sexta-feira, 29 de maio de 2020

Anti-intelectualismo


Nunca antes, na história da sociedade brasileira, assistimos a tamanha rejeição ao que estou chamando de intelectualismo, uma forma de conhecimento social e historicamente reconhecido como válido. Grassa pelo cotidiano, pelos meios de comunicação, pelas redes sociais uma verdadeira apologia à ignorância, ao anti-conhecimento, ao conhecimento suspeito ou infundado, à falsidade deliberada e à desinformação. Tenho uma hipótese: essa onda contra o intelectualismo está assentada sobre três eixos, que se retroalimentam e são o combustível da ignorância. 
O primeiro deles é o negacionismo, a negação da ciência como forma válida de conhecimento. A Ciência, desde a Ilustração, assumiu a prerrogativa de explicar o mundo aos homens, ela se diferencia dos saberes comuns por ser uma forma organizada de explicação, orientada metodologicamente e fundamentada empiricamente. O senso comum é também uma forma de conhecimento, porém não possui estrutura organizativa nem orientação metodológica definidas. Dessa maneira, não se rejeita ou refuta uma forma científica de conhecimento apenas negando-a com base no senso comum, mas apresentando em seu lugar algo que lhe substitua ou complemente, que seja organizado sistematicamente, com orientação metodológica clara e possa ser empiricamente demonstrado. Os problemas da ciência só se resolvem com mais ciência. 
O segundo eixo que sustenta o anti-intelectualismo é o obscurantismo. Ao negar a factualidade histórica e teorias científicas consolidadas os anti-intelectualistas propõem colocar em seus lugares pretensas verdades infundadas, narrativas obscuras e teorias conspiratórias que, longe de explicar racionalmente o mundo, produzem uma falsa sensação de cientificidade, que temerariamente flerta com a irreverência. O obscurantismo aparece, assim, como "politicamente incorreto", independente, insubordinado, questionador; quando, em verdade, não passa de uma forma irresponsável de divulgar ideias esdrúxulas e altamente deletérias à sociabilidade humana.
Por fim, o irracionalismo enfeixa a estupidez. Ao negar o conhecimento científico, a história factual, a Teoria da Evolução, a esfericidade da Terra, por exemplo, o anti-intelectualismo nega a próprio senso lógico sobre o qual se ancora a razão humana. O irracionalismo é uma forma de compreensão do mundo que se coloca contra a lógica factual. Por isso tantos trabalhadores apoiam um Governo que lhes tira direitos, acreditam numa política social suicida, que lhes expõe a um vírus mortal, apoiam o uso de um medicamento que traz sérios riscos à saúde, defendem a volta de um Regime ditatorial que lhes restringe a liberdade, pedem o fechamento de Instituições cuja função é lhes assegurar justiça social, representação política e garantias civis! 
Por tudo isso, penso que o anti-intelectualismo tem sido a principal marca da nossa sociedade, pelo menos desde quase uma década. Isso reverbera em toda vida social: na escola, na universidade, na política, na ciência, etc. Se tempos atrás pensávamos que hoje viveríamos na sociedade do conhecimento, cujo principal instrumento é o intelecto; hoje fica cada vez mais claro que estamos imersos na ignorância, no negacionismo, no obscurantismo e no irracionalismo, cujo principal instrumento está nas antípodas do conhecimento, o anti-intelectualismo.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 28 de maio de 2020
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