quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Maurice Halbwachs



A memória coletiva. Maurice Halbwachs. 2006. Editora Centauro.

Esta edição está dividida em quatro capítulos e um anexo (A memória coletiva entre os músicos). “A memória coletiva” é um livro póstumo de Halbwachs, publicado em 1950. já no prefácio, Jean Duvignaud, afirma que para o autor é impossível conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a estas reconstruções que chamamos de memória. A introdução é de J.-Michel Alexandre, que faz uma biografia de Halbwachs, suas idéias e sua vida, findada em março de 1945, depois de ser preso pela Gestapo, no campo de concentração de