terça-feira, 10 de março de 2020

Nito Padilha canta Jayme Caetano Braun

Lá pelos idos de 1989/1990 eu era estudante do Ensino Médio em Porto Alegre e na tentativa de arranhar alguns acordes no violão que meu pai tinha deixado (me roubaram em 1997) tinha aulas com o Toneco da Costa. Apesar da competência do Professor Toneco era flagrante minha incapacidade....

Percebendo meu interesse pela música regional ele me convidou para assistir ao lançamento de um LP para o qual ele tinha produzido os arranjos, em que os poemas e payadas do Jayme Caetano Braun
eram musicados e interpretados pelo Nito Padilha

Sempre gostei muito daquele disco. Hoje procurando pelas músicas no youtube, não encontrei nada, então resolvi digitalizar e disponibilizar a duas que eu mais gosto.

ÚLTIMA CLAVADA

PRIMAVERAS

Ficam aqui as imagens do LP autografado (isso era a selfie da época....)







Pitangas & Sabiás

Letra de Nilo Bairros de Brum
Música de Dorotéu Fagundes

EU SEI QUE UM DIA HEI DE VOTAR ÀQUELE RIO
NA PRIMAVERA DAS PITANGAS E SABIÁS
PARA FISGAR AQUELE PEIXE QUE FUGIU
QUANDO A MAROMBA SE PARTIU
LEVANDO UM SONHO DE PIÁ

EU SEI QUE UM DIA VOLTAREI A MERGULHAR
NAS ÁGUAS CLARAS DO MEU DOCE IBICUÍ
E LÁ DO FUNDO VOU TRAZER PRA TE MOSTRAR
AQUELE BRILHO NO OLHAR
QUE SE APAGOU QUANDO PARTI

ANDEI SEGUINDO PLANOS
QUE LÁBIOS CIGANOS
FIZERAM PRA MIM
ANDEI COLHENDO ENGANOS
NO CAMINHO INSANO
DE UM ANDAR SEM FIM
AGORA QUERO RETORNAR AO PONTO DE ONDE PARTI
MAS TUAS ÁGUAS JÁ NÃO SÃO TÃO CLARAS NEM SOU MAIS GURI

