quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Gaúcho a pé.





CYRO MARTINS E O GAÚCHO A PÉ.



GUILHERME HOWES



Neste dia 05 de agosto celebrou-se os 101 anos de nascimento do escritor Cyro dos Santos Martins, o autor de obras como a Trilogia do Gaúcho a Pé. Cyro Martins nasceu em Quaraí, em 1908, e viveu até dezembro de 1995. Literato desde muito jovem, escreveu os primeiros contos já aos quinze anos. Forma-se médico aos vinte e seis anos e aos quarenta e sete, especializa-se em psiquiatria e psicanálise.
As três obras que compõem a sua trilogia foram compostas em diferentes fases de sua vida. A primeira delas, Sem Rumo, que conta a história do protagonista Chiru, é de 1933, Porteira Fechada, do peão João Guedes, de 1944 e Estrada Nova, que narra a trajetória de Janguta e seu filho Ricardo, de 1954. Como afirma o próprio Cyro no prefácio de Sem Rumo (2008), “essa trilogia que não nasceu trilogia”, mas assim passou a ser denominado pelo mercado editorial, ao longo dos anos, “enriqueceu-se de densidade humana de livro para livro, (...) quase todas as figuras representativas das diversas camadas da população da campanha rio-grandense das cidades estão, aí, em desfile, com o seu pitoresco, com as suas altaneiras, com seus trapos, com suas humilhações, enfim, com os seus aspectos formais e essenciais, principalmente.”
O gaúcho, peão de estância, descrito nas páginas de Cyro, em nada remetem aos homens da campanha, heróis, por exemplo, da obra Contos Gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto. Blau Nunes, o vaqueano é uma espécie de super-homem do campo aberto, ao passo que João Guedes, de Cyro Martins, é o espoliado, expulso de sua terra, desfeito de seu cavalo, torna-se um gaúcho a pé(2), destituído de sua identidade.. Ambos personagens estão ancorados no mesmo universo rural, primitivo, pastoril da campanha sul rio-grandense, entretanto são diferentes na maneira como vivenciam e como representam suas práticas, sua cultura, e a sua própria vida.
Tenciono fazer deste entrecruzamento entre Antropologia, História e Literatura, um exercício possível. Para a antropologia, a obra de Cyro interessa na medida em que apresenta um panorama da cultura, de uma gente e de um lugar, em um determinado tempo. Entretanto, a obra é uma narrativa literária, não inserindo-se, portanto, no campo da historiografia. E é nesse ponto que reside o problema da possibilidade. A historiadora Sandra Pesavento, professora da UFRGS, falecida recentemente, afirmava que “a narrativa ficcional de Cyro Martins (...), pode fazer a própria história se questionar.(...) pode alertar ao historiador que a literatura lhe serve como traço, indício, registro, fonte, porque não? Não para encontrar fatos ou confirmar presenças de personagens, mas para poder dar a ver sensibilidades de um outro tempo, para possibilitar o entendimento de como os homens representavam a si próprios e ao mundo em uma determinada época.” Ao ler a história de João Guedes, personagem central de Porteira Fechada, entende-se que a narrativa ficcional do autor não está em sintonia com o discurso histórico da época e tampouco em correspondência com as representações acerca do gaúcho campeiro, idealizado pela literatura, pela poesia e pelos movimentos culturais, endossados por aquele discurso oficial da história.
Evidentemente João Guedes não é um personagem histórico. Mas ao representar um tipo social, o peão de estância, aí sim, um tipo humano com evidência histórica, o peão João Guedes desencadeia uma série de ações, verossímeis, possíveis, coerentes, que dão conta de uma realidade, imaginada e simulada pelo autor, e re-vivida pelo exercício da leitura. Cabe aqui esclarecer que entendo a representação como a presentificação de uma ausência, uma ação positiva na produção de significados, que a partir da imaginação, de uma atividade criativa, se produz interações reais no mundo real. Com isso, estabeleço que a representação ficcional do gaúcho campeiro na obra de Cyro Martins, certamente não possui estatuto de verdade histórica, mas ao representar esta realidade, o discurso literário cria uma coerência de sentido e fornece uma versão possível e plausível do real. Dessa forma, voltando à Pesavento, “a narrativa literária (ou poética) fala do que poderia ter acontecido, e não aconteceu, domínio este reservado ao discurso histórico.” Dito de outra forma, não é necessário haver correspondência entre o discurso literário e a realidade, mas é necessário ser plausível, criando um eixo coerente entre a narrativa e a leitura, entre o autor e o leitor.
Segundo Carlos Jorge Appel, professor de Literatura, “Na recriação da realidade, na construção do universo ficcional (...), os pontos de vista dum autor não podem ser considerados frutos de uma decisão pessoal, dependendo apenas de sua subjetividade.” Para Appel, incide no modo de representar a realidade, as condições histórico-culturais, os hábitos, os costumes, assim como demais condições subjetivas que possam ter influenciado o autor no momento da criação. Essa subjetividade, essa relação intrínseca entre autor-tempo-espaço, ao contrário de desmerecer o valor histórico-literário da obra, a valoriza. Essa relação indelével do autor com as condições em que compôs sua narrativa, é justamente o que dá à obra seu caráter documental, de uma espécie de “fotografia” de um determinado instante.
Não quero com isso, estabelecer hierarquias sobre verdades históricas, procurar essencialidades, legitimar autenticidades, ou investigar qual o “verdadeiro” gaúcho. Me interessa, isto sim, refletir sobre aquela interface entre a Antropologia a História e a Literatura. Nesse sentido, entendo que a História não deva prescindir de um diálogo com a Literatura. Via de regra, esta última, possui a dinâmica das narrativas, possibilita interpretações, constrói discursos sobre o real, produz não só representações, mas práticas, que suscitam a reflexão e o debate, descortinando novos ângulos de análise sobre o mundo, sobre os homens e sobre um determinado tempo.



2Termo cunhado pelo próprio Cyro Martins, em 1935, quando afirma que a literatura “afinou minha sensibilidade para a pesquisa da alma humana, sobretudo porque nunca fiz regionalismo no sentido pitoresco e sim para buscar o que havia de universal naquele homem singular que era o gaúcho a pé.