quinta-feira, 20 de julho de 2017

Militontos

Ao viver tempos de tamanho acirramento de ânimos, fico pensando sobre o que deve nos mover a lutar por tempos melhores, por uma sociedade diferente. A pergunta é: pelo que militamos? O que nos leva às ruas? Quais são as causas? Que país queremos e pelo qual devemos militar? O professor Carlos Lessa, aposentado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se diz assustado pelo que chama de desconstrução da identidade brasileira, e, associada a ela, a ausência de um “projeto nacional”, de um projeto de país, um projeto educacional e cultural claro, um projeto industrial explicitado. Por onde podem prosseguir estas questões? Segundo o professor, saiu de pauta! E mais, há um processo ideológico assustador pelo qual estamos renunciando a ideia do Brasil “ser”. Somos, nesse sentido, militantes sem uma verdadeira causa, sem um projeto político sólido e transformador que a substancie, na verdade então, meros “militontos”.
A palavra militante tem origem Celta. Na Roma antiga, mais especificamente na Península Ibérica, formavam-se grandes fortificações, os chamados “Castrum”, que arregimentavam pessoas para lutar em sua defesa. Durante períodos de conflito, as populações que habitavam o campo aberto se recolhiam nos ditos “castros”, áreas protegidas e reservadas às legiões romanas. Como havia muitas pessoas, e muitas delas se voluntariavam à luta, eram selecionadas pelo critério de um em cada mil. Assim, aquele “milite” escolhido não fazia pesar um rótulo de desonra para os muitos preteridos. Com o tempo, a palavra “milite”, aquele que luta, ganhou valor idiomático, de “coisa principal”.  Militante, portanto, por definição, é aquele que se dedica a lutar pelo que há de mais nobre, por aquilo que realmente valha a pena militar.
Vejamos alguns exemplos ao longo da história, de verdadeiras lutas que moveram militâncias, por causas igualmente grandes, socialmente significativas. O primeiro deles que vem em mente é o da Revolução Francesa, em verdade, uma revolução burguesa. Cansados de sustentar com seu suor, seus nervos, músculos e sangue os privilégios da nobreza, os comerciantes e pequenos industriais burgueses, camponeses, proletariados urbanos, promoveram uma das maiores transformações sociopolíticas que a história moderna registra. Derrubaram a nobreza e refundaram a sociedade francesa sobre novas bases. Com isso, revolveram não somente sua própria sociedade, como também instituíram uma nova gramática social e política que reverberou por todo Ocidente. Como se vê, os militantes que foram à rua, que incendiaram a Bastilha e cortaram a cabeça de Luís XVI, tinham, de fato, uma grande causa: transformar profundamente seu país.
Pouco mais de meio século depois, e na esteira desta última, ocorreu a chamada Primavera dos Povos. As revoluções de 1848, entretanto, tinham nova feição. A burguesia agora não mais era revolucionária, mas conservadora. Buscava preservar uma certa ordem que havia então estabelecido sobre a exploração do trabalho das classes subalternas. Foi a vez da sublevação proletária contra a burguesia industrial. Esgotados pelas condições severas de vida e trabalho, operários e camponeses, das cidades e do campo, tomaram as ruas na França, e de muitos outros países da Europa Central e Oriental, movidos por ideais revolucionários. São os primeiros registros na história de efetiva mobilização proletária. São os explorados tomando as ruas e militando em causa própria. São as ditas “classes perigosas” buscando subverter a hegemonia política da burguesia e seus privilégios. Aliás, talvez seja exatamente isso que explique seu apagamento dos livros didáticos e da narrativa histórica mais tradicional. Em minhas aulas, com facilidade, os alunos lembram nomes de personagens e “heróis” da revolução burguesa de 1789, mas nem mesmo remotamente sabem dizer um nome dos levantes proletários de 1848, militantes comuns, gente do povo, mas com ideais claros; que se opunham à propriedade privada dos meios de produção, sem dúvida, uma nobre causa.
Poderia aqui examinar muitos outros exemplos e mostrar que em cada caso, o que moveu as lutas das pessoas eram causas que realmente revolviam em profundidade suas próprias sociedades. Eram lutas sociais e políticas verdadeiramente militantes! No entanto, vou apenas enumerar algumas, com o risco óbvio de deixar muitas delas de fora. A Revolução Americana, que buscava a própria fundação de uma nação livre e autônoma, uma sociedade que caminharia pelas próprias pernas, independente do Império britânico; a Comuna de Paris, segundo alguns historiadores, a primeira e única experiência socialista da história; a Revolução Russa, que em 2017 completa cem anos e que subverteu completamente toda ordem social ainda assentada em laços da feudalidade; a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, que refundaram os modos de produção econômica de bens sociais de suas nações; a Primavera de Praga, o Maio de 1968 na França, a Primavera Árabe, todos exemplos essencialmente militantes, assentados em lutas ideopolíticas e projetos envolvidos com profundas transformações na sociedade.
Infelizmente este não é o caso brasileiro. Talvez a última seja a mobilização pelas Diretas Já! Na primeira metade dos anos 1980 vivíamos um período de medo e terror, depois de mais de duas décadas de ditadura civil militar. Ali havia uma militância visceral. Lutava-se para sobreviver enquanto sociedade civil. Era votar, ou morrer politicamente, abdicar socialmente. Havia uma militância viva, ativa, voluntária. Conhecia-se o “inimigo”, havia um projeto, e era o de um país democrático. A emenda constitucional foi derrotada no Congresso, mas a militância não perdeu, por isso, sua dignidade.
Depois disso, só fizemos descer os degraus da nossa insignificância militante. O evento “Caras Pintadas” consistiu numa multidão de jovens, maioria deles adolescentes, que ocuparam as ruas em todo o país com os rostos pintados de verde, amarelo e azul, como forma de protesto contra o governo. Embora corroído de corrupção, ruiu porque não interessava mais às elites que o haviam eleito. Foi uma mobilização convocada pela grande mídia, nominada e orquestrada por ela. A população na rua “mobilizada” ofereceu sustentação moral e legitimou o fim do governo. Foi, em verdade, um grande espetáculo midiático, mas nem remotamente um movimento político popular, propositivo e militante. Aquela multidão de jovens não tinha sequer ideia de um projeto de país a propor!
Mais recentemente vivemos as manifestações de junho de 2013, as ditas Jornadas de Junho, expressão tomada lá dos movimentos de 1848 na Europa. Uma população inteira mobilizada, espontaneísta, sem pautas claras, tão explosiva quanto efêmera, e o mais assustador: não admitia bandeiras. Ora, sou de uma geração que lutou nos anos 1980 para tê-las! Sou de um tempo em que só eram admitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, e este era o depositário de todas bandeiras de Oposição e luta contra uma Situação covarde, um governo facínora. Nossas bandeiras eram nossas pautas, nossas bandeiras eram os símbolos concretos de nossos Projetos de nação, nossas bandeiras nos faziam militantes! Por essa razão, um tipo de movimento social que não as admite não tem fundamento, não é militante. A prova disso é que, quinze meses depois das ditas Jornadas, elegemos o Congresso mais conservador e golpista da nossa história; um covil de despachantes dos cartéis econômicos. Composto por uma miríade de deputados, fanáticos, mal-intencionados, como se viu na ocasião do impeachment da presidenta Dilma; à exceção de raríssimos representantes. Um Congresso inepto, medíocre e irresponsável, capaz de promover espetáculos dantescos, como a aprovação da lei das terceirizações e as iminentes reformas trabalhista e previdenciária.

