. Quando pensamos, mesmo que realizemos isto sozinhos, o fazemos coletivamente, pois utilizamos, para isso, uma língua que é coletiva. Esta linguagem nos é imposta pela sociedade. É o coletivo sobre o indivíduo.
Bergson foi o primeiro intelectual a tratar da questão da memória, ele concebia a memória mais no sentido individual, e não a concebia no sentido coletivo. A memória de um sujeito são impressões, imagens, a que ele chama de matéria, que este vem guardando em sua consciência, uma espécie de “caixa preta” do indivíduo. E o indivíduo, e somente ele tem acesso a esse acervo. Esta memória, segundo Bergson, é de cunho individual, e nem se refere a questões coletivas. Tudo é registrado. Não há, como em Halbwachs uma seleção, tudo é registrado e depois é retirado do “arquivo” como se nossa consciência fosse uma caixa preta. Halbwachs se inicia no estudo da memória utilizando o fundamento de Bergson. No entanto, ao conhecer os estudos de Durkheim, Halbwachs percebe algumas particularidades. Nossa mente não funciona exatamente como uma caixa preta, nem tudo fica dentro de nós, há mecanismos de seleção de nossas lembranças, de nossas memórias. Nós escolhemos, nós remexemos, nós selecionamos, nós esquecemos. Então Halbwachs passa a sair do ponto de vista do indivíduo, que lembra para a sociedade, que permite que o indivíduo lembre. Então a memória se descentra. Passa do individual, do indivíduo que lembra, para fora, para o coletivo. O que se nota, no raciocínio de Halbwachs em relação a Durkheim, é uma análise mais psicológica da memória. Há que se pensar que a psicologia como ciência, naquele momento histórico, e talvez ainda hoje, esteja em uma grande disputa entre aqueles construtos mais ligados ao condicionamento, mais de cunho biológico, e outros mais experimentais da psicologia mais humanitária, e Halbwachs está trabalhando nestes limites. Ele busca sair de um domínio empírico, completamente, como também não entrar no domínio metafísico completamente, pois nenhum dos dois, sozinhos, responde a estas questões plenamente. É necessário contemplar o domínio do empírico, da mesma forma transcender em um entendimento metafísico, introspectivo ou algo assim.
É necessário, neste momento, distinguir o que Durkheim entende por fato social. Os fatos sociais devem ser Coletivos, Exteriores e Gerais. Desta forma, os fatos sociais distingem-se por serem tratados como coisas. Isto era imperativo, para a época, assim como na ciência natural positivista. Halbwachs entende de uma maneira um pouco diferente. Os fatos sociais não eram bem coisas. Há o lado de quem os interpreta, há o lado daquele que narra, e a leitura dos fatos não é tão objetiva assim. Durkheim distingue os fatos sociais dos fatos psicológicos, porque na época os fatos psicológicos eram entendidos como individuais, e não queria tratar de indivíduos isoladamente. Distingue também dos fatos biológicos, por não tratar da natureza biológica do homem, mas de sua natureza social. É importante, entretanto, definir de onde Halbwachs está falando: vindo de uma tradição bergsoniana, onde sobressaía o indivíduo, a memória como algo isolado, não havendo esta leitura de uma construção exterior, então Halbwachs busca em Durkheim a idéia de que a vida é feita por um domínio do social sobre o homem. Segundo Durkheim, através da coerção, somos aquilo que a sociedade nos permite ser. A individuação possível em nós é dada dentro dos limites, que cumprimos para sermos aceitos, para não sermos vistos como diferentes. Embora eu acredite ter um estilo “só meu” de me comportar ou de me vestir, ao ler Durkheim perceberei que este “só meu” está carregado do meio social. Este domínio do exterior sobre o interior se dá de formas diversas, e segundo Durkheim, se inicia pela linguagem. A linguagem nos molda a tal ponto que nos resume, a apenas, linguagem. E o que reproduzimos, e o que representamos, é esta estrutura que a língua cria. A língua classifica o homem, separa tempo e espaço, ela nos dá os parâmetros e os padrões para agir e pensar.
No texto Consciousness and Colective Mind, Halbwachs fala da consciência individual e da mente coletiva, e define o seu campo de estudo. O texto começa com uma crítica aos estudos isolados do homem, a filosofia e surgimento da psicologia que tentam definir o homem como um átomo no universo. Halbwachs discorda deste ponto de vista. Entende o homem como uma construção social. Reportando-se a este período histórico, final do século XIX, início do século XX, ainda uma disputa de espaço entre as ciências naturais e as ciências sociais, as ciências sociais utilizando os métodos das ciências naturais, e todo um diálogo entre ambas. Revendo estas teorias hoje, já com um século de conhecimento sedimentado, quando algumas idéias parecem dadas, como dizer que nós somos frutos da cultura, do meio, parecem verdades irrefutáveis para nosso tempo, mas naquele momento intelectual, não. Ali, havia uma construção universalista do homem, uma filosofia universalista, uma psicologia universalista, entendendo que o ser humano seria sempre o mesmo, independente de cultura, ou de qualquer outras construções sociais. Hoje sabemos que para entender a sociedade devemos entender esta conjugação entre homem e meio, o exterior e o interior num sentido amplo.
Logo, Halbwachs passa a fazer uma crítica a psicologia, que entendia que as grandes categorias de entendimento do homem eram inatas, dadas pelo nascimento. Discorda de Kant quanto a categorias de tempo/espaço como categorias a priori, tempo/espaço como recipientes que armazenam informações recebias pelos órgãos dos sentidos que as ordenam na minha consciência. Halbwachs concorda com Durkheim, que entende, tempo/espaço como construções sociais. E não categorias dadas, mas construídas coletivamente. Cada sociedade vai capacitar seus indivíduos para perceber tempo/espaço de uma determinada maneira. Por exemplo, uma criança criada no ambiente rural, numa estância, que estuda numa escola rural, conceberá noções de tempo e espaço diferentes de outra que cresce na cidade, no meio urbano. Seu tempo e suas brincadeiras serão muito mais medidos pelo sol, pelo calor, pelo frio do que pelo tempo cronológico do relógio. Ao passo que a criança da cidade desenvolverá muito mais desenvoltura, por exemplo, na interação do espaço social. Ira interagir com muito mais outras crianças ao longo do seu dia, numa aula de judô, numa escola maior, no transporte coletivo, no ir e vir do transito caótico das cidades. Dessa forma podemos entender que as noções de tempo/espaço que desenvolvemos são fruto e consequência do meio em que vivemos e habitamos. Não são inatas. Entretanto são capacidade biológicas, recebidas geneticamente, mas desenvolvidas, física e psicologicamente pela interação com o meio específico. Então, o que nos torna humanos é a capacidade que temos de nos comunicar e nos expressar e o que nos dá isto é a linguagem. Mais uma vez aqui a dissenção entre as ciências biológicas e as ciências sociais. A biologia nos concebe (nós humanos) como puramente animais, e nós (antropólogos) nos concebemos (nós humanos) como puramente social. A biologia, e as ciências naturais, nos trazem de volta, o tempo todo para o domínio da natureza. Da mesma maneira que percebe como todas as espécies se transformam em relação ao meio, ela também quer entender como o homem se transforma em relação ao meio. Portanto, para a biologia somos apenas mais uma espécie. Talvez o primata mais desenvolvido. Esta era uma discussão presente desde o início do século com as teorias mais evolucionistas, mas também uma tentativa de cada campo científico demarcar o seu domínio.
Outro ponto importante no texto é que Halbwachs vai mostrar que a inteligência é um campo que se constrói socialmente. Se intende por inteligência, as capacidades, as aptidões, a cognição. Então cada sociedade vai desenvolver o tipo de inteligência útil e necessária para o indivíduo sobreviver naquele meio. O homem do campo construirá seu saber sobre o seu meio. O homem urbano desenvolverá aptidões que lhe serão úteis apenas para habitar na cidade e talvez nem façam sentido para o homem rural. É desta forma que se deve entender a categoria “conhecimento”, “inteligência” pensando relacionalmente ao meio em que são utilizadas e desenvolvidas. Lévi-Strauss demonstra isso brilhantemente em A ciência do concreto, primeiro capítuo de La Pensée Sauvage.
Halbwachs foi aluno de Bergson de 1894 até 1901. Bergson viveu de 1859 a 1941, e estudo a percepção por meio das imagens. Tentava entende de forma a memória guarda as imagens. Aquilo que Bergson denomina “matéria”, são imagens, são aquilo que está fora de mim, que eu vejo, que eu percebo. Bergson entende que a realidade é um conjunto de imagens, o que guardamos são imagens. A memória é a preservação de imagens passadas e cumprem a função de completar as lacunas da experiência presente. É como uma caixa preta, onde tudo é guardado, nada é perdido, e quando precisamos recorremos a ela. Halbwachs e Durkheim discordarão desta idéia. Para eles só se guardará aquilo que for socialmente válido e importante, e compartilhado coletivamente (exemplo do banho). Para Bergson é como se todos ficassem guardados. Esta é a combinação entre percepção e memória. Outro conceito importante em Bergson é o de “duração”. Duração é tempo de sobrevivência dessa imagem passada. O tempo vivido e o tempo pensado não são iguais. Um mesmo acontecimento vivenciado por igual período por duas pessoas diferentes, é recordado com diferentes impressões do tempo. Uma experiência que seja mais traumática para um do que para outro será revivenciada de formas diferentes para ambos. A “duração” (Bachelard) de um mesmo fenômeno será percebida diferentemente por pessoas que vivenciaram este mesmo fenômeno num mesmo intervalo de tempo e num mesmo espaço. Ou seja, um mesmo fenômeno. Quando cada um contar este mesmo acontecimento, o tempo pensado será diferente, embora o tempo vivido tenha sido o mesmo. Isto acarretará narrativas diferentes. Halbwachs chamará atenção para isto: o tempo é social mas cada um de nós fará uma leitura individual do social. Para Bergson o corpo será sempre o depositário das memórias. É o corpo físico que recebe a percepção. No entanto ele não discute o fato de os sentidos serem educados socialmente. Um exemplo disso é a dor. O sentimento de dor é uma construção social. Diferentes sociedades possuem diferentes noções de dor. Bergson toma a percepção como algo dado, diferentes culturas poderiam possuir uma mesma percepção. O homem do campo, o arquétipo gaúcho, construído socialmente como homem, viril, corajoso, brigador, deve sempre sublimar a dor, concebê-la como uma categoria “menor” dos sentimentos ou até mesmo sua total inexistência. A velhice traz, por vezes, a dor e a incapacidade para o trabalho e este é o fim de sua existência, sua morte, como demonstra Ondina Fachel Leal em Honra, morte e masculinidade na campanha gaúcha. Enfim, para Bergson, a memória é a lembrança dos fatos vividos, percebidos e sentidos pelas pessoas. Ela fica registrada integralmente nesta “caixa preta”, através de imagens do passado que são sua substância, sua matéria. A “duração” para Bergson é a sucessão desses estados de consciência entre passado e presente, este pulso vital.
Os estudos de memória foram, durante muito tempo considerados prioritários para a História, da Psicologia Social, de formas diferentes, e não da Antropologia. Entretanto a Antropologia tem chamado para si os estudos de memória e neste contexto pode-se entender a importância dos estudos de Halbwachs. Quando vai-se trabalhar com noções de passado é importante entender este diálogo entre história e antropologia. Quando nós, antropólogos, trabalhamos com reconstruções de passado, nos estudos de memória, não o fazemos com as mesmas preocupações que possui a história. Procuramos entender quais relações o passado possui com a vida dessas pessoas no presente. Todos possuímos passado, e portanto, possuímos memória. Para entender as noções de pertencimento, construções das identidades é também necessário compreender as memórias destes indivíduos. Ambas são construções sociais.

Diálogo com Lévi-Strauss



Diálogo com Lévi-Strauss

“Enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre estas diferenças, que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia.”(Levi-Strauss, 1962).

Para explicar a noção de estrutura em Levi-Strauss é necessário, primeiro, entender a noção de estrutura em Marx: os indivíduos, se relacionando no mundo concreto, não tem noção de todas as relações de poder que estão por trás de suas ações. Eles viveriam no mundo das ideologias, num mundo das aparências, no mundo das relações sociais que se pode enxergar. Partindo-se do mundo empírico, da experiência dada, não obtém-se uma análise suficiente dessas relações. É preciso criar sobre elas, modelos. Existem verdades aparentes, no entanto existem outras verdades que estão além da realidade aparente. Estas estão no nível da análise, da construção. Primeiramente se tem o mundo da aparência que é o nível do empírico, depois se vai para a criação dos modelos, que são construídos a partir desta realidade.
“O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com esta. (...) As relações sociais são a matéria prima empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura social. Em nenhum caso esta poderia, pois, ser reduzida ao conjunto das relações sociais, observáveis numa sociedade dada.(...) Enfim, o modelo deve ser construído de tal modo que seu funcionamento possa explicar todos os fatos observados.” (Levi-Strauss, 1985)

Lévi-Strauss divide aquilo que conhecemos hoje por antropologia, de forma geral, em três grandes áreas: etnografia, etnologia e antropologia. A etnografia seria o processo de coleta de dados, de construção de narrativas, a descrição do que o pesquisador vê e do que o pesquisador percebe. Quando o pesquisador começa a sair da descrição e passa para a construção dos modelos, já entrando em um primeiro nível de abstração, estaria o pesquisador, segundo Levi-Strauss no nível da etnologia. E quando buscamos o nível das grande s abstrações científicas estaríamos no nível da antropologia. Dessa forma quando Levi-Strauss, está falando em antropologia, ele se refere a esta grande ciência, em sua forma acabada.
A etnografia entendida como a ciência que descreve aquilo que é observado do mundo empírico, a etnologia entendida como aquela ciência que faz as primeiras análises, e a antropologia seria então a sistematização deste grande conjunto de conhecimento, da construção desta grande ciência da humanidade. Portanto é importante entender que quando Levi-Strauss fala de etnografia ele refere-se à descrição tão somente, sem uma construção de modelos, sem abstrações, apenas a observação empírica. Ao partir-se para a etnologia se estará construindo modelos, ao partir-se para o plano da antropologia se estará fazendo a grande ciência do homem, que compreende esta humanidade com H (maiúsculo), única e igual, diferente da humanidade, por exemplo, pensada pelos evolucionistas, que entendiam a humanidade numa linha de tempo unívoca e evolutiva, apontando estágios de desenvolvimento, tomando como referência a sociedade européia industrializada.“um povo primitivo não é um povo ultrapassado ou atrasado; num outro domínio pode demonstrar um espírito de invenção e realização que deixa muito aquém os êxitos dos civilizados.” (Levi-Strauss, 1985).
Dessa forma é possível supor que Levi-Strauss diminui a importância do conceito de cultura e de história. Em O pensamento selvagem (1970, p. 292) “o etnólogo respeita a história mas não lhe dá um valor privilegiado”. Ele afirma que o que está no nível do empírico, dos fatos, dos acontecimentos e dos eventos (e que são a matéria prima do etnógrafo), está no nível da história. Pelo menos de uma história cronológica e factual. Isso quer dizer que não estaria no nível dos modelos nem da estrutura. Portanto ela não seria o mais importante. A história seria apenas a repetição da estrutura. Pode-se alterar a cultura, cultura gaúcha, cultura ocidental, cultura aborígene, ou qualquer outra, quando se chegar num fim último, ela estará reproduzida numa determinada posição, que levará aos modelos e dos modelos às oposições. Então, segundo Levi-Strauss a história e a cultura como vemos no plano da materialidade, são apenas aparências, análises contingenciais, pois a estrutura, pelas oposições binárias, vai fazendo com que o sistema vá variando. No momento que entram novas variáveis, o sistema se readapta e a estrutura permanece. É o mesmo princípio epistemológico de Marx. As coisas mudam somente nas aparências, porém a estrutura (estrutura/superestrutura) permanece imutável.
“Todas as relações mutáveis e esclerosadas, com seu cotejo de representações e de concepções vetustas e veneráveis dissolvem-se; as recém-constituídas corrompem-se antes mesmo de tomarem consciência. Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar; (...)” (Marx, 2001).

Com estas palavras Marx afirma que a verdadeira transformação só ocorreria com uma transformação na estrutura. Era preciso revolver todas as relações (que se dão no nível das inter-relações pessoais), para dissolver a estrutura, provocando uma mudança verdadeira, e não só nas aparências. Levi-Strauss afirma que quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Ou seja, não são mudanças estruturais, mas apenas aparentes. Não alterando, assim, a estrutura.
No texto Raça e História Levi-Strauss discute sobre sociedades “quentes” e sociedades “frias”. Sociedades com história e sociedades sem história. Após o evolucionismo se criou a idéia de que existem sociedades progressivas, cumulativas e sociedades estacionárias. Para Levi-Strauss não importará a velocidade com que as mudanças acontecem, mas sim, o fato de que acontecem. Sempre haverá mudança, um novo costume, um novo instrumento será suficiente para comprovar esta mudança. A vida em sociedade é a entrada constante de elementos novos no sistema que vão reagrupando as relações, porém a estrutura não se altera. Lévi-Strauss debate a divisão entre história, ciências sociais e mitologia. Estudando, no seu caso, sociedades primitivas, divide as sociedades de “histórias quentes” e de “histórias frias”. História cumulativa e história fracionária. Ainda dentro de uma construção evolucionista se dizia que havia sociedades progressistas, que viveriam histórias quentes. Seriam agitadas, predispostas a movimentos e a mudanças. E haveriam sociedades frias, que seriam aquelas sociedades apáticas, com poucas mudanças.
Pode-se dizer que a antropologia estrutural é um meio de tentar entender a história das sociedades que não tem história, que é o caso das sociedades primitivas. O objetivo de Levi-Strauss era provar que a estrutura dos mitos era igual em qualquer parte da terra, qual fosse a sociedade. A estrutura mental da humanidade seria toda idêntica independente de raça, clima, religião. Com isto contrapôs mito à história. Separou as sociedade em “quentes” e “frias”. As sociedades frias seriam aquelas que se encontrariam “fora” da história e se orientariam pelo modo mítico de pensar, entendendo o mito como um mecanismo de supressão do tempo. Enquanto as sociedades quentes seriam aquelas que moveriam-se dentro da história, dando ênfase no progresso, em constante transformação tecnológica. No entanto, em nenhum dos casos poderia haver sociedade estacionária. De alguma forma, algo novo sempre está acontecendo. Um encontro entre caçadores, um nome de uma nova planta, uma nova palavra que o grupo produza em seu vocabulário num período de longo alcance, será indicativo de que esta sociedade sofreu mudanças. Tendemos a entender sociedade estacionária do ponto de vista ocidental, sobretudo após a revolução industrial, que provocou grandes mudanças, em um curto período de tempo, a história servindo como uma máquina registradora destes acontecimentos.
“Poder-se-ia, sem dúvida, dizer que as sociedades humanas utilizaram desigualmente um tempo passado que, para algumas, teria sido, mesmo, tempo perdido; que umas apertavam o passo, enquanto outras gazeteavam pelo caminho. Chegar-se-ia, assim, a distinguir entre duas espécies de história: uma história progressiva,aquisitiva, que acumula os achados e invenções para construir grandes civilizações, e uma outra história, talvez igualmente ativa e utilizando não melhor talento, mas à qual faltaria o dom sintético, que é privilégio da primeira. Cada inovação, ao invés de vir juntar-se às inovações anteriores, orientadas no mesmo sentido, se dissolveria numa espécie de fluxo ondulante, que não chegaria nunca a se afastar duravelmente da direção primitiva.” (Levi-Strauss, 1978).

O que é importante guardar de Levi-Strauss, é que ele nos fornece um grande modelo de observação da realidade. Para tanto se parte da observação empírica. Parte-se do indutivo, da observação do mundo real. Só torna-se dedutivo no terceiro momento, quando constata que a humanidade é uma só. Mas a análise parte do particular. Parte da empiria e chega-se aos modelos. Dos modelos, variando de acordo com a complexidade da sociedade, chega-se até a estrutura. A estrutura é inconsciente. Ela corresponde àquilo que não pode ser observado, mas apreendido pela interpretação científica. Pode-se dizer que ela seja uma elaboração teórica capaz de dar sentido aos dados empíricos de uma certa realidade. A estrutura permite aos homens classificar o mundo. A diferença entre Levi-Strauss e Durkheim quanto a classificação do mundo é que em Durkheim ela se dá do todo para a parte, do social para o indivíduo, em Levi-Strauss ela já está na parte, e no todo ela aparece no nível do manifesto, do empírico, do mundo da experiência, das relações sociais. Usando uma metáfora, em Durkheim, é dada de fora pra dentro e para Levi-Strauss, dada de dentro pra fora. Embora ambos concordem que a grande riqueza do homem é a sua aptidão por classificar.
Trago esta discussão para meu objeto, a identidade gaúcha acionada e suas tensões entre os mundos rural e urbano. Num mundo contemporâneo, com a evolução tecnológica, os meios de condução e de informação, a televisão, os telefones móveis, no meio rural, da vida no campo, onde por mais que estejam chegando, incessantemente, elementos novos há coisas que não mudam, pois são do domínio estrutural daquela comunidade. Uma maneira própria de falar e agir, as representações de mundo, a alimentação, um imaginário construído acerca da tradição dos seus antepassados, as construções típicas das fazendas, a maneira de encilhar os cavalos, domar, ferrar, são enfim, no meu modo de pensar, da constituição estrutural daquele grupo.
Para Levi-Strauss a história é uma sucessão de acontecimentos, portanto está no nível do empírico. A história só reproduz uma mesma estrutura imutável. Por mais que mudem as categorias, os conceitos, os significados e as representações, as oposições serão sempre as mesmas. A história se dá sempre no nível dos acontecimentos, ela é sempre uma reprodução da estrutura.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Crônica do David Coimbra


Certa Noite de chuva.


David Coimbra (28/12/2007 em Zero Hora)


Chovia muito no último dia em que vi meu pai. Eu estava com oito anos de idade e padecia na cama com 40ºC de febre. Amígdalas.
Meus pais tinham se desquitado havia já alguns meses. Eu, meus irmãos e minha mãe morávamos num apartamento de um quarto na Assis Brasil. Ele foi nos visitar e deparou comigo tiritando sob a coberta.
Lembro com nitidez daquela noite, dele parado à soleira da porta do quarto, de pé, olhando-me, e minha mãe ao lado, com o papel da receita do médico na mão. Ele tomou a receita e ofereceu-se para ir à farmácia. Deu as costas para o quarto, mergulhou na escuridão do corredor e foi embora. Nunca mais o vi.
Logo depois ele se mudou para outro Estado, no Centro-Oeste, e lá construiu o resto da sua vida. Um dia de 2001 alguém me disse:
— Teu pai morreu ontem.
E eu não sabia o que sentir.
Não conto essa história com ressentimento. Porque acho que entendo o que aconteceu com meu pai, naquela noite de chuva. Ao sair do apartamento, ele de fato tencionava comprar os remédios.
— Vou comprar dois de cada! — recordo que disse.
Mas meu pai era alcoolista. Na rua, deve ter cruzado pela porta de um bar, ou com um amigo, e parou para beber. Quando deu por si, era tarde para ir à farmácia e tarde para desculpar-se. Continuou bebendo, gastou todo o dinheiro e, no dia seguinte, envergonhado, preferiu não dar notícias.
Assim passou-se um dia, e outro, e mais outro. De repente, havia transcorrido tempo demais para voltar atrás ou para dar explicação. Meu pai não enfrentou a própria vergonha, isso não é incomum. Acontece. É compreensível.
O que sempre me enfeitiçou nessa história, que, afinal, é parte da minha própria história, não foi o detalhe da desistência do meu pai. Não foi o abandono. Foi o momento em que meu pai decidiu entrar no bar. Uma decisão tão aparentemente irrelevante, tão fácil de ser tomada, dar dois passos da calçada em direção a uma porta aberta, e, ao mesmo tempo, uma decisão tão crucial.
Fico pensando em como a vida é repleta dessas pequenas deliberações que podem alterar rumos e mover destinos. Fico pensando em todas as palavras espinhosas não ditas, nas vezes em que o sinal amarelo não foi cruzado, em que o gatilho não foi apertado, em que não liguei para ela, nas chances que deixei passar, e nas vezes em que fiz tudo isso, por bem ou por mal.
Um passo, uma palavra, um gole, um pedido de perdão que não foi feito, e tudo muda. Mudou para meu pai. Mudou para mim. Neste fim de ano, o que desejo a todos é isso, que o passo seja certo, que a palavra seja macia, que o gole valha a pena, que o perdão seja pedido. E co
ncedido.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Gaúcho a pé.





CYRO MARTINS E O GAÚCHO A PÉ.



