quinta-feira, 20 de julho de 2017

Paula desmilitarização - Jornal Semanário

 Jornal Semanário - Bento Gonçalves - jornalista Nicholas Lyra

1.      Na semana passada, tivemos uma ação em Bento Gonçalves, em uma praça do Centro da cidade, que chamou a atenção. Na foto, diversas pessoas aparecem com as mãos pra cima, sendo revistados pela Brigada Militar, que alegou estar combatendo o tráfico de drogas, roubos a pedestres e assaltos ao comércio. No entanto, nada foi localizado nas revistas, e ninguém foi preso por nenhum crime. A linha entre combate a esses crimes e o cometimento de excessos, e até mesmo repressão da sociedade, é muito tênue?
Esse tipo de estratégia tem sido largamente utilizada pelo comando da Brigada. São feitas ações em locais de movimentado passeio público no sentido de impactar a opinião pública sobre ações preventivas da polícia. Se forem executadas a partir de um anterior e estratégico plano de inteligência, tendem a ter resultados muito satisfatórios; entretanto, da maneira como vêm sendo conduzido pela polícia militar, apenas demonstra o tanto que a corporação está enfraquecida, desesperadamente tentando “mostrar serviço” frente a uma população que cobra ações mais efetivas da polícia.
2.      Essas ações não acabam sendo mais para causar uma sensação de segurança na população, quando na verdade os problemas reais de segurança pública não estão sendo combatidos?
Concordo com a afirmação do início da pergunta. É uma tentativa de causar na opinião pública apenas uma sensação de segurança, mas não uma segurança efetiva. A pasta da segurança pública é de altíssimo orçamento e não está entre as prioridades do atual Governo. Investir em inteligência, incrementar planos de carreira, qualificar salários e treinamento, adquirir equipamentos (armamentos e de proteção) modernos e em condições efetivas de uso são de altíssimo custo. Essas seriam estratégias reais de qualificação da corporação e da segurança pública; porém, não está entre os interesses políticos do atual Governo, muito mais compromissado com interesses privados de sucatear e lucrar com o empobrecimento do setor público.
3.      As forças de segurança acabam, de certa maneira, atuando como uma espécie de instrumento de repressão do Estado, como que “institucionalizando” a violência?
As forças de segurança, em especial as militarizadas, são formas tradicionais de repressão política. São institucionalmente constituídas para tratar como caso de “polícia” o que na verdade são casos de “política”. Enredados em formas rançosas de disciplinas toscas, aplicam suas forças punitivas sobre gente comum; sobre manifestantes, grupos sindicalizados que lutam pela garantia de direitos sociais para toda a população. É muito triste assistir brigadianos defendendo um governo que parcela salários e descumpre a constituição, reduz direitos sociais e entrega o patrimônio público ao setor privado. Brigadianos e professores não estão de lados opostos, como aparece nos protestos; mas compartilham as mesmas dificuldades, o mesmo plano de saúde, o mesmo parcelamento dos seus salários.
4.      Quais os grupos são historicamente mais prejudicados por isso?
Os grupos mais enfraquecidos são justamente aqueles que possuem as pastas mais onerosas: segurança e educação. São orçamentos muito altos e categorias muito numerosas. Basta ver o enfraquecimento sindical dessas categorias. Estão despolitizados, desmobilizados, não conduzem a um efetivo enfrentamento político. Este governo penaliza mais severamente o Executivo, pois sabe muito bem o custo político de se indispor com o Judiciário e com o Legislativo. Categorias historicamente enfraquecidas e desarticuladas (professores, policiais civis, brigadianos) são os que já vem mais de perto sentindo os achaques da caneta de um Governador sem compromissos com suas pautas.
5.      Existem teóricos que afirmam que as formas e a cultura de repressão utilizadas pelas Polícias Militares, especialmente em países latino-americanos, ainda seriam heranças das ditaduras militares vividas nos continentes. O senhor concorda com essa afirmação?
De certa forma sim. Os países que nunca foram colônia ou livraram-se do imperialismo pelas próprias forças tendem a ver a militarização como uma forma de civismo público, de soberania nacional; seus corpos militares significam uma defesa da população civil, do patrimônio público, daquilo que pertence a toda população. Já entre países que foram colônias e que saíram dessa condição para a de submissos aos impérios industriais (América Central e Latina, África e parte da Ásia),a militarização tem outra conotação. Historicamente as forças militares sempre foram usadas para achacar a própria população civil. Proteger os governos sub imperiais das forças econômicas dominantes. Vou dar dois exemplos: o exército brasileiro nasceu pelas mãos imperiais que deu a Duque de Caxias a missão de demover a Balaiada no Maranhão. Os “balaios” eram gente comum, civil, cansada de ser explorada pelo governo imperial. Hoje, um bandido, assassino, facínora como Caxias dá nome a escolas. É como se judeus chamassem uma escola pública judia de “Escola Hitler”. Outro exemplo é a nossa própria Brigada Militar. Ela nasceu das forças governamentais interessadas em amassar militarmente as forças Farroupilhas, gente comum, população civil, que lutava contra um governo explorador. O mais inacreditável é que hoje, justamente os Piquetes das Brigadas Militares que abrem os desfiles Farroupilhas dos municípios. Ou seja, aqueles que abrem a celebração máxima da memória histórica farroupilha, são justamente os que foram criados para combater e assassinar bravos heróis farroupilhas. Dessa forma, em ex colônias e nações imperializadas (como as ditaduras militares da América do Sul), as forças militares não formas de defesa da soberania nacional, mas formas de opressão e achaques da própria população civil.
6.      A desmilitarização das polícias talvez fosse um caminho para diminuir esses excessos? É necessário um debate mais amplo sobre o tema?
Sim, é necessário que o debate seja aberto. Embora haja todos estes problemas decorrentes da forma militarizada de constituir as forças policiais, a mesma militarização é ainda uma forma de coesão e ordem de forças tão enfraquecidas. É preciso discutir questões mais profundas, como formas de financiamento público para setores tão importantes como a segurança, como é imperioso também discutir de forma pública e aberta os direitos público e civil que os corpos militares têm de se manifestar em uma democracia. Proibir um militar de fazer greve ainda é como retroceder na história a tempos em que a greve nem era um direito constitucional (1ª metade do século passado)
7.      Essas são as questões principais. Caso haja algum outro comentário a ser feito sobre o assunto, e que não foi perguntado, podes ficar a vontade para colocar. Mais uma vez, agradeço tua atenção e disponibilidade, e aguardo retorno.

