quarta-feira, 17 de maio de 2017

Moral e política

O que devemos esperar de um político portador de mandato público, eleito pelo voto da população civil? Que ele seja honesto? Obviamente não! Essa é uma condição prévia, indispensável a qualquer agente público. Deles devemos esperar que desempenhem com competência o mandato político de que são portadores e que representem politicamente a agenda pública com a qual se comprometeram. O professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Paulo Netto, lembra que quando colocamos a moralidade no centro do debate político, como regulador das ações políticas, o resultado é sempre a vitória das forças conservadoras e reacionárias, do conservadorismo ou do reacionarismo político.
Vejamos a alguns exemplos: A política de imigração brasileira do final do século XIX intentava fazer o que a política de Estado denominou de “higienização moral” do povo brasileiro. Era um política racista e criminosa proporcionada pelo Estado. Outro exemplo é a organização estadunidense Klu Klux Klan, que pregava o nacionalismo branco e cujo jornal se chamava “Good Citizen”, isso é “cidadãos de bem”. Era uma organização racista, fascista, xenófoba e deplorável, escondida sob uma fachada moralmente honorável.
Em1954, quando as movimentações políticas culminaram com o suicídio de Getúlio Vargas, as forças de oposição e a grande imprensa bradavam: “sob o Catete há um mar de lama”; necessário aqui lembrar que não houve comprovação de corrupção contra o governo de Getúlio no período em que ocupou a presidência eleito pelo voto popular.
Em junho de 1964, Costa e Silva formulou o pedido de cassação de Juscelino e suspendia seus direitos políticos por dez anos, sob acusação de corrupção e de enriquecimento ilícito; quando na verdade o que os militares temiam era a popularidade do ex-presidente e providenciaram sua saída da cena política. Também em 1964, um movimento conservador que consistiu numa série de “marchas", organizadas principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março do mesmo ano, durante o qual o então presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Este movimento congregou segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e o risco moral que ele representava. O resultado foi a cassação de Jango sob acusação de articular com essas “forças do mal”, os comunistas. Derrubado em um golpe covarde e sórdido.
Com isto quero demonstrar que a questão moral não pode nem deve nunca ser o mote da ação política. No Brasil, historicamente, isto sempre serviu a direita conservadora do status quo e reacionária às forças que visavam à sublevação da ordem burguesa exploradora. Mas há uma outra razão, talvez a principal; é a de que ela sempre significou um mote falso, sob o qual (ou os quais), verdadeiramente se escondiam as reais motivações para tal ações, sempre muito menos nobres e publicáveis.
A partir disso, deve-se crer que não é a moralidade que deve gerir ou que deva determinar o parâmetro do debate político; lembro também que quando o Partido dos Trabalhadores chegou ao governo, em 2003, buscava significar a vitória do bem contra o mal, o triunfo da moralidade e da ética. No entanto, e contraditoriamente, empunhava uma bandeira que historicamente sempre servira contra a marcha dos setores mais pobres. Sempre foi uma bandeira burguesa. Todos vimos no que se transformou!
O Mensalão ocorreu durante o governo Lula, todos sabemos. Entretanto não foi exclusividade sua, mas sim, a gramática política de toda história republicana do Brasil. Devemos também nos perguntar quanto custou a campanha da re-eleição ao governo Fernando Henrique! Devemos buscar entender como transcorreu o tráfico e influências durante a chamada “privataria tucana” no anos 1990 e início dos anos 2000. Convém lembrar que o mensalão veio à tona na época pelas mãos de um aliado da base do governo, o Deputado Roberto Jéferson, arrogando-se parecer um paladino da moral, ao ponto de parecer estar acima da lei. O Presidente, à época, agiu como se não soubesse de nada. Ambas são práticas condenáveis mas não novas em nosso país. Quem tem boa memória lembrará que a prática do mensalão teve início bem antes, em Minas Gerais, sob o governo de Eduardo Azeredo do PSDB.
No julgamento do Mensalão, o Ministro Joaquim Barbosa, aparecia como o “rei da moralidade”, é claro que esta é uma seara polêmica, mas não resta dúvidas de que em sua atuação atropelou sólidas normas jurídicas do país. Há juristas sérios dispostos a defender que Barbosa lançou mão de práticas judiciais e valores normativos no mínimo discutíveis. No entanto, contra corrupção, em nome do “bem” todos acharam honorável, irrepreensível. O resultado mais imediato a este evidente arrepio aos direitos individuais, ocorreu entre estes dois últimos anos e poucas vozes se levantam contra eles. Na atual gramática jurídica, em todas as instâncias, prende-se antes para provar a culpa depois, suprime-se a condição básica do direito, que é levar em conta a inocência prévia, sua primordial presunção.