GUILHERME HOWES



Neste dia 05 de agosto celebrou-se os 101 anos de nascimento do escritor Cyro dos Santos Martins, o autor de obras como a Trilogia do Gaúcho a Pé. Cyro Martins nasceu em Quaraí, em 1908, e viveu até dezembro de 1995. Literato desde muito jovem, escreveu os primeiros contos já aos quinze anos. Forma-se médico aos vinte e seis anos e aos quarenta e sete, especializa-se em psiquiatria e psicanálise.
As três obras que compõem a sua trilogia foram compostas em diferentes fases de sua vida. A primeira delas, Sem Rumo, que conta a história do protagonista Chiru, é de 1933, Porteira Fechada, do peão João Guedes, de 1944 e Estrada Nova, que narra a trajetória de Janguta e seu filho Ricardo, de 1954. Como afirma o próprio Cyro no prefácio de Sem Rumo (2008), “essa trilogia que não nasceu trilogia”, mas assim passou a ser denominado pelo mercado editorial, ao longo dos anos, “enriqueceu-se de densidade humana de livro para livro, (...) quase todas as figuras representativas das diversas camadas da população da campanha rio-grandense das cidades estão, aí, em desfile, com o seu pitoresco, com as suas altaneiras, com seus trapos, com suas humilhações, enfim, com os seus aspectos formais e essenciais, principalmente.”
O gaúcho, peão de estância, descrito nas páginas de Cyro, em nada remetem aos homens da campanha, heróis, por exemplo, da obra Contos Gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto. Blau Nunes, o vaqueano é uma espécie de super-homem do campo aberto, ao passo que João Guedes, de Cyro Martins, é o espoliado, expulso de sua terra, desfeito de seu cavalo, torna-se um gaúcho a pé(2), destituído de sua identidade.. Ambos personagens estão ancorados no mesmo universo rural, primitivo, pastoril da campanha sul rio-grandense, entretanto são diferentes na maneira como vivenciam e como representam suas práticas, sua cultura, e a sua própria vida.
Tenciono fazer deste entrecruzamento entre Antropologia, História e Literatura, um exercício possível. Para a antropologia, a obra de Cyro interessa na medida em que apresenta um panorama da cultura, de uma gente e de um lugar, em um determinado tempo. Entretanto, a obra é uma narrativa literária, não inserindo-se, portanto, no campo da historiografia. E é nesse ponto que reside o problema da possibilidade. A historiadora Sandra Pesavento, professora da UFRGS, falecida recentemente, afirmava que “a narrativa ficcional de Cyro Martins (...), pode fazer a própria história se questionar.(...) pode alertar ao historiador que a literatura lhe serve como traço, indício, registro, fonte, porque não? Não para encontrar fatos ou confirmar presenças de personagens, mas para poder dar a ver sensibilidades de um outro tempo, para possibilitar o entendimento de como os homens representavam a si próprios e ao mundo em uma determinada época.” Ao ler a história de João Guedes, personagem central de Porteira Fechada, entende-se que a narrativa ficcional do autor não está em sintonia com o discurso histórico da época e tampouco em correspondência com as representações acerca do gaúcho campeiro, idealizado pela literatura, pela poesia e pelos movimentos culturais, endossados por aquele discurso oficial da história.
Evidentemente João Guedes não é um personagem histórico. Mas ao representar um tipo social, o peão de estância, aí sim, um tipo humano com evidência histórica, o peão João Guedes desencadeia uma série de ações, verossímeis, possíveis, coerentes, que dão conta de uma realidade, imaginada e simulada pelo autor, e re-vivida pelo exercício da leitura. Cabe aqui esclarecer que entendo a representação como a presentificação de uma ausência, uma ação positiva na produção de significados, que a partir da imaginação, de uma atividade criativa, se produz interações reais no mundo real. Com isso, estabeleço que a representação ficcional do gaúcho campeiro na obra de Cyro Martins, certamente não possui estatuto de verdade histórica, mas ao representar esta realidade, o discurso literário cria uma coerência de sentido e fornece uma versão possível e plausível do real. Dessa forma, voltando à Pesavento, “a narrativa literária (ou poética) fala do que poderia ter acontecido, e não aconteceu, domínio este reservado ao discurso histórico.” Dito de outra forma, não é necessário haver correspondência entre o discurso literário e a realidade, mas é necessário ser plausível, criando um eixo coerente entre a narrativa e a leitura, entre o autor e o leitor.
Segundo Carlos Jorge Appel, professor de Literatura, “Na recriação da realidade, na construção do universo ficcional (...), os pontos de vista dum autor não podem ser considerados frutos de uma decisão pessoal, dependendo apenas de sua subjetividade.” Para Appel, incide no modo de representar a realidade, as condições histórico-culturais, os hábitos, os costumes, assim como demais condições subjetivas que possam ter influenciado o autor no momento da criação. Essa subjetividade, essa relação intrínseca entre autor-tempo-espaço, ao contrário de desmerecer o valor histórico-literário da obra, a valoriza. Essa relação indelével do autor com as condições em que compôs sua narrativa, é justamente o que dá à obra seu caráter documental, de uma espécie de “fotografia” de um determinado instante.
Não quero com isso, estabelecer hierarquias sobre verdades históricas, procurar essencialidades, legitimar autenticidades, ou investigar qual o “verdadeiro” gaúcho. Me interessa, isto sim, refletir sobre aquela interface entre a Antropologia a História e a Literatura. Nesse sentido, entendo que a História não deva prescindir de um diálogo com a Literatura. Via de regra, esta última, possui a dinâmica das narrativas, possibilita interpretações, constrói discursos sobre o real, produz não só representações, mas práticas, que suscitam a reflexão e o debate, descortinando novos ângulos de análise sobre o mundo, sobre os homens e sobre um determinado tempo.



2Termo cunhado pelo próprio Cyro Martins, em 1935, quando afirma que a literatura “afinou minha sensibilidade para a pesquisa da alma humana, sobretudo porque nunca fiz regionalismo no sentido pitoresco e sim para buscar o que havia de universal naquele homem singular que era o gaúcho a pé.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Diálogo com Bourdieu