Agradeço a oportunidade, at.te,

Da paróquia para o cartório

No último dia 30, o Parlamento alemão aprovou a legalização do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. Foi uma vitória política de peso dos sociais democratas sobre os conservadores. Isso me levou a refletir sobre a legislação acerca do mesmo tema no Brasil. Por aqui, desde 2011, este tipo de “união” está chancelada pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu a “família homoafetiva”, conferindo aos casais homossexuais o direito à “união estável”.
Na Europa ocidental, a chamada “união civil homossexual” é amplamente reconhecida. Na América, o “matrimônio homossexual” é legítimo no Canadá; e nos Estados Unidos somente em 2015 a Suprema Corte legalizou este tipo de união para todos os americanos. Entre os latinos, além do Brasil, apenas seis países reconhecem algum tipo de “união” ou “casamento” entre pessoas do mesmo sexo.
O que chama a atenção, em todos os casos, é a confusão semântica trazida pela forma como se denominam estes tipos de uniões civis e sociedades conjugais. Tende-se a tratar como “coisas de natureza” noções de mundo que são socialmente construídas. O sociólogo Pierre Bourdieu, em “A dominação masculina”, alerta como isso é perigoso. O que é simbólico acaba sendo interpretado como sendo biológico ou inato. É ideológico porque quando se justifica algo biologicamente se está dizendo que não pode ser de outa maneira, e deve ser aceito acriticamente. 
No caso brasileiro isso é peculiar. A expressão “casamento” aparece na Constituição brasileira sete vezes; ele é o nome que nossa Carta Constitucional, em seu Artigo 226, dá à “sociedade conjugal”. O termo “casamento” está naturalizado em nosso Código Legal. Note-se que o termo “casamento” é uma nomenclatura religiosa e com isso carrega consigo uma forte carga conservadora de uma sociedade patriarcal. No texto “Brasil: uma biografia”, a antropóloga Lilia Schwarcz narra que até a vinda do movimento cartorário para o Brasil, concomitante à vinda da Família Real em 1808, os registros civis (nascimentos, óbitos, matrimônios) eram feitos nas paróquias das igrejas católicas. Depois disso, migraram delas para os cartórios de registros civis. O prejuízo social se deu em razão da confusão semântica que esta transição implicou. Nos cartórios, o que as paróquias chamavam de “casamento”, deveria denominar-se “Sociedade Conjugal”, um contrato civil comum.
Mais do que constituir um direito, ao legislar sobre “sociedades conjugais” da vida civil da sociedade, o Estado regula sobre os corpos e a sexualidade, sobre a vida íntima, pessoal e secreta dos sujeitos. Dar nome é atribuir valor, e esse valor nada tem de natural; ele é cultural. Ao migrar para os cartórios, a instituição social do “casamento” carregou consigo perversamente, além da nomenclatura, toda carga moral, semântica e religiosa que lhe constituía: monogâmica, heterossexual, misógina e andronormativa.
Texto publicado no Jornal diário de Santa Maria em 17/07/2017
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/geral-policia/noticia/2017/07/da-paroquia-para-o-cartorio-9832579.html

