Ao viver tempos de
tamanho acirramento de ânimos, fico pensando sobre o que deve nos mover a lutar
por tempos melhores, por uma sociedade diferente. A pergunta é: pelo que
militamos? O que nos leva às ruas? Quais são as causas? Que país queremos e
pelo qual devemos militar? O professor Carlos Lessa, aposentado pelo Instituto
de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se diz assustado pelo
que chama de desconstrução da identidade brasileira, e, associada a ela, a ausência
de um “projeto nacional”, de um projeto de país, um projeto educacional e
cultural claro, um projeto industrial explicitado. Por onde podem prosseguir
estas questões? Segundo o professor, saiu de pauta! E mais, há um processo
ideológico assustador pelo qual estamos renunciando a ideia do Brasil “ser”. Somos,
nesse sentido, militantes sem uma verdadeira causa, sem um projeto político
sólido e transformador que a substancie, na verdade então, meros “militontos”.
A palavra militante
tem origem Celta. Na Roma antiga, mais especificamente na Península Ibérica,
formavam-se grandes fortificações, os chamados “Castrum”, que arregimentavam
pessoas para lutar em sua defesa. Durante períodos de conflito, as populações
que habitavam o campo aberto se recolhiam nos ditos “castros”, áreas protegidas
e reservadas às legiões romanas. Como havia muitas pessoas, e muitas delas se
voluntariavam à luta, eram selecionadas pelo critério de um em cada mil. Assim,
aquele “milite” escolhido não fazia pesar um rótulo de desonra para os muitos
preteridos. Com o tempo, a palavra “milite”, aquele que luta, ganhou valor
idiomático, de “coisa principal”.
Militante, portanto, por definição, é aquele que se dedica a lutar pelo
que há de mais nobre, por aquilo que realmente valha a pena militar.
Vejamos alguns
exemplos ao longo da história, de verdadeiras lutas que moveram militâncias,
por causas igualmente grandes, socialmente significativas. O primeiro deles que
vem em mente é o da Revolução Francesa, em verdade, uma revolução burguesa.
Cansados de sustentar com seu suor, seus nervos, músculos e sangue os
privilégios da nobreza, os comerciantes e pequenos industriais burgueses,
camponeses, proletariados urbanos, promoveram uma das maiores transformações
sociopolíticas que a história moderna registra. Derrubaram a nobreza e
refundaram a sociedade francesa sobre novas bases. Com isso, revolveram não
somente sua própria sociedade, como também instituíram uma nova gramática
social e política que reverberou por todo Ocidente. Como se vê, os militantes
que foram à rua, que incendiaram a Bastilha e cortaram a cabeça de Luís XVI,
tinham, de fato, uma grande causa: transformar profundamente seu país.
Pouco mais de meio
século depois, e na esteira desta última, ocorreu a chamada Primavera dos
Povos. As revoluções de 1848, entretanto, tinham nova feição. A burguesia agora
não mais era revolucionária, mas conservadora. Buscava preservar uma certa
ordem que havia então estabelecido sobre a exploração do trabalho das classes
subalternas. Foi a vez da sublevação proletária contra a burguesia industrial.
Esgotados pelas condições severas de vida e trabalho, operários e camponeses,
das cidades e do campo, tomaram as ruas na França, e de muitos outros países da
Europa Central e Oriental, movidos por ideais revolucionários. São os primeiros
registros na história de efetiva mobilização proletária. São os explorados
tomando as ruas e militando em causa própria. São as ditas “classes perigosas”
buscando subverter a hegemonia política da burguesia e seus privilégios. Aliás,
talvez seja exatamente isso que explique seu apagamento dos livros didáticos e
da narrativa histórica mais tradicional. Em minhas aulas, com facilidade, os
alunos lembram nomes de personagens e “heróis” da revolução burguesa de 1789,
mas nem mesmo remotamente sabem dizer um nome dos levantes proletários de 1848,
militantes comuns, gente do povo, mas com ideais claros; que se opunham à
propriedade privada dos meios de produção, sem dúvida, uma nobre causa.
Poderia aqui
examinar muitos outros exemplos e mostrar que em cada caso, o que moveu as
lutas das pessoas eram causas que realmente revolviam em profundidade suas
próprias sociedades. Eram lutas sociais e políticas verdadeiramente militantes!