In: Clave de Lua e outras letras, de Nilo Bairros de Brum, p. 199

Prefácio - JAYME CAETANO BRAUN - 1990

I
AQUI ME PONHO A CANTAR 
AO COMPASSO DA MILONGA
A HISTÓRIA QUE SE PROLONGA 
DO HOMEM PENINSULAR
QUE UM DIA CHEGOU DO MAR
DAS BRUMAS DO SEU COMEÇO
E ME VIRO DO AVESSO
PRA REVIVER OS ANSEIOS
AS LUTAS E OS DEVANEIOS
QUE POR INSTINTO CONHEÇO
II
E SAIO TRANQUEANDO LOGO
COMO QUEM BUSCA UMA CRUZ
NO RUMO QUE ME PROPUS
AO PASSO QUE MONOLOGO 
E A MIM MESMO ME INTERROGO
PORQUE O INSTINTO ME DIZ
UM PAYADOR DO PAÍS
NADA MAIS QUE UM ÍNDIO BRONCO
COMO VAI FALAR DO TRONCO 
SE NÃO CONHECE A RAIZ
III
ENTÃO ME ENTRANHO NA HISTÓRIA
DA TERRA DA NOSSA GENTE
A SAGA DE UM CONTINENTE
INICIANDO TRAJETÓRIA
NOS RASTREIO DA MEMÓRIA
PAMPA E GAÚCHO IRMANADAS
AS PRIMEIRAS CLARINADAS
ANTECIPANDO COMBATES
O GOSTO AMARGO DOS MATES
ENTREVEROS E PATRIADAS
IV
POSSO VER BEM LONGE ATRÁS
MAS PERTENÇO AO MAIS ADIANTE
NO MILAGRE IMPRESSIONANTE
QUE SÓ O PENSAMENTO FAZ
PRECORRO AS SENDAS DE PAZ
NA VISÃO QUE SE DESCERRA
ESCUTO INÚBIAS DE GUERRA
ACORDANDO TOLDERIAS
E O TROPEL DAS CORRERIAS
DOS QUATRO CANTOS DA TERRA
V
OUÇO BADALAR DE SINOS
E MURMÚRIO E ORAÇÕES
MISTURANDO CANTOCHÕES
NOS ERMOS CONTINENTINOS
E AS PRECES DOS PEREGRINOS
DE OUTRAS PARAGENS TERRENAS
HÁ UM TAQUARAL DE MELENAS
QUE SE AGITAM DESPENTEADAS
E LANÇAS ENTREVERADAS
COM RELÍQUIAS NAZARENAS
VI
VEJO A CRUZ QUE FOI SINUELO
DE UM SONHO COMUNITÁRIO
REPETINDO OUTRO CALVÁRIO
NA SAGA DE COURO E PELO
PRA TORNAR-SE O PESADELO
DAS CORTES ULTRAMARINAS
E ALARGAREM-SE AS RETINAS
NO CONTATO COM A PAISAGEM
PORQUE O TUPÃ DO SELVAGEM 
DESCONHECIA BATINAS
VII
E DA BÁRBARA UTOPIA 
DOS MONGES AMERICANOS
PREGADORES E VAQUEANOS
DAS SENDAS DA GEOGRAFIA
AO LADO DA TOLDERIA
NASCE UM OUTRO MONASTÉRIO
ONDE APARECE O GAUDÉRIO
LIBERTÁRIO E PELEADOR
QUE VEIO PRA SER O SENHOR
DESTE GARRÃO DE HEMISFÉRIO
VIII
ESSA É A HERANÇA DE SEPÉ
NA VERDADE UM REI SEM TRONO
ALGUÉM QUE PENSA QUE É DONO
MAS NA VERDADE NÃO É
MAS TEM GARRÃO E TEM FÉ
NO DEUS PAMPA QUE ELEGEU
SÓ RESTA MORRER MORREU
DEIXANDO A NÓS A MISSÃO
DE DEFENDER ESSE CHÃO
QUE HOJE É NOSSO E ERA SEU
IX
SEGUINDO O TRANCO MACIO
DESTE URUGUAY QUE NÃO PARA
O PRIMEIRO TAPEJARA 
QUE A NATUREZA PARIU
MISTURA DE POTRO E RIO
DE PAYADOR E TROVEIRO
NO MEU REGISTRO PRIMEIRO
HÁ UM ALGO QUE NÃO DISTINGO
COMO É QUE ASSIM MEIO GRINGO
POSSO SER TÃO MISSIONEIRO?

Prefácio, de Jayme Guilherme Caetano Braun. In: TEIXEIRA, Gil Uchôa. Missões: Passado – Presente - Futuro. Porto Alegre: Talento Editorial Ltda, 1990. p. 45.
E no LP "Missões: passado, presente e futuro", de 1990



quinta-feira, 5 de março de 2020

Estação Primeira de Nazaré


Esse ano a Estação Primeira de Mangueira traz à Sapucaí uma oração. Seu samba-enredo é uma forma de rezar e dançar ao mesmo tempo, junta o sagrado e o profano numa mesma narrativa! Já no título do samba-enredo aparece um versículo bíblico: “A Verdade Vos Fará Livre”. E a letra, que conta essa “verdade”, é como uma oração que puxará a Escola no templo sagrado do samba, na festa profana do Carnaval.
Assim como as faces “cara” e “coroa” de uma moeda, o sagrado e o profano são dois pólos de algo que não se pode separar. Embora opostos e por vezes contraditórios, são indivisíveis, complementares. O carnaval mostra muito bem isso, ele é a festa, o impuro, o profano; mas ele é também o período anterior à “quaresma”, o tempo sagrado de purificação à Semana Santa. Não pode existir um sem existir o outro.
No enredo, a Estação Primeira é Nazaré, a terra sagrada, e seu Filho tem rosto negro, sangue índio e corpo de mulher. É um moleque pelintra, menino pobre e maltrapilho, nascido no Buraco Quente, um favelado, como seria Jesus se viesse ao mundo hoje. Filho de uma das tantas jovens mães Marias e dos carpinteiros Josés, desempregados ou precariados pelas perversas relações de emprego, trabalho e garantias sociais.
Hoje, estaria Ele a enxugar o suor de quem desce e sobe ladeira, encharcado de amor que não encontra fronteira. Ouvindo o choro sincopado de quem é silenciado pelo cara fardado. O encontraríamos nas fileiras contra a opressão e no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão. Sofrido e martirizado estaria dependurado em cordéis e corcovados e se perguntando: Mas será que todo povo entendeu o meu recado? Novamente com o corpo cravejado pelos profetas da intolerância, seria posto à Cruz, pois não sabem que esperança é luz que brilha mais que a escuridão.
Senhor, tenha piedade, olhai para a Terra, veja quanta maldade. Sua mensagem seria para todas as periferias, minorias, explorados, trabalhadores. Não permitam que pensem por vocês, ajam por vocês, decidam por vocês, não permitam que os enganem. Descubram os olhos. Diria Ele: “Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha nem Messias de arma na mão! Favela, pega a visão, eu faço fé na minha gente que é semente do seu chão”.
Assim, a Mangueira samba porque o samba é uma reza e se alguém por acaso despreza teme a força que ele tem. Muitos não o compreenderão. Irão julgar profano, insano, inventar mil pecados e restará saber de qual dos lados devemos ficar. Do Moleque pelintra de Nazaré, que nasceu de peito aberto, de punho cerrado, que fez da Cruz seu esplendor, guardamos o exemplo. O perdão, a compaixão, a devoção e a vontade de partilhar o pão. Devemos pensar em tudo isso, que é sagrado, mas como tudo tem dois lados, ficar do lado do samba também!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 05 de fevereiro de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/esta%C3%A7%C3%A3o-primeira-de-nazar%C3%A9-1.2199592?fbclid=IwAR1t_bLVeTJLLS9q76LF3RTEYmBPceivo8yLOjzvl5Q0g3ToxaUKqH2hYgo#.XjuAbIYNkbg.facebook