Militontos

Ao viver tempos de tamanho acirramento de ânimos, fico pensando sobre o que deve nos mover a lutar por tempos melhores, por uma sociedade diferente. A pergunta é: pelo que militamos? O que nos leva às ruas? Quais são as causas? Que país queremos e pelo qual devemos militar? O professor Carlos Lessa, aposentado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se diz assustado pelo que chama de desconstrução da identidade brasileira, e, associada a ela, a ausência de um “projeto nacional”, de um projeto de país, um projeto educacional e cultural claro, um projeto industrial explicitado. Por onde podem prosseguir estas questões? Segundo o professor, saiu de pauta! E mais, há um processo ideológico assustador pelo qual estamos renunciando a ideia do Brasil “ser”. Somos, nesse sentido, militantes sem uma verdadeira causa, sem um projeto político sólido e transformador que a substancie, na verdade então, meros “militontos”.
A palavra militante tem origem Celta. Na Roma antiga, mais especificamente na Península Ibérica, formavam-se grandes fortificações, os chamados “Castrum”, que arregimentavam pessoas para lutar em sua defesa. Durante períodos de conflito, as populações que habitavam o campo aberto se recolhiam nos ditos “castros”, áreas protegidas e reservadas às legiões romanas. Como havia muitas pessoas, e muitas delas se voluntariavam à luta, eram selecionadas pelo critério de um em cada mil. Assim, aquele “milite” escolhido não fazia pesar um rótulo de desonra para os muitos preteridos. Com o tempo, a palavra “milite”, aquele que luta, ganhou valor idiomático, de “coisa principal”.  Militante, portanto, por definição, é aquele que se dedica a lutar pelo que há de mais nobre, por aquilo que realmente valha a pena militar.
Vejamos alguns exemplos ao longo da história, de verdadeiras lutas que moveram militâncias, por causas igualmente grandes, socialmente significativas. O primeiro deles que vem em mente é o da Revolução Francesa, em verdade, uma revolução burguesa. Cansados de sustentar com seu suor, seus nervos, músculos e sangue os privilégios da nobreza, os comerciantes e pequenos industriais burgueses, camponeses, proletariados urbanos, promoveram uma das maiores transformações sociopolíticas que a história moderna registra. Derrubaram a nobreza e refundaram a sociedade francesa sobre novas bases. Com isso, revolveram não somente sua própria sociedade, como também instituíram uma nova gramática social e política que reverberou por todo Ocidente. Como se vê, os militantes que foram à rua, que incendiaram a Bastilha e cortaram a cabeça de Luís XVI, tinham, de fato, uma grande causa: transformar profundamente seu país.
Pouco mais de meio século depois, e na esteira desta última, ocorreu a chamada Primavera dos Povos. As revoluções de 1848, entretanto, tinham nova feição. A burguesia agora não mais era revolucionária, mas conservadora. Buscava preservar uma certa ordem que havia então estabelecido sobre a exploração do trabalho das classes subalternas. Foi a vez da sublevação proletária contra a burguesia industrial. Esgotados pelas condições severas de vida e trabalho, operários e camponeses, das cidades e do campo, tomaram as ruas na França, e de muitos outros países da Europa Central e Oriental, movidos por ideais revolucionários. São os primeiros registros na história de efetiva mobilização proletária. São os explorados tomando as ruas e militando em causa própria. São as ditas “classes perigosas” buscando subverter a hegemonia política da burguesia e seus privilégios. Aliás, talvez seja exatamente isso que explique seu apagamento dos livros didáticos e da narrativa histórica mais tradicional. Em minhas aulas, com facilidade, os alunos lembram nomes de personagens e “heróis” da revolução burguesa de 1789, mas nem mesmo remotamente sabem dizer um nome dos levantes proletários de 1848, militantes comuns, gente do povo, mas com ideais claros; que se opunham à propriedade privada dos meios de produção, sem dúvida, uma nobre causa.
Poderia aqui examinar muitos outros exemplos e mostrar que em cada caso, o que moveu as lutas das pessoas eram causas que realmente revolviam em profundidade suas próprias sociedades. Eram lutas sociais e políticas verdadeiramente militantes! No entanto, vou apenas enumerar algumas, com o risco óbvio de deixar muitas delas de fora. A Revolução Americana, que buscava a própria fundação de uma nação livre e autônoma, uma sociedade que caminharia pelas próprias pernas, independente do Império britânico; a Comuna de Paris, segundo alguns historiadores, a primeira e única experiência socialista da história; a Revolução Russa, que em 2017 completa cem anos e que subverteu completamente toda ordem social ainda assentada em laços da feudalidade; a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, que refundaram os modos de produção econômica de bens sociais de suas nações; a Primavera de Praga, o Maio de 1968 na França, a Primavera Árabe, todos exemplos essencialmente militantes, assentados em lutas ideopolíticas e projetos envolvidos com profundas transformações na sociedade.
Infelizmente este não é o caso brasileiro. Talvez a última seja a mobilização pelas Diretas Já! Na primeira metade dos anos 1980 vivíamos um período de medo e terror, depois de mais de duas décadas de ditadura civil militar. Ali havia uma militância visceral. Lutava-se para sobreviver enquanto sociedade civil. Era votar, ou morrer politicamente, abdicar socialmente. Havia uma militância viva, ativa, voluntária. Conhecia-se o “inimigo”, havia um projeto, e era o de um país democrático. A emenda constitucional foi derrotada no Congresso, mas a militância não perdeu, por isso, sua dignidade.
Depois disso, só fizemos descer os degraus da nossa insignificância militante. O evento “Caras Pintadas” consistiu numa multidão de jovens, maioria deles adolescentes, que ocuparam as ruas em todo o país com os rostos pintados de verde, amarelo e azul, como forma de protesto contra o governo. Embora corroído de corrupção, ruiu porque não interessava mais às elites que o haviam eleito. Foi uma mobilização convocada pela grande mídia, nominada e orquestrada por ela. A população na rua “mobilizada” ofereceu sustentação moral e legitimou o fim do governo. Foi, em verdade, um grande espetáculo midiático, mas nem remotamente um movimento político popular, propositivo e militante. Aquela multidão de jovens não tinha sequer ideia de um projeto de país a propor!
Mais recentemente vivemos as manifestações de junho de 2013, as ditas Jornadas de Junho, expressão tomada lá dos movimentos de 1848 na Europa. Uma população inteira mobilizada, espontaneísta, sem pautas claras, tão explosiva quanto efêmera, e o mais assustador: não admitia bandeiras. Ora, sou de uma geração que lutou nos anos 1980 para tê-las! Sou de um tempo em que só eram admitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, e este era o depositário de todas bandeiras de Oposição e luta contra uma Situação covarde, um governo facínora. Nossas bandeiras eram nossas pautas, nossas bandeiras eram os símbolos concretos de nossos Projetos de nação, nossas bandeiras nos faziam militantes! Por essa razão, um tipo de movimento social que não as admite não tem fundamento, não é militante. A prova disso é que, quinze meses depois das ditas Jornadas, elegemos o Congresso mais conservador e golpista da nossa história; um covil de despachantes dos cartéis econômicos. Composto por uma miríade de deputados, fanáticos, mal-intencionados, como se viu na ocasião do impeachment da presidenta Dilma; à exceção de raríssimos representantes. Um Congresso inepto, medíocre e irresponsável, capaz de promover espetáculos dantescos, como a aprovação da lei das terceirizações e as iminentes reformas trabalhista e previdenciária.