Por último, depois de gravações e delações expetacularizadas pela mídia, milhares de manifestantes que a execravam até então, vão às ruas para protestar, pautados por ela! Para usar uma expressão do sociólogo francês Guy Debord, é a própria sociedade vista como espetáculo. Uma população ensandecida, sem a mínima articulação de um projeto político, ou organização partidária sólida, toma o espaço público acreditando que promoverá alguma mudança substancial. A Direita apoia uma operação da Polícia Federal; a Esquerda pede a renúncia do Presidente, ingenuamente acreditando que reconstituirá a legalidade do processo através do voto direto em um sistema eleitoral apodrecido. Entretanto, nenhuma delas propõe nem apresenta seu projeto de nação. Há interesses, mas não há projetos sociais articulados politicamente. Nesse cenário; de apagamento de luta social sólida, de esparço reascenso de um efetivo movimento de massas que obrigue a classe política organizada, os partidos, a discutir e debater uma verdadeira agenda institucional para o país; não há militância, no sentido histórico político do termo; mas tão somente mobilização, agitação, ativismo espontâneo mostrado e vendido como espetáculo na mídia. E como substância dele, uma miríade de discursos desencontrados, tartamudos, “militontos” sem bandeiras claras, sem projetos evidenciados, sem mesmo saber pelo que se está lutando.
Texto publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 07/06/2017 (sem alterações)
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/economia-politica/noticia/2017/06/militontos-9810405.html

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