terça-feira, 27 de outubro de 2020

Democracia e serviço público

A qualidade do Serviço Público é um dos pilares de uma sociedade verdadeiramente democrática. A transitoriedade dos governos é a expressão da alternância de poder frente à perenidade do Estado. Nesse sentido, a estabilidade do Serviço Público é a garantia de que o Estado e a democracia permanecem fortes frente ao vai-e-vem dos governos, via de regra, inconstantes e suscetíveis às idiossincrasias ideológicas e ao sabor das incertezas do mercado.


No livro Estatais, Alessandro Octaviani e Irene Nohara explanam um panorama global em que nações economicamente ricas não prescindem do Estado para seu desenvolvimento e ação nos mercados. A China possui 150 mil estatais; Os Estados Unidos possuem 7 mil estatais; a Alemanha, 15 mil empresas públicas; a Coreia do Sul, trezentas; e o Canadá possui 100 empresas nas mãos do Estado.

A empresa estatal é a ação do Estado, é o braço empresarial público na produção de uma sociedade mais igualitária. São investimentos que não visam imediatamente ao lucro financeiro, mas, antes disso, ao bem-estar social de toda a coletividade e lá no fim, a riqueza econômica de toda a nação. São investimentos em infraestrutura, controle de bancos públicos, fomento à biotecnologia, no setor energético, em transportes, logística, mineração, telecomunicações, saneamento e muitos outros. Nesse sentido, todo ataque ao setor público é um ataque à democracia, ao desenvolvimento econômico e uma defesa de privilégios de grupos privados que aparelham o Estado.

Obviamente que existem também os privilégios antidemocráticos, são os “intocáveis”, segundo a última edição do Jornal Extraclasse. O Ministério Público e o Poder Judiciário concentram as maiores remunerações do serviço público. Poupados da reforma administrativa, juízes e promotores públicos gozam das maiores regalias salariais, com direito a auxílios, subsídios e privilégios.

No Brasil, os empregos públicos representam apenas 12,1% da força de trabalho ativa. O jornalista Marcelo Menna Barreto lembra que, ao contrário do discurso de "máquina inchada", a média de servidores do Brasil é menor que a maioria das nações desenvolvidas, segundo informações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial, ou seja, o funcionalismo público brasileiro é dos menores do mundo.

Por tudo isso, cabe reafirmar a importância do serviço público para o desenvolvimento social e econômico da sociedade. As empresas estatais são o braço empreendedor e empresarial do Estado na construção de uma economia forte e competitiva. A defesa do serviço público, a despeito dos ataques ideológicos dos interesses privatistas que querem privilégios para poucos, é uma bandeira ainda em construção, mas um caminho seguro dos que buscam, como dizia um slogan militar dos anos 1960, um “Brasil acima de tudo!”

Publicado originalmente no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/democracia-e-servi%C3%A7o-p%C3%BAblico-1.2270288


segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Rezando, queimando e passando a boiada

 


Nos últimos dias o país tem assistido a cenas assustadoras de boa parte do seu território ardendo em chamas. Uns, revoltados com a falta de controle do Governo Federal sobre as áreas devastadas; outros, justificando que tudo não passa de exagero e alarme da esquerda que faz oposição ao Governo. Em síntese, o que importa é que depois de queimadas, essas áreas ampliarão as zonas agricultáveis e para criação de gado. As queimadas, portanto, possibilitam que se vá passando a boiada.

E por que o Congresso Nacional não age em relação a isso? Ora, em torno de 250 deputados são eles próprios ruralistas ou recebem dinheiro (financiamento de campanha) vindos do setor agropecuário. No Senado, a bancada ruralista soma mais de 30 (eles próprios são proprietários de terra). O Senado supera a Câmara no que se refere ao valor das propriedades listadas. O valor médio no Senado é R$ 1,98 milhão, enquanto na Câmara é de R$ 570 mil. Nas duas casas, boa parte dos proprietários possui mais de uma propriedade rural. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é a maior frente mista atualmente existente, reunindo quase 50% dos membros de cada casa – 246 deputados e 39 senadores.

Pra que se tenha medida de como o arroz e a carne, que no Brasil não são alimentos, mas commodities, se valorizaram nos últimos anos, convém lembrar que a saca de arroz em 2015 valia R$36,00, hoje ela está valendo R$90,00. O quilo do boi gordo valia em 2015 R$4,50; hoje vale R$10,00. Em números redondos, quem planta arroz pode colher 150 sacas por hectare (1 safra por ano). Quem engorda gado pode produzir duas invernadas por ano, sendo uma na “soca” do arroz (a terra remexida depois de colher o arroz), sendo um animal por hectare, e cada animal engorda 1,5 kg/dia, por uns três meses.

Para se ter noção do rendimento disso em Reais, vou usar como exemplo o campus da UFSM, ele tem 1.863 hectares. Suponhamos que ele seja uma propriedade do agronegócio. Seria uma “propriedadezinha” minúscula se comparada aos gigantes do setor agropecuário. O maior proprietário rural do Congresso é o senador Jayme Campos (DEM-MT). Ele tem participação em propriedades que somam 43,9 mil hectares, todas no Mato Grosso. Já o senador Heinze, eleito em 2018, ex prefeito de São Borja e formado em agronomia na UFSM é dono de 1,6 mil hectares. Vou repetir, 1 milhão e 600 mil hectares! Dados colhidos no site De olho nos ruralistas (https://deolhonosruralistas.com.br).

Ou seja, uma área do tamanho do Campus da UFSM, minúscula se comparada com as propriedades dos senadores e deputados e seus financiadores), tira por ano 25 milhões de reais se plantar só arroz; 2 milhões e meio de reais a mais se combinar a lavoura com gado de invernar (se for gado de cria, são outros valores). Esses são os caras que representam a sociedade brasileira no Congresso e sustentam o Governo. É claro que eles não vão interromper as queimadas, pois eles lucram muito com elas; nem o governo, que lhes protege. Nunca tudo esteve tão bem!

Nesses termos, podemos perceber que se qualquer pequeno ruralista está nadando em dinheiro, imagina os tantos “Jaymes Campos” e os “Luis Carlos Heinzes” da vida! Não tenhamos ilusão, tanto faz, pra quem vende a saca de arroz no mercado internacional a quase 100 reais e o boi gordo a quase dois dólares o quilo, se caminhamos pra uma teocracia evangélica fundamentalista. Eles continuarão trocando de Hilux todo ano e rezando pro único deus que lhes importa, o deus mercado. O fim do estado laico também não lhes assusta, pois sempre estiveram e sempre estarão acima da Lei.

Diante disso, podemos constatar que a barbárie está só começando; por enquanto, o Brasil segue rezando, queimando e passando a boiada.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/rezando-queimando-e-passando-a-boiada-1.2263046

As Instituições estão funcionando?

 


No atual momento da sociedade brasileira, muito se tem discutido se as Instituições estão funcionando no sentido de garantir a democracia ou se estão capitulando frente a uma investida contra as garantias democráticas. Nessa discussão, encontrei um interlocutor que garante que elas estão sim funcionando plenamente. Embora o ataque a elas seja real, isso o interlocutor reconhece, a força das instituições tem sido justamente a garantia de continuarmos vivendo numa democracia.

Meu velho e querido interlocutor tem a impressão de elas estarem funcionando porque ele não é uma das mais de 10 mil mortes pela covid-19; porque ele não é profissional da saúde que trabalha sem EPI, porque sua avó ou neta não mora num acampamento do MST atacado pelo governo mineiro; porque não é professor da escola básica obrigado à precariedade do ensino remoto ou ao temerário retorno da voltas às aulas presenciais; porque seu filho ou filha não é balconista no setor comerciário severamente exposto ao contágio, porque não ficou preso sem provas por 580 dias, porque não foi seu neto menino que morreu sem ter recebido de volta o tablet tomado por um juiz parcial e corrupto; porque não depende do auxílio emergencial para se alimentar, porque não foi condenado por ser “integrante de grupo criminoso em razão de sua raça”.

De onde meu renomado interlocutor vê o mundo as Instituições parecem estar funcionando. Falo “parecem” à luz da história, em outros tempos as sociedades demoraram em perceber a corrosão das Instituições democráticas, e, quando perceberam já era tarde demais! A Itália levou 5 anos para imergir no fascismo; a Alemanha mergulhou nele em apenas 5 meses... Isso porque a crise nos anos 30 era mais aguda. Hoje, estamos imersos numa aguda crise humanitária, econômica e política. A profundeza do nosso abismo ditará o ritmo que nos levará ao fascismo aberto.

As Instituições pararam de funcionar desde muito tempo! Pontualmente, quando um deputado do “baixo clero” elogiou um torturador, facínora e abjeto, e não saiu daquela Casa preso. As Instituições hoje apenas reagem. O que meu querido interlocutor chama de funcionamento pleno das Instituições democráticas, em verdade, não se trata da ação delas cumprindo suas prerrogativas, de suas atribuições (justiça, saúde, educação, segurança), o que elas fazem é política! E o fazem em favor daqueles que as aparelharam ao seu favor e benefício. Assim, do ponto de vista da democracia, elas sobrevivem artificialmente, como se estivessem sufocadas por uma pandemia sem controle.

Da mesma forma que as vítimas arrebatadas pela Covid-19, as Instituições estão agonizando apenas à espera de um desfecho final. Negar isso não se aproxima da postura de um frio e lúcido analista como é meu interlocutor; pelo contrário, aproxima-se muito mais do negacionismo e do obscurantismo típicos dos que vêem nesse atual governo brasileiro, alguma possibilidade de futuro. Talvez nossa democracia não resista à Pandemia, e morra sufocada sem perceber que respirava apenas por aparelhos!