Dentro destas considerações um juiz bem barbeado vem atropelando sistematicamente os direitos civis e os direitos políticos, enquanto a população aplaude, lota auditórios para ouvi-lo. Acreditam, ingenuamente, que desta vez gente da elite vai para a cadeia. Pensam que não é mais como antes, onde, no Brasil, só se prendiam pessoas integrantes do grupo dos “três pês” (pobres pretos e prostitutas). Quantos de nós acredita que os executivos da Odebrecht ficarão presos? Quantos de nós acredita que devolverão valores desviados? Basta olhar para o trato que receberam os dois fundadores do escritório de advocacia Mossack Fonseca, envolvido no escândalo “Panama Papers” e parceiro das Organizações Globo, presos em um dia e soltos no outro; mostrando a seletividade e o atropelo jurídico da justiça brasileira, genuflexa frente ao mercado e ao capital neoliberal, que, em nome da moral, acredita estar acima da lei.
Assim, fica claro que não é possível entender a atual situação jurídico política se não olharmos para todo este cenário. A política não reflete uma luta do bem contra o mal, mas um complexo jogo de forças mediado por interesses de toda ordem. O que deve pautar as lutas políticas são objetivos claros em relação à política econômica, o papel e a função do Estado diante da mediação de forças; a quem servem e a quem representam os grandes sistemas de informação e comunicação, a grande mídia corporativa.
Talvez agora possamos desconfiar um pouco dos muito “bem intencionados”, defensores dos direitos dos trabalhadores, da “família”, da moral e dos “bons costumes”. Daqueles que parecem comprometidos com os ideais do “povo brasileiro”: uma abstração tão vazia quanto falsa; esta sim, uma verdadeira utopia. Talvez devamos sim dar mais atenção àqueles que, buscaram impedir golpes legais, porém ilegítimos; que aparecem destacadamente na mídia quando são acusados e modestamente quando são absolvidos.
De fato, o que a direita brasileira conservadora; encoberta pelo véu da moral burguesa e visceralmente ligada ao grande capital; traz agora, em suas reformas trabalhistas e previdenciárias, é uma restauração neoliberal, herdada de Thatcher, Reagan e Kohl; legitimada intelectualmente como “ciência”, quando na verdade significa um conhecimento servil, deletério e nefasto para qualquer democracia. Entretanto, faz sentido para justificar moralmente o aniquilamento dos pobres pelos ricos. Produziu-se dentro dessa ordem neoliberal uma série de políticas sociais compensatórias para contrapesar o desmonte do estado de bem estar social, criando na população a sensação de viver dentro de uma grande sociedade justa e igualitária. Privatização, desregulamentação e terceirização em nome de uma nobreza moral, justificadas pelo discurso de que o estado não supre o ônus tributário e previdenciário.
Não existe imoralidade maior do que defender que a solução para o Brasil é o desmonte do Estado nacional, da legislação trabalhista, da redução do Estado brasileiro a uma condição mínima, sob a falsa justificativa de que esta dimensão mínima promoveria uma redução dos custos tributários, securitários e previdenciários. E ainda alegando, mentirosamente, que, com isso, entraríamos na excelência do livre mercado. E mais, que este “livre mercado” teria construído sozinho, por onde quer que tenha ocorrido, uma tal sociedade melhor. Quanta nobreza de propósitos, falsamente, se atribui ao dito “livre mercado”!  
Em nenhuma das suas dimensões, o dito “progresso” humano a uma sociedade mais justa e igualitária pode ser explicado pelo laissez faire, pelo individualismo, pela competição exangue, pelo expontaneísmo do mercado, a mercê de suas forças. Ressalva-se aqui, que o mercado e a iniciativa privadas tem um papel na sociedade, são importantíssimos e centrais para o desenvolvimento social. Entretanto, o mercado deixado ao seu próprio sabor, guiado pelos seus próprios ventos, tende, pela sua própria natureza, distorcer-se, deformar-se. Livre, tenderá ao monopólio, ao oligopólio, à concentração, à exploração inumana do trabalho, à acumulação, à depredação do meio ambiente. Essa série de razões, nos levam a perceber que para que o mercado funcione, é preciso uma entidade, democrática, transparente e pública; controlada socialmente pelo conjunto da população, ou pelas suas maiorias, asseguradas as expressões das minorias na sua devida proporcionalidade. Toda vez que se verificou o dito “progresso” econômico e social sempre foi fruto de uma convergência estratégica entre Estados empoderados, mercados, e uma sociedade civil convergente, em torno de objetivos constituídos democraticamente.

O mercado, a justiça e a economia, em uma democracia, são uma questão política. E o que deve pautar a luta política é quem deve financiar, de que forma, e a que custo deve ocorrer o financiamento público, a justiça, a educação e a saúde; a seguridade e a previdência social. Não se trata de bem ou mal, mas de dever ou poder. A política representativa da democracia burguesa deve ser desvelada e fazer transparecer suas verdadeiras financiadoras. A justiça, e sobretudo a classe política portadora de mandatos não devem ser nem parecer os paladinos da moral, e muito menos desejar estar acima da lei; mas cumprir sua função pública de representar, defender os interesses de quem de fato deveriam ser o representante.

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