No entanto, vou apenas enumerar algumas, com o risco óbvio de deixar muitas
delas de fora. A Revolução Americana, que buscava a própria fundação de uma
nação livre e autônoma, uma sociedade que caminharia pelas próprias pernas,
independente do Império britânico; a Comuna de Paris, segundo alguns
historiadores, a primeira e única experiência socialista da história; a
Revolução Russa, que em 2017 completa cem anos e que subverteu completamente
toda ordem social ainda assentada em laços da feudalidade; a Revolução Chinesa
e a Revolução Cubana, que refundaram os modos de produção econômica de bens
sociais de suas nações; a Primavera de Praga, o Maio de 1968 na França, a
Primavera Árabe, todos exemplos essencialmente militantes, assentados em lutas
ideopolíticas e projetos envolvidos com profundas transformações na sociedade.
Infelizmente este
não é o caso brasileiro. Talvez a última seja a mobilização pelas Diretas Já!
Na primeira metade dos anos 1980 vivíamos um período de medo e terror, depois
de mais de duas décadas de ditadura civil militar. Ali havia uma militância
visceral. Lutava-se para sobreviver enquanto sociedade civil. Era votar, ou
morrer politicamente, abdicar socialmente. Havia uma militância viva, ativa,
voluntária. Conhecia-se o “inimigo”, havia um projeto, e era o de um país
democrático. A emenda constitucional foi derrotada no Congresso, mas a
militância não perdeu, por isso, sua dignidade.
Depois disso, só
fizemos descer os degraus da nossa insignificância militante. O evento “Caras
Pintadas” consistiu numa multidão de jovens, maioria deles adolescentes, que
ocuparam as ruas em todo o país com os rostos pintados de verde, amarelo e
azul, como forma de protesto contra o governo. Embora corroído de corrupção,
ruiu porque não interessava mais às elites que o haviam eleito. Foi uma
mobilização convocada pela grande mídia, nominada e orquestrada por ela. A
população na rua “mobilizada” ofereceu sustentação moral e legitimou o fim do
governo. Foi, em verdade, um grande espetáculo midiático, mas nem remotamente
um movimento político popular, propositivo e militante. Aquela multidão de
jovens não tinha sequer ideia de um projeto de país a propor!
Mais recentemente
vivemos as manifestações de junho de 2013, as ditas Jornadas de Junho,
expressão tomada lá dos movimentos de 1848 na Europa. Uma população inteira
mobilizada, espontaneísta, sem pautas claras, tão explosiva quanto efêmera, e o
mais assustador: não admitia bandeiras. Ora, sou de uma geração que lutou nos
anos 1980 para tê-las! Sou de um tempo em que só eram admitidos dois partidos,
a ARENA e o MDB, e este era o depositário de todas bandeiras de Oposição e luta
contra uma Situação covarde, um governo facínora. Nossas bandeiras eram nossas
pautas, nossas bandeiras eram os símbolos concretos de nossos Projetos de
nação, nossas bandeiras nos faziam militantes! Por essa razão, um tipo de
movimento social que não as admite não tem fundamento, não é militante. A prova
disso é que, quinze meses depois das ditas Jornadas, elegemos o Congresso mais
conservador e golpista da nossa história; um covil de despachantes dos cartéis
econômicos. Composto por uma miríade de deputados, fanáticos,
mal-intencionados, como se viu na ocasião do impeachment da presidenta Dilma; à
exceção de raríssimos representantes. Um Congresso inepto, medíocre e
irresponsável, capaz de promover espetáculos dantescos, como a aprovação da lei
das terceirizações e as iminentes reformas trabalhista e previdenciária.
Por último, depois
de gravações e delações expetacularizadas pela mídia, milhares de manifestantes
que a execravam até então, vão às ruas para protestar, pautados por ela! Para
usar uma expressão do sociólogo francês Guy Debord, é a própria sociedade vista
como espetáculo. Uma população ensandecida, sem a mínima articulação de um
projeto político, ou organização partidária sólida, toma o espaço público
acreditando que promoverá alguma mudança substancial. A Direita apoia uma
operação da Polícia Federal; a Esquerda pede a renúncia do Presidente,
ingenuamente acreditando que reconstituirá a legalidade do processo através do
voto direto em um sistema eleitoral apodrecido. Entretanto, nenhuma delas
propõe nem apresenta seu projeto de nação. Há interesses, mas não há projetos
sociais articulados politicamente. Nesse cenário; de apagamento de luta social sólida,
de esparço reascenso de um efetivo movimento de massas que obrigue a classe
política organizada, os partidos, a discutir e debater uma verdadeira agenda
institucional para o país; não há militância, no sentido histórico político do
termo; mas tão somente mobilização, agitação, ativismo espontâneo mostrado e
vendido como espetáculo na mídia. E como substância dele, uma miríade de
discursos desencontrados, tartamudos, “militontos” sem bandeiras claras, sem
projetos evidenciados, sem mesmo saber pelo que se está lutando.
Texto publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 07/06/2017 (sem alterações)
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/economia-politica/noticia/2017/06/militontos-9810405.html
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