sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Um povo 'cordial'

Em pesquisa realizada recentemente pela diretoria de análise de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) intitulada O Dilema do Brasileiro: entre a descrença no presente e a esperança no futuro fica demonstrado que o nível de desconfiança das instâncias públicas de deliberação política é muito alto. Ao mesmo tempo, a mesma pesquisa aponta para um alto nível de esperança de que a situação melhore no futuro breve.
 O índice de desconfiança em relação aos partidos políticos brasileiros, por exemplo, tanto em nível nacional quanto tomado singularmente cada região do país superam aos 60%. 
Em relação aos sindicatos, os índices de descrença ficam, em qualquer região do país, perto da casa de 1/3 da população. 
Mais de 40% da população em qualquer região do país, acredita que é inútil qualquer forma de protesto como forma de reação aos poderes instituídos.
Ao mesmo tempo, ao ser perguntado sobre se "Para o Brasil mudar, precisamos que o povo se mobilize?", mais de 70% da população respondeu positivamente
Na segunda parte da pesquisa intitulada O coração do brasileiro a população foi perguntada se "Nos próximos cinco anos, você diria que a sua qualidade de vida vai estar melhor do que hoje?", o índice de respostas positivas são próximas ou maiores do que 50%.
Enquanto assiste p
assivamente aos abusos de poder cometidos desde o golpe político, jurídico e midiático até as atuais compras de votos, percebe a importância da inserção na participação direta de todas as pessoas, o que não é possível, senão sob suas formas de representação democrática (partidos, sindicatos, etc.) nas instâncias deliberativas do poder formal. 
Nos anos 30, no quinto capítulo de Raízes do Brasil, Sergio Buarque chamou a esse traço da nossa sociedade, de "cordial"; pois agimos e pensamos muito mais com o "cór", raiz etimológica de “coração”, do que com a consciência crítica; razão pela qual há muito mais idiotas protestando dentro de museus do que efetivamente em frente ao Congresso Nacional. 
Publicado no jornal Diário de Santa maria em 25 de outubro de 2017
http://diariosm.com.br/um-povo-cordial-1.2006232

A fábula do empreendedorismo

À primeira vista, ser criativo e ter uma grande ideia é o suficiente para empreender e competir na sociedade de hoje. Parece que investir em si próprio, acreditar na própria criatividade e competência é a condição única e suficiente para escapar à tragédia que se instalou sobre as relações entre trabalho, emprego e mercado do capitalismo global.
Entretanto, não se podem ignorar relações anteriores e mais amplas entre essas iniciativas e suas reais determinações. Grandes instituições financeiras fazem aportes milionários sobre estas pequenas inovações empreendedoras. O mundo encantado das startups sempre tem um gigante financeiro que lhe promove. O Uber é um bom exemplo disso, pois tem como suporte a Goldman Sachs, um grande player global detentor de recursos que se comporta discretamente por trás dessas iniciativas criativas, revestindo o velho capitalismo de uma nova roupa chamada empreendedorismo.
Outra gigante que investe em ideias inovadoras e ajuda a criar esta fábula é o Banco Original, cujo CEO, seu executivo chefe mais importante, é o ministro da fazenda do atual governo, que também dirigiu o Banco Central no governo anterior. É o maior incentivador das inovadoras "fintechs", abreviação de financial technology, firmas de startup entrantes no mercado para concorrer com os grandes bancos. São os pequeninos que, como em um passe de mágica, irão assustar os grandes. Não é assim! Os próprios bancos criam as suas plataformas que servem como incubadoras de fintech e as mais bem-sucedidas vão-se incorporando ao próprio patrimônio dos grandes bancos.
Inovar e empreender, são, assim, eufemismos que visam a dar aparência de liberdade à devastação promovida pelas novas formas de extração do valor. São, na maioria das vezes, a expressão trágica das novas relações de emprego ditadas pelo mercado cada vez mais faminto de cérebros, nervos e músculos. Expressam também o descompromisso e a falência intencional do Estado em promover condições dignas de se produzir e trabalhar. Empreendedorismo sem liberdade é uma quimera, e é por essa razão que na sociedade do capital não passa de uma fábula!
Publicado no Diário de Santa Maria em 23 de novembro de 2017
http://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/a-f%C3%A1bula-do-empreendedorismo-1.2008447

Receita de ano novo

Multiplicam-se, por esses dias, mensagens de otimismo e renovação, todas elas ancoradas em uma tal esperança de ano “novo”. Levadas ao limite, chega-se a falar em uma tal “noite da virada”! Pensando sobre tudo isso, fico me questionando sobre o que há de novo? O que irá se renovar dentro de alguns dias? Que virada é essa?
Circula na web um texto falsamente atribuído a Carlos Drummond de Andrade dizendo que quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Diz o autor desconhecido que doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez com outro número e outra vontade de acreditar que dali para adiante vai ser diferente.
Como em um passe de mágica, acredita-se que da noite do dia 31 para o dia primeiro, haverá um verdadeiro e novo tempo começando, e que em nada depende de nós esta mudança. No entanto, na manhã do novo ano efetivamente nada terá mudado. Continuaremos transitando nas ruas esburacadas e obras inacabadas, com os salários parcelados e 13º emprestado, e assistindo na TV à campanha temerária e criminosa da reforma da previdência, essa será uma verdadeira virada contra os trabalhadores.
Convém lembrar que o calendário ocidental é uma invenção burguesa muito recente. Consagra rituais imperialistas e estranhos que nada mais produzem a não ser mais e mais alienação na esperança de um recomeço que nunca há. Ele é o símbolo de um capitalismo exangue e espúrio. Drummond, na verdade, escreveu “Receita de Ano Novo”. Diz ele que para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Nesse sentido, ano novo é todo dia, a cada conquista política e social, quando garantimos nossos direitos, quando asseguramos condições melhores de vida. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, de forma consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
Publicado em 28 de dezembro de 2017
http://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/receita-de-ano-novo-1.2036023