terça-feira, 26 de julho de 2022

Qual o próximo ato do golpe em marcha no Brasil?


O conhecido golpe de 1º de abril de 1964 não começou a ser arquitetado em março daquele ano, pelo contrário, se olharmos com atenção, podemos perceber que já há investidas em sua direção desde mais de uma década antes. Em outubro de 1950, Getúlio Vargas vence a eleição e volta ao governo pelo voto popular com 48,7%. O retorno de Getúlio ao poder desagradou profundamente as elites econômicas que acreditavam ter se livrado de um governante com forte apoio popular, eleito por um partido trabalhista, o PTB, e consagrado por uma política de aguda digestão moral da pobreza.

Ouve-se dizer que Lacerda mencionava que Getúlio não podia sequer ser candidato. Se fosse, não poderia ser eleito, se o fosse, não poderia tomar posse, se tomasse não poderia governar. E essa foi mesmo a tônica da eleição, da posse e dos primeiros anos do governo de Getúlio. Nunca teve sossego, o golpe sempre esteve à espreita. A expressão “mar de lama” era largamente utilizada pelos opositores do presidente Getúlio Vargas para designar a corrupção que teria caracterizado seu segundo governo. As tentativas de derrubá-lo nunca cessaram. Em agosto de 1954 o velho caudilho ofereceu seu corpo suicidado e martirizado para deter o golpe então em curso. Adiou. Diante daquela comoção popular não havia clima político para concretizar um golpe contra a classe trabalhadora.

Mais adiante, entre 25 de agosto e 7 de setembro de 1961, Leonel Brizola comanda a Campanha da Legalidade contra uma tentativa dos ministros das Forças Armadas de veto à posse de Jango, automática e constitucional, decorrente de uma carta de renúncia de Jânio Quadros, provavelmente escrita depois de uma forte bebedeira. A Campanha teve sucesso e mais uma vez a concretização do golpe em curso foi adiado.

Assim, ao tentarmos compreender o “Golpe de 64” não podemos prescindir de um escrutínio minucioso de suas distintas “fases” (anteriores e posteriores) que percorrem um tempo histórico de aproximadamente 18 anos: eleição democrática de Getúlio em 1950, seu suicídio em 1954, a Campanha da Legalidade em 1961, o Golpe propriamente dito em 1964 e seu recrudescimento, com o Ato Institucional nº 05, em dezembro de 1968.

Creio que, pelas mesmas razões, para compreendermos o golpe em marcha no Brasil nesses meados de 2022 devemos retroceder até a eleição de Dilma Rousseff em outubro de 2010. Para que cada fase dessa análise ganhe contornos conceituais tomo de inspiração a criativa nomenclatura criada pelo jornalista conservador Elio Gaspari ao nomear as distintas fases da Ditadura Militar-Empresarial decorrente do golpe de 1964: “A ditadura envergonhada”, enquanto ela não se assumia como tal; “A ditadura escancarada”, sua fase mais brutal; “A ditadura derrotada” pelas eleições de 1974; “A ditadura encurralada” pela abertura política e “A ditadura acabada” pelo governo de transição do general Figueiredo entre 1978 e 1985.

Chamo de “golpe encapsulado” o tempo decorrente entre a primeira eleição de Dilma e os movimentos de junho de 2013. A partir daí denomino de “golpe edulcorado” o interstício temporal que pinta o golpe com as cores falsamente benévolas da revolução colorida em curso no Brasil. Em 2016, com a derrubada de Dilma, num golpe sórdido, midiático, parlamentar, misógino, “com Supremo e com tudo”, o impeachment toma os contornos de um “golpe legalizado”. Dois anos depois, com a eleição ilegítima de um títere dos valores sociais mais deletérios, um espantalho miliciano com cérebro de chimpanzé, tem-se o “golpe institucionalizado” em toda sua plenitude. Quem não for homem, branco, social e economicamente bem situado compreende com muita facilidade qual o sentido da eficácia do funcionamento das instituições no transcurso desse golpe atualmente em marcha.