Bourdieu utiliza dois conceitos que ajudam a entender a relação entre indivíduo e sociedade. São os conceitos de campo e de habitus. O habitus diz respeito aos esquemas mentais de percepção, pensamento e ação que caracterizam o comportamento do indivíduo. Ou seja, é como o sujeito percebe, pensa e age no mundo real. São disposições internas herdadas da família e estruturadas pela experiência individual e pela educação, constituindo-se no seu habitus primário. Os sujeitos, embora pré-dispostos pelo habitus primário, são submetidos às contingências e múltiplas possibilidades de ação da vida adulta, que constitui seu habitus secundário. Sendo assim, o habitus é a interiorização do mundo exterior. É uma “marca” que a sociedade impõem e imprime sobre o indivíduo.
O campo é constituído pelas esferas autônomas da vida social, construídas historicamente, envolvendo relações sociais, sistemas hierárquicos que pressupõem dominação. Com esta noção de campo, Bourdieu propõe um conceito de sociedade formado por instâncias ao mesmo tempo interdependentes e autônomas que instituem entre os indivíduos e os grupos relações de concorrência e poder. “O habitus científico é uma regra, um modus operandi científico quefunciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem.”
Meu objeto de estudo, as manifestações da cultura gaúcha acionada, produz não só um habitus gauchesco ou um habitus tradicionalista, como também uma hexis cultural gaúcha.“... o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural (...) como Mauss, o qual reconhece a dimensão corporal da hexiscomo porte ou postura – a noção serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado”. Vendo dessa forma, o corpo seria portador dessa hexis, desse habitus corporal. É como se disséssemos, ao ver uma pessoa na rua que ela pertence a esta ou aquela classe social, apenas pela sua aparência, pela sua maneira de vestir ou de se comportar. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, estéticos e morais. É também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. É uma matriz determinada pela posiçãosocial do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações.
Um peão da estância ao ir à cidade, veste-se como um homem urbano. Calças jeans, camiseta, e um tênis. Um homem da cidade, ao visitar uma fazenda ou uma entidade tradicionalista tentará vestir-se e comportar-se como as pessoas do meio. No entanto, nenhum deles conseguirá somente com uma roupa igual, oo copiando alguns trejeitos, assimilar a cultura ou penetrar no "ethos" do grupo. Para internalizá-lo seria necessário um processo social mais intenso e duradouro, se é que pode haver essa possibilidade. Assim, o corpo, a expressão física, a linguagem corporal marcaria o sujeito com sua condição social, sua classe social. Por mais que o indivíduo ascenda ou descenda socialmente ou transite em mais de um grupo identitário, aquele do qual herdou sua hexis, seu habitus, sua "marca" social estará estampado em sua forma de agir, de falar ou de representar o mundo.
Dessa forma, pode-se entender que as condições de participação social baseiam-se na herança social. O acúmulo de bens simbólicos estão inscritos nas estruturas do pensamento e também no corpo, e são constitutivos do habitus através do qual os indivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social. A cultura gaúcha é repleta do consumo de bens simbólicos. Este é um ponto de diálogo e de interface, mas também um ponto de dissenção entre os mundos rural e urbano.
No texto A Distinção. Crítica social do julgamento (2007), Bourdieu discute a correspondência entre práticas culturais e sua relação com classes sociais, bem como os princípios que legitimam as hierarquias sociais aí implícitas. Ou seja, qual a dinâmica que rege estas relações, e que mecanismos hierárquicos distintivos estão implícitos nestas interações. Para Bourdieu “Os bens culturais possuem, também,uma economia, cuja lógica específica tem de ser identificada para escapar do economicismo.”(Bourdieu, 2007). Isso quer dizer que na prática do consumo da cultura, música, literatura,monumentos, roupas (pilcha gaúcha), culinária (erva mate, carne do churrasco), entre outros, a relação entre as preferências dos indivíduos e a sua origem social, está além da limitação do valor. As escolhas particulares estariam sendo mediadas, perpassadas pelo seu nível de instrução, sua origem social, pela sua vinculação identitária.
Retomo aqui a idéia de aproximação e dedistanciamento, de circularidade de fluxos interpretativos entre o homem do campo (o peão de estância), e o homem da cidade (o tradicionalista urbano), em relação aos seus julgamentos de gosto quanto ao mercado de bens simbólicos entendidos dentro de uma cultura gaúcha acionada. Entre ambos, achamos pontos de convergência e de divergência no que diz respeito a este mercado de bens simbólicos. A pilcha, da qual não se pode desvincular a identidade gaúcha, é cada vez menos encontrada nas estâncias. A bombacha e a bota de couro, perderam seu valor prático na atividade do campo. O valor alto destes utensílios, que ganharam status de grife, afastou o seu uso pelos homens do campo. Calças jeans, e outros tecidos mais baratos (sarja, tactel), que se encontram em lojas de departamentos ou em agropecuárias, assim como botas de borracha, ou botas de lona e solado de pneu, se aproximam mais do valor possível de ser pago pelo trabalhador rural. A erva mate, assim como o fumo e a palha, oferecidos gratuitamente aos peões, nas estâncias, até algum tempo atrás, não mais constam da estrutura oferecida pelos patrões. Até mesmo a lenha, para os fogões e lareiras, hoje depende da iniciativa do peão. A carne oferecida à peonada como esteio da alimentação, pois era costume nas estâncias carnear, para o próprio consumo, atualmente é comprada individualmente por cada trabalhador. Isto mostra que estes elementos, reduzidos nas estâncias ao seu valor econômico, guardam seu valor simbólico vinculados a um mundo rural mitificado. Outro exemplo é a música gaúcha produzida sobre este mundo imaginado que perdeu seu significado ao ser ouvida pelo homem do campo. Estabelece-se aí uma relação de poder sobre bens simbólicos, mediadas por relações de poder econômico. O homem rural, depauperado, assemelha-se ao homem pobre dos cinturões das cidades, ambos inseridos numa mesma lógica de consumo de bens culturais e simbólicos. A análise de Bourdieu é sobre a possibilidade da autonomia da produção e do consumodesses bens culturais, discutir se eles podem se dar independentemente das diferenças sociais, se se pode distinguir da forma artística as implicações históricas, econômicas e políticas. Bourdieu pensa nas relações de poder que estão no bojo das trocas culturais. Através de uma crítica social ao gosto estético, afirma que a arte popular não consegue anuir a uma legitimidade estética, e ainda ao contrário, serve de referência negativa (mau gosto) à arte superior ou consagrada. Os julgamentosde gostos e de preferências não são o reflexo da estrutura social, mas um meio de afirmar uma vinculação social.

O duplo sentido do termo 'gosto' – que, habitualmente, serve parajustificar a ilusão da geração espontânea que tende a produzir esta disposiçãoculta, ao apresentar-se sob as aparências da disposição inata – deve servir,desta vez, para lembrar que o gosto, enquanto 'faculdade de julgar valoresestéticos de maneira imediata e intuitiva' é indissociável do gosto no sentidode capacidade para discernir os sabores próprios dos alimentos que implica apreferência por alguns deles.” (Bourdieu, 2007).
A partir desta leitura de Bourdieu é possível entender que as classes sociais possuem práticas culturais que legitimam hierarquias implícitas nestas relações. Estabelecem-se aí relações de poder, através de categorias de dominação, que produzem capital social e cultural e se reproduzem socialmente. Estas relações de poder instituem ações organizadas que incapacitam os indivíduos a elaborar estratégias que ultrapassem as relações de desigualdades sociais.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Cap. I, II, III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
__________. A Distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk,2007.

domingo, 5 de julho de 2009

Comunidades Imaginadas


















ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.






GUILHERME HOWES

 Já no começo da apresentação do livro Comunidades Imaginadas, a Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz, aponta para as lembranças e os esquecimentos que marcam os eventos históricos. A Professora alerta que “imaginar” é um exercício tanto difícil quanto necessário, “nações são 'imaginadas', no sentido de que fazem sentido para a 'alma' e constituem objetos de desejos e projeções.” (p.10). Assim, imaginar é necessário, pois faz e dá sentido paraexistência das pessoas e dosgrupos, e difícil na medida em que “não se imagina no vazio e com base em nada” (p. 10), ouseja, os modelos de ação e imaginação, via de regra, estão ancorados em sistemas simbólicos que se afirmam no interior de lógicas comunitárias, afetivas que mobilizam os indivíduos ou uma coletividade em torno de um imaginário comum.