Por último, depois de gravações e delações expetacularizadas pela mídia, milhares de manifestantes que a execravam até então, vão às ruas para protestar, pautados por ela! Para usar uma expressão do sociólogo francês Guy Debord, é a própria sociedade vista como espetáculo. Uma população ensandecida, sem a mínima articulação de um projeto político, ou organização partidária sólida, toma o espaço público acreditando que promoverá alguma mudança substancial. A Direita apoia uma operação da Polícia Federal; a Esquerda pede a renúncia do Presidente, ingenuamente acreditando que reconstituirá a legalidade do processo através do voto direto em um sistema eleitoral apodrecido. Entretanto, nenhuma delas propõe nem apresenta seu projeto de nação. Há interesses, mas não há projetos sociais articulados politicamente. Nesse cenário; de apagamento de luta social sólida, de esparço reascenso de um efetivo movimento de massas que obrigue a classe política organizada, os partidos, a discutir e debater uma verdadeira agenda institucional para o país; não há militância, no sentido histórico político do termo; mas tão somente mobilização, agitação, ativismo espontâneo mostrado e vendido como espetáculo na mídia. E como substância dele, uma miríade de discursos desencontrados, tartamudos, “militontos” sem bandeiras claras, sem projetos evidenciados, sem mesmo saber pelo que se está lutando.
Texto publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 07/06/2017 (sem alterações)
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/economia-politica/noticia/2017/06/militontos-9810405.html