No instante mesmo da eleição de Dilma Rousseff à sucessão dos dois governos de Lula iniciou-se o “golpe em câmera lenta”, nas palavras de Vladimir Safatle. Obviamente sempre houve conspirações contra um governo que a despeito dos ganhos financeiros da burguesia, sempre demonstrou uma aguda sensibilidade com as camadas mais pobres da sociedade, com os trabalhadores, com a educação, com a democracia, com a institucionalidade. No entanto, como alerta Alysson Mascaro em “Crise e Golpe”, o golpe foi quantitativo e não qualitativo na medida em que se trata materialmente de um “rearranjo no seio da concorrência entre frações do capital internas e internacionais” sumariamente compreendido como “um golpe de classe burguês contra as classes trabalhadoras” (MASCARO, 2018. p. 91). Explico. De conjunto, as mesmas forças que atuavam nos interstícios do poder continuaram sua atuação. O que alterou substancialmente foi a relação entre capital e trabalho, entre burguesias (mercado financeiro, agronegócio, ramo industrial) e a classe trabalhadora. É um modelo de golpe que “mais atualiza suas possibilidades que propriamente altera suas bases” (ibidem). Em resumo, o que mudou não foi a qualidade do regime político econômico, mas sim, a quantidade de mais valor da força de trabalho que as burguesias extraem da classe trabalhadora, via reformas trabalhista e previdenciária, austericído fiscal e corrupção normativa, isto é, normatizada por aparatos legais antidemocráticos formalmente legais e essencialmente corruptos, pois corrompem o pacto burguês democrático. 

O golpe ali já está latente, mas encapsulado, portanto, não visível! Só o tempo decorrido desde então nos permite vê-lo com nitidez. Havia já desde então um golpe em curso no Brasil. No entanto, ele eclode de seu casulo com as manifestações de junho de 2013. Ali o golpe aparece para o público em todo seu esplendor, mas edulcorado com as tonalidades benévolas de uma revolução colorida pretensamente espontânea e apartidária, “pelo Brasil”, sem bandeiras. Ora, sou de uma geração que lutou para tê-las, tenho 51 anos e vivenciei na escola os anos derradeiros da Ditadura civil militar, quando não eram possíveis os direitos políticos. Portanto, sempre entendi como temerárias as ações e os discursos da narrativa chauvinista, ufanista e messiânica dos movimentos iniciados naquele junho de 2013.

Foram precisos três anos de maturação para que o golpe edulcorado pela revolução colorida incorporasse um cariz de legalidade. O gângster que presidia a Câmara soube identificar o momento mais favorável para pautar a votação do impeachment da presidenta Dilma, eleita democraticamente e derrubada por um golpe legalizado pelas instituições que sempre funcionaram, se bem que somente em favor de quem lucra com a mais valia extraída da classe trabalhadora. É simbólico que o mentor do golpe, e seu principal beneficiário, assumindo o cargo da presidência, seja um consagrado professor de Direito Constitucional. O golpe está então legalizado, é saudado pelas classes dominantes, pela mídia burguesa, venal, de cativeiro, pode-se então chama-lo de impeachment. Um crime perfeito!

No entanto, o serviço ainda não está acabado, é preciso ainda institucionalizá-lo, recolocar a democracia nos trilhos, deslizar de um governo de transição, para um governo que tenha votos para chamar de seus. O golpe institucionaliza-se em 2018 com a eleição de alguém disposto a implantar a agenda ultraliberal, internamente tocada pela lúmpem burguesia nacional, associada e à serviço do capital internacional. Reconheçamos que não foi uma tarefa simples. Para tanto, as classes dominantes, à custa do sequestro das Instituições, prenderam inconstitucionalmente o candidato que as pesquisas sinalizavam na época como vitorioso, impediram-no até mesmo de falar, com medo de que sua voz, rouca e perigosa, reverberasse nos ouvidos da classe trabalhadora fazendo-a votar no candidato comprometido com interesses populares. O juiz responsável pela prisão, recebeu, como prêmio, o cargo de Super Ministro da Justiça no governo do candidato beneficiado com seus julgamentos espúrios. Tanto o ex-juiz, como suas sentenças e o próprio processo, tempos depois, foram considerados suspeitos e sem validade jurídica pela Suprema Corte brasileira, decisões essas confirmadas por tribunais internacionais de justiça.