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/as-institui%C3%A7%C3%B5es-est%C3%A3o-funcionando-1.2252994

Os 100 anos de Florestan

 


Num 22 de julho, há exatos cem anos, nascia o filho de Dona Maria Fernandes, uma portuguesa imigrada para o Brasil aos 13 anos com o propósito de trabalhar nas lavouras cafeeiras do interior paulista. Depois de um tempo na dura vida rural migra para a Capital e emprega-se como doméstica em uma casa da classe média do Brás, ali engravida de outro empregado da casa. Para esconder a gravidez, muda de emprego. É nesse momento que nasce o pequeno Florestan.

O nome do motorista alemão que trabalhava na mesma casa em que ela, e por quem cultivou uma especial amizade, serviu de inspiração para o nome do próprio filho. A escolha da empregada desagradou a patroa, que era madrinha do menino. Para a patroa o nome Florestan seria mais adequado para gente de classe social mais elevada. Então passa a chamá-lo de Vicente. Assim foi chamado pela patroa o filho de Maria Fernandes. A família rica, da pequena burguesia paulistana, não admitiu que o filho da empregada possuísse um nome tão nobre, o mesmo de um nobre espanhol, personagem de "Fidelio" a única ópera escrita por Ludwig van Beethoven.

O filho de dona Maria, analfabeta, não conheceu o pai, ela foi mãe solo. Seu filho trabalhou desde os seis anos, foi engraxate e conheceu na própria carne o preconceito contra os pobres, a discriminação e o "ódio de classe". A história de Florestan, é a síntese da história de muitos "vicentes" que grassam pelo cotidiano ódio de classe brasileiro. Se Beethoven criou Fidelio, Florestan Fernandes construiu as bases da Revolução Brasileira.

Hoje comemoramos o centenário do seu nascimento, é um dos mais importantes intelectuais brasileiros! Sua teoria social denunciou que a desagregação do regime escravocrata abandonou os libertos à própria sorte, relegando-os às mazelas sociais mais degradantes. A história de sua mãe, e sua própria história, reverberaram profundamente na sua produção intelectual. O menino pobre que se transformou no maior sociólogo brasileiro é o resultado do próprio país que procurou compreender e explicar. Uma nação racista, excludente, misógina e muito desigual.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/os-100-anos-de-florestan-1.2245246

Legítima defesa imaginária

 


Na noite da última segunda-feira (22) o inquérito da Polícia Civil sobre a morte do engenheiro Gustavo dos Santos Amaral, em uma barreira da Brigada Militar em Marau, no norte gaúcho, em abril deste ano, inocentou o brigadiano que atirou no jovem de 28 anos. O delegado Norberto dos Santos Rodrigues entendeu que o policial confundiu o celular que o rapaz segurava, com uma arma. Por isso, para o responsável pela investigação, o que aconteceu naquele momento foi uma “legítima defesa imaginária”, sem nenhum indício de crime. Para o delegado houve um erro, uma série de coincidências infelizes, “uma tragédia, e ponto” aliado ao comportamento da vítima, que estava em pânico.

Procurei no Google uma definição do que fosse a tal “legítima defesa imaginária”: descobri que ela é também chamada de “legítima defesa putativa”, e remete ao fato de o autor imaginar estar em estado de legítima defesa, ao se defender de agressão inexistente. Então tudo fez sentido! O imaginário não se constrói no vazio, imaginamos com base nas vivências que temos, nas referências imagéticas que guardamos na memória, construídas na materialidade da sociedade em que vivemos.

A conclusão sobre a investigação desse crime revela todos os elementos do que conhecemos como “racismo estrutural”, aquele racismo que não se nota explicitamente, e por isso se passa desapercebido, que está nos interstícios da convivência, que é chamado de outros nomes, nunca de racismo, mas é preciso denunciar: é racismo em estado bruto!

Quando um delegado considera um crime de racismo (que é inafiançável) como injúria racial (com pena mais branda), isso é racismo! Quando chamamos de “mi-mi-mi” as reivindicações de pessoas cujos antepassados foram sequestrados em um lado do globo e levados para outro lado e obrigados a trabalhar por mais de 300 anos sem receber salário, isso é racismo! Quando um delegado branco, conclui que um policial branco atira em um homem negro segurando um celular por imaginar que ele está armado e representa “perigo”, isso é racismo!

Na conclusão do inquérito está condensada toda estrutura da sociedade brasileira. Desigual, violenta, escravocrata e extremamente injusta. O indício de crime é flagrante, o que o delegado considera “erro” e “coincidência infeliz”, nada mais que “uma tragédia”, é a morte de mais um trabalhador que morreu pela razão específica de que era preto, uma pessoa a mais na longa história do genocídio negro brasileiro. Se, “vidas negras importam”, de fato, a conclusão do inquérito da Polícia Civil deve ser denunciada como evidência concreta de racismo estrutural, pois sequer imaginamos a sua perversidade!

Publicado no dia 

Jornal Diário de Santa Maria

https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/leg%C3%ADtima-defesa-imagin%C3%A1ria-1.2238075