É dessa forma que a Professora apresenta a obra de Anderson: o tema do nacionalismo sendo abordado como um produto cultural, e para compreendê-lo é necessário primeiro entender suas origens históricas, de que forma seus símbolos e seus significados são tratados e transformados ao longo do tempo, resultando em uma profunda legitimidade emocional que resulta de um emaranhado complexo de diferentes forças históricas. Dessa forma, a nação não é só uma questão histórica, mas antropológica, na medida em que é “uma comunidade política imaginada; quase uma questão de parentesco ou religião.” (p. 12). Benedict O'Gorman Anderson, descendente de britânicos, nasceu em 26 de agosto de 1936, em Kunming, na China, no entanto migrou ainda criança para a Califórnia (EUA). Estudou e formou-se na Universidade de Cambridge, e posteriormente registrou-se no programa de estudos sobre Indonésia na Universidade de Cornell, desenvolvendo estudos em Jacarta, durante o golpe de Estado de 1965, e na Tailândia. Atualmente é professor emérito do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Cornell. Irmão mais velho de outro historiador, o inglês Perry Anderson (1938 – ), Benedict possui uma trajetória acadêmica fora dos circuitos tradicionais, os círculos eurocêntricos de abordagem dos fenômenos sociais. Anderson publicou Comunidades Imaginadas, pela primeira vez, em 1983 simultaneamente em Londres e Nova York sob o título Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, sendo reeditado várias vezes e posteriormente ganhando mais dois capítulos. Foi editado no Brasil, pela primeia vez em 1989, e também no Japão, na Alemanha, em Taipei, em Tel Aviv e no Cairo. Foi traduzido para o servo-croata, coreano, espanhol turco, sueco, holandês, norueguês, francês, búlgaro, esloveno, russo, romeno, lituano e catalão, o que permite afirmar que o interesse pela obra transcende as fronteiras do mundo ocidental, atingindo os mais diferentes povos e nacionalidades.
A obra.

O livro de pouco mais de trezentas páginas está estruturado em dez capítulos, além da apresentação, prefácio, introdução, posfácio, referências bibliográficas e (o sempre útil) índice remissivo. Antes de mais nada, convém ressaltar como o autor define nação: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.” (p. 32). Explicando melhor, imaginada pois seus membros jamais se conhecerão ou se encontrarão, limitada porque possui fronteiras finitas e soberana por ser laica e independente de uma dinastia ou de uma ordem divina (p. 32 – 34).
O capítulo I apresenta o que o autor denomina de raízes culturais de uma comunidade. Uma comunidade política imaginária, a nação - e a nacionalidade - é um artefato criado no final do século XVIII, a partir de concepções culturais fundamentais, como a da língua sagrada e do livro, associadas ou desenvolvidas pela revolução de Galileu, o encontro com o Novo Mundo, a revolução da imprensa, o desenvolvimento do capitalismo mercantil. A imprensa vai desempenhar um papel determinante, pois a sua difusão é geradora da simultaneidade, do conhecimento vivo, da reprodutibilidade e da disseminação dos saberes (Anderson, capítulo I). Em outras palavras, as nacionalidades modernas são coesas porque são imaginadas, fazem sentido para os que a imaginam, porque é imaginada individualmente por cada um. Não possuem os antigos vínculos coletivos que tradicionalmente ancoravam a sua coesão. Sem texto sagrado, diminuição da importância da religião, perda da sacralização de um idioma. Fim dos poderes dinásticos, do domínio divino de um rei. Nos novos vínculos imaginados que mantém coesos os grupos, tudo co-existe, fatos (em locais diferentes) interligam pessoas, criando consciência de um compartilhamento temporal.

No capítulo II, Anderson procura entender as origens de uma consciência nacional. O autor aponta que essas origens ancoram-se em uma língua impressa. O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi a interação mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), ema tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística humana. (p. 78). Com isto, o autor vincula o advento da língua impressa à noção de comunidade imaginada. O latim era falado por várias nacionalidades, não sendo um fator comum, a língua

falada possuía uma diversidade incapaz de unificar, portanto o prelo criou um campo unificado “de intercâmbio e comunicação abaixo do latim e acima dos vernáculos falados.” (p. 80). Em outras palavras, “o capitalismo tipográfico conferiu uma nova fixidez à língua” (p. 80), a comunidade se tornou coesa e imaginadamente unificada em torno do papel e da letra impressa. Outro fator importante, foi que este capitalismo tipográfico instituiu línguas oficiais diferentes dos vernáculos administrativos anteriores, criando, através da língua impressa, uma nova mercadoria e remetendo ao sentimento de simultaneidade. Convém ainda observar que essas raízes de uma consciência nacional, advém de “processos inconscientes que resultaram da interação explosiva entre o capitalismo, a tecnologia e a diversidade lingüística humana”. (p. 81). Entendo que o termo traduzido como explosivo refere-se, na verdade, muito mais a um sentido de espontâneo, que resume muito bem a maneira de como uma comunidade é imaginada, neste cenário das nações modernas.

Pioneiros crioulos é como Anderson denomina os novos estados americanos no terceiro capítulo. Pioneiros porque desenvolveram uma noção de nacionalismo antes da Europa e Crioulo (do inglês Creole) porque é como o dicionário Houaiss denomina os descendentes de europeus nascidos nos países hispano-americanos. “Eis, então, o enigma:” diz Anderson na página 88, e prossegue, “por que foram precisamente as comunidades crioulas que desenvolveram concepções tão precoces sobre sua condição nacional [nationness]

– bem antes que a maior parte da Europa?” Por que e como se fragmentaram? Por que vieram a falar o idioma da metrópole? O autor propõe então algumas respostas: estas novas nações criavam movimentos de independência nacional, constituindo-se como unidades administrativas desde o século XVI até o século XVIII. Outro fator determinante se refere à “própria imensidão do Império Hispano-americano, a enorme variedade de solos e climas e, sobretudo, a tremenda dificuldade de comunicação numa época pré-industrial contribuíram para dar um caráter auto-suficiente a essas unidades.” (p. 91). Além disso, a política comercial das metrópoles proporcionava uma fragmentação das colônias em unidades administrativas o que as transformavam em zonas econômicas distintas. Outro argumento utilizado por Anderson, no sentido de criar uma comunidade imaginada nas novas colônias hispano-americanas, é a noção de significado. Nestes novos lugares, co-habitavam pessoas e grupos advindos de diferentes pontos do mundo: malaios, persas, indianos, berberes, turcos, entre outros. Para todos, o novo lugar possuía um mesmo significado. Anderson utiliza a obra de Turner (processo social, ritual de passagem e liminaridade) para demostrar que todos haviam passado por um mesmo ritual de passagem, com objetivos comuns, dificuldades comuns, temores comuns e habitando um mesmo lugar. Mas a grande questão para o autor, no que se refere à sedimentação de uma noção de comunidade imaginada entre as novas nações, é a imprensa. Mais do que isso, o jornal. Através deles desenvolveu-se uma forte contraposição nós X eles. No século XVIII, as gazetas, até mesmo pelo seu caráter popular, eram a forma mais viável, lucrativamente, pelos tipógrafos. Segundo Anderson, “Um traço fecundo desses jornais era sempre o seu caráter local.” (p. 103). Mesmo que os habitantes das cidades de Buenos Aires, Bogotá e Cidade do México não lessem as gazetas uns dos outros, sabiam da existência delas, ou seja, tinham uma consciência comum delas. O autor conclui o terceiro capítulo afirmando que o liberalismo e o iluminismo, idéias correntes da época, e de impacto profundo para as novas nações, por si sós, não eram capazes de conduzir à coesão de uma comunidade política imaginada, “Para esta tarefa específica, o papel histórico decisivo foi desempenhado por funcionários-peregrinos e impressores locais crioulos.” (p. 106).

O quarto capítulo, Velhas línguas, novos modelos o autor expõe como os novos modelos de nacionalismos (1820 – 1920) lincavam-se ideologicamente e politicamente a línguas impressas nacionais dos velhos estados europeus. A nação, afirma Anderson, é uma invenção sem patente, assentada em cópias “piratas” (p. 107), dos novos estados americanos, das línguas impressas do velho mundo. “Do tumulto americano brotaram essas realidades imaginadas: estados nacionais, instituições republicanas, cidadania universal, soberania popular, bandeiras e hinos nacionais etc.” (p. 124). Ou seja, as “cópias”, transformaram-se em modelos legítimos e mobilizadores desses movimentos.

No Capítulo V, Imperialismo e nacionalismo oficial, Anderson explica o que entende por nacionalismo oficial: “a fusão deliberada entre nação e o império dinástico” (p. 131). O autor lembra que foi em meados do século XIX, na Europa, que se formaram esses nacionalismos oficiais. Eles eram historicamente impossíveis de ser pensados separadamente de um nacionalismo lingüístico popular. São uma reação dos grupos dinásticos e aristocráticos, detentores do poder, mas ameaçados de exclusão das comunidades imaginadas populares. “Eis aí um bom exemplo de nacionalismo oficial – uma estratégia de antecipação adotada por grupos dominantes ameaçados de marginalização ou exclusão de uma nascente comunidade imaginada em termos nacionais.” (p. 150).

No sexto capítulo, Anderson denomina de A última onda, uma série de movimentos nacionalistas, principalmente localizados nas colônias da Ásia e África, como “uma reação ao novo tipo de imperialismo mundial, possibilitado pelas realizações do capitalismo industrial.” (p. 197). Em outras palavras, a modernização dos meios de transporte e informação, possibilitados pelo capitalismo industrial, influenciaram sensivelmente as relações entre Estados, entre nações, e entre comunidades e grupos. As viagens, antes feitas por poucos, agora era realizada por multidões. Essa rapidez crescente nas interações culturais adaptou e aprimorou o nacionalismo. Essas alterações modificaram decisivamente os meios de comunicação física e intelectualmente, “as camadas intelectuais descobriram formas alternativas à imprensa, difundindo a comunidade imaginada não só para as massas iletradas, mas para massas letradas que liam em outras línguas.” (p. 198).

No sétimo capítulo Patriotismo e racismo, Anderson tenta entender o apego, o vínculo emocional das pessoas, o sentimento de pertença, pelas suas representações coletivas. Retomando a ideia central do livro, qual seja, a de delinear os processos pelos quais a nação veio a ser imaginada e, uma vez imaginada, modelada, adaptada e transformada. (...) Mas é de se duvidar que a transformação social ou as consciências transformadas, por si mesmas, consigam explicar o apego que os povos sentem pelas invenções de suas imaginações – ou, (...), o porquê de as pessoas se disporem a morrer por tais invenções. (p. 199). Anderson entende que haja uma “naturalização” de elementos que compõem este pertencimento. Essa naturalização é garantida por qualidades “inatas” ou “puras”. As qualidades inatas remetem a “laços naturais”, ao nascimento, não escolhidos conscientemente. Ou noções de “pureza”, vinculadas a causas nobres ou heróicas derivadas de sentimentos fundamentais ou “puros”. No entanto, o autor lembra que a nação é concebida muito mais na língua do que no “sangue”. As pessoas podem entrar voluntariamente ou ser convidadas a entrar na comunidade imaginada, “mesmo as nações mais isoladas aceitam o princípio da naturalização (...) Vista como uma fatalidade histórica e como uma comunidade imaginada através da língua, a nação apresenta-se aberta e, ao mesmo tempo, fechada.” (p. 204). É impossível precisar a data em que nasce uma língua. Via de regra, remontam a um passado imemorial. Anderson afirma que o homo sapiens é, antes de tudo, homo dicens, comprovando que as línguas, além de inerentes à própria civilização, mostram-se mais enraizadas nas sociedades mais do que qualquer outro elemento. “Por meio dessa língua, que se conhece no colo da mãe e que só se perde no túmulo, restauram-se passados, imaginam-se companheirismos, sonham-se futuros.” (p. 215).

Em O anjo da história, nome do oitavo capítulo, Anderson inspira-se na metáfora de Walter Benjamim, para destacar a importância do particular, do efêmero, do pequeno pormenor desprezível, no contesto da história. Para esta história oficial, macro, só interessam os grandes acontecimentos, no entanto, nada do que um dia aconteceu deve ser desprezado. Ancorado na figura de Paul Klee Agelus Novus, o anjo da história representa uma permanente catástrofe. A nona tese de Benjamin conta uma história como uma catástrofe, um amontoado de ruínas e não uma cadeia de acontecimentos rumo ao progresso. O anjo da história vê a barbárie mas não compactua com ela. Ele gostaria de conversar com os mortos, juntar os fragmentos. Mas a tempestade, o progresso, o empurra para a frente. Por fim, afirma Anderson: “o anjo é imortal, e os nossos rostos estão voltados para a escuridão à nossa frente.” (p. 225). O anjo é o próprio historiador.

No nono e penúltimo capítulo, Censo, mapa, museu o autor expõe como essas três instituições de poder conseguem moldar os imaginários dentro da gramática política e ideológica desde o século XIX. Mutuamente interligados iluminam o estilo do pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. Essas três instituições “juntas, (...) moldaram profundamente a maneira pela qual o Estado colonial imaginava seu domínio – a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu território e a legitimidade do seu passado.” (p. 227).

No décimo e último capítulo Memória e esquecimento, Anderson menciona que “Todas as mudanças profundas na consciência, pela sua própria natureza, trazem consigo amnésias típicas.” (p. 278), ou seja, todo exercício de memória pressupõe também um exercício de esquecimento. E é deles, que segundo o autor, decorrem as narrativas. E Anderson cita Braudel, para quem as mortes que importam são aquelas miríades de fatos anônimos, que, somados e tabulados em índices médios de mortalidade por século, lhe permitem mapear as condições de vida (de lenta transformação) para milhões de pessoas anônimas cuja nacionalidade seria a última coisa a ser perguntada. (p. 280).