Não houve eleição em 2018. O que ocorreu foi um protocolo eleitoral chancelado pelo STE a despeito de suas ilegalidades. Nesse sentido, somos governados atualmente por um governo sem nenhuma legitimidade, decorrente de um processo eleitoral eivado de ilegalidades. E tudo isso dentro do campo institucional. É por isso que denomino essa fase de golpe institucionalizado. No atual momento da sociedade brasileira, muito se tem discutido se as Instituições estão funcionando no sentido de garantir a democracia ou se estão capitulando frente a uma investida contra as garantias democráticas, mesmo que formais e burguesas.

Alerto aqui que muitos intelectuais tem a impressão de que elas estão funcionando porque eles não figuram entre uma das quase um milhão de vítimas da Covid-19; porque não são profissionais da saúde que trabalham sem EPI nos postos de saúde pelo Brasil, porque suas avós ou netas não moram num acampamento do MST, ou numa aldeia indígena, achacados pela retórica de ódio do governo; porque não são professores da escola básica obrigados à precariedade do ensino remoto ou ao temerário retorno da voltas às aulas presenciais; porque seus filhos ou filhas não são balconistas no setor comerciário severamente expostos às perdas de direitos trabalhistas, porque não ficaram presos sem provas por 580 dias, porque não foi seu neto ou neta que morreu sem ter recebido de volta o tablet tomado por um juiz parcial e corrupto; porque não depende do auxílio emergencial para se (sub) alimentar, porque não foi condenado por “atos indeterminados”. Do patamar de onde esses intelectuais veem o mundo as Instituições parecem mesmo estar funcionando. Falo “parecem” à luz da história, em outros tempos as sociedades demoraram em perceber a corrosão das Instituições democráticas, e, quando perceberam, já era tarde demais! A Itália, por exemplo, levou 5 anos para imergir no fascismo; a Alemanha mergulhou nele em apenas 5 meses. E essa diferença se deu porque a crise nos anos 30 era mais aguda do que na década anterior. Hoje, estamos imersos numa aguda crise humanitária, econômica e política. A profundeza do nosso abismo é que ditará o ritmo que nos levará à próxima fase do golpe em curso, ao fascismo aberto.

As Instituições pararam de funcionar desde muito tempo! Pontualmente, quando um deputado do “baixo clero” elogiou um torturador, facínora e abjeto, e não saiu daquela Casa preso. As Instituições hoje apenas reagem, tentando se reerguer das ruínas que se tornaram. O que os intelectuais burgueses chamam de funcionamento pleno das Instituições democráticas, em verdade, não se trata da ação delas cumprindo suas prerrogativas, de suas atribuições (justiça, saúde, educação, segurança), o que elas fazem é política! E o fazem em favor daqueles que as aparelharam ao seu favor e benefício. Assim, do ponto de vista da democracia, elas sobrevivem artificialmente, como se estivessem sufocadas pelo golpe em marcha.

Diante disso, uma pergunta: qual o próximo ato desse golpe em marcha no Brasil? Temos a oportunidade de interrompê-lo em 2 de outubro elegendo Lula no primeiro turno. A eleição de Lula em 2 de outubro será um primeiro degrau de uma longa escadaria que tentaremos subir nos próximos anos. Um virtual e possível próximo governo Lula terá novamente a tarefa de retirar o Brasil do mapa da fome. Possibilitar à classe trabalhadora sua reorganização, promover o reascenso das massas, autônomas e emancipadas para decidirem os rumos da política econômica. Caso contrário, mergulharemos num abismo sem fim cuja perspectiva é imprevisível. Mesmo em um possível segundo turno há o perigo de uma escalada de violência civil sem precedentes. Se for isso, não faço ideia de qual verbo no particípio passado nominará o próximo ato do golpe em curso. Mas a eleição de Lula no próximo 2 de outubro certamente imporá um intercurso ao golpe em marcha, e aí, talvez, poderemos denominar o próximo ato de golpe interrompido, cancelado, derrubado. Para marcar posição, precisamos antes estar vivos, e nossa vida, nesse momento, depende da eleição de Lula em primeiro turno no próximo dia 2 de outubro.

Publicado (com algumas alterações) na Revista Úrsula em outubro de 2022

https://revistaursula.com.br/politica/como-interromper-o-golpe-em-marcha-no-brasil/