O veneno está na mesa


Enquanto nas redes sociais e no dia a dia a sociedade se divide entre apoiadores e opositores do Governo, coxinhas contra mortadelas, minions contra petralhas, direita contra esquerda, há uma coisa que unifica a todas e todos. Esteja do lado que estiver, uns mais outros menos, você vai tomar café da manhã, almoçar e jantar, e todo alimento terá um mesmo tempero.
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Nesse 2020, que começa efetivamente nessa semana após o carnaval, toda comida que chegará à mesa dos brasileiros e brasileiras terá um sabor especial: o veneno! Uma Portaria do Ministério da Agricultura, publicada há poucos dias, torna mais fácil a liberação de vários produtos tóxicos que chegarão a nossa mesa. O texto passará a valer a partir de 1º de abril, mas bobo mesmo é quem não tomar noção de sua gravidade.
Os que ganham dinheiro com essa liberação chamam os produtos de agroquímicos, defensivos agrícolas; quem alerta para o seu perigo chama de pesticida, agrotóxico ou simplesmente veneno. Independente do nome, eles estarão, mais do que nunca, temperando os alimentos dos vermelhinhos e verde amarelos.
A partir de agora, o Brasil passa a considerar apenas o “risco de vida” como indicativo de toxicidade. Desconsidera quaisquer outros riscos, como ao meio ambiente; ou à saúde humana, como irritações na pele, olhos, alterações genéticas que podem causar câncer. Ninguém escapa. Veganos comerão veneno no pimentão, no tomate, na batata, no feijão; onívoros comerão veneno na carne de boi e frango alimentados de grãos e medicamentos intoxicados; crianças comem no milho dos salgadinhos ou no trigo dos bolos e biscoitos, os adultos, na massa da pizza, na cerveja, no vinho, no macarrão, enfim, em qualquer receita nutritiva, saudável e envenenada.
Nunca comemos tanto veneno! Desde o ano passado foram liberados 467 novas substâncias sem uma avaliação mais criteriosa da Anvisa, da Pasta do meio ambiente, do Ibama e da Secretaria de Defesa Agropecuária. E esse número em 2020 vai aumentar muito. A justificativa para essas medidas é que tornam a agricultura brasileira mais competitiva e ampliam a concorrência do mercado brasileiro. E é sempre é bom lembrar que para o atual Governo a Nação está acima de tudo.
Assim, esteja você compartilhando nas redes sociais manifestações contrárias ou favoráveis a ele, você comerá muito veneno neste ano. A Portaria 43 do Ministério da Agricultura possibilitará que esse novo ingrediente passe mais ainda a fazer parte da mesa de todas e todos. Se coxinhas e mortadelas são alimentos tão diferentes, em essência chegarão à mesa com um mesmo tempero: sirva-se, o veneno está na mesa!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 04 de março de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/o-veneno-est%C3%A1-na-mesa-1.2206791