1. Como a sociologia
entende esse fenômeno?
A sociologia, como uma ciência social,
busca compreender as causas e razões sociais desse fenômeno. A violência contra
crianças é apenas (infelizmente) mais um tipo de violência marcante em nossa
sociedade. Não é possível pensar este fenômeno descolado da realidade concreta
do qual ele emerge. Alcoolismo, desemprego, desestruturação da esfera doméstica
(não gosto do termo “família”, acho que mais complica do que elucida), ascensão
de valores como força, virilidade. O abuso de autoridade do adulto sobre as
crianças também é encontrado em outras esferas da vida social; nas polícias,
nas escolas, na política, no judiciário, que atropela princípios jurídicos....
Dessa forma, o fenômeno “abuso” é uma constante na vida social brasileira.
Obviamente, uma face visível e cruel é o que denominamos como violência
infantil. Lembro que a Lei do Ventre Livre, foi uma lei abolicionista,
promulgada em 1871 (há apenas 146 anos) e considerava livre todos os filhos de
mulher escravas nascidos a partir desta. Ressalto que como seus pais
continuavam escravos (a abolição legal só ocorreu em 1888), a lei estabelecia
duas possibilidades para as crianças que nasciam livres. Poderiam ficar aos
cuidados dos senhores até os 21 anos de idade ou entregues ao governo. O
primeiro caso foi o mais comum e beneficiava os senhores que poderiam usar e
desfrutar do corpo e do trabalho destas crianças e jovens “livres”. O abuso já
foi, portanto, institucional e legal em nossa sociedade.
2. Vocês acreditam que houve uma mudança nesse cenário nos últimos anos? Se sim, pra melhor ou pior?
O fato de os casos de
violência doméstica e entre eles o abuso infantil, terem-se tornado um fenômeno
público, de comunicação obrigatória quando detectada e um caso de saúde
pública; fizeram com que esse fenômeno ganhasse maior publicidade e
visibilidade. É possível mesmo que crianças e jovens, expostos a este tipo de
violência, há um tempo, não identificassem que estavam sofrendo algum tipo de
violência. Com a visibilidade adquirida pelo fenômeno, aqueles que dela são
vítimas passaram a se ver nessa condição. Dessa forma, embora os casos de
violência possam ter recrudescido ou até mesmo ganhado nova dimensão, é
possível crer que sua visibilidade parece ser a maior responsável pelo aparente
aumento percentual. Dito de forma mais direta, não se pode saber com precisão
se os casos aumentaram, mas é certo que as vítimas estão mais encorajadas a
denunciar. Quando um jovem ou criança ligar para o nº da denúncia, saberá que
do outro lado da linha haverá alguém disposto e preparado a lhe ouvir e acreditar
no seu relato. Finalizando, não creio que os casos tenham diminuído, mas há
possibilidades de um acolhimento mais imediato e preparado para as vítimas.
Vivemos em uma sociedade violenta em sua
essência. Mesmo antes da chegada dos europeus, a guerra, a violência era
central nas relações entre os diferentes grupos que compunham as sociedades tribais
(as matrizes nativas indígenas). Entretanto, em nosso projeto de nação, na
construção do imaginário social de uma nação independente era importante erigir
o mito de um “país abençoado por deus e bonito por natureza”. Uma utopia falsa.
Historicamente, como povo, como população, somos, inversamente, uma país
“esquecido por deus” e “violento por natureza”. A violência, dessa forma, está
em nosso “dna social”, na nossa construção identitária, étnica. Negamos isso, é
claro. Através da linguagem, buscamos sempre, atenuar esta violência. Chamamos
verdadeiros crimes de trânsito de “acidente”, guerras civis de “revoltas” ou de
“levantes”, exploração cruel de trabalho assalariado de “colaboração”, golpes
políticos de “impeachment”, veneno agrotóxico de “defensivo agrícola”, e assim
por diante... Praticamos violência não só contra crianças, mas contra todos os
vulneráveis em nossa sociedade: velhos (que chamamos suavemente de idosos),
contra deficientes físicos, contra doentes, contra mulheres, contra negros.... nossa
violência é endêmica, histórica. Conheço a realidade concreta da escola, mas já
li sobre situações semelhantes na saúde, na literatura da psicologia. Velhos,
crianças e doentes não denunciam as violências que sofrem temendo ser expostos
a mais, e mais cruéis violências. Fecha-se aí um ciclo vicioso de mais e mais
violência. Creio que seja, dessa forma, a razão pela qual somos uma sociedade
violenta, e as crianças como parte desta sociedade, vulnerável que é, sofre
severamente essa violência.
4. Como é possível essa criança viver em sociedade após um fato destes ter ocorrido?
Toda situação de abuso é
uma situação de trauma. Este é um crime de determinação social mas vivido
individualmente, solitariamente. Acredito que quem está mais preparado para pensar
esta questão seja alguém da psicologia. Sociologicamente pode-se pensar em
criar às vítimas situações de acolhimento e proteção. É preciso proporcionar à
criança ou ao jovem vítima, situação de apoio de psicólogos, professores,
assistentes sociais; técnica e pedagogicamente preparados para lidar com estas
situações.
5. O Sr acredita que é possível reverter esse cenário para que daqui alguns anos isso não aconteça mais?
Não creio que isso se
resolva de forma tão rápida ou imediata. A violência em nossa sociedade não é
algo circunstancial, mas estrutural. Sendo assim, essa é uma situação que não
se resolve em anos, ou uma década; mas em um espaço temporal bem mais alargado.
Uma sociedade se renova e se atualiza a cada nova geração, algo em torno de 20
a 25 anos. Cada nova geração nasce, cresce, é educada e aprende novos preceitos
legais diferentes dos das anteriores. É a isso que denominamos como
transformações sociais. Daqui algumas décadas possivelmente vivamos em um tempo
onde justiça social seja um valor do qual que ninguém mais duvide, que nós
cumpramos as leis de trânsito, que haja equidade entre homens e mulheres, que não
mais acreditemos em diferenças raciais, e que não sejamos mais capazes de
abusar física e psicologicamente de crianças, velhos e doentes.
pauta jornalista Laura Gross
http://www.jornalsemanario.com.br/noticia/abuso-sexual-infantil-bento-ja-registra-17-casos-em-2017
http://www.jornalsemanario.com.br/noticia/abuso-sexual-infantil-bento-ja-registra-17-casos-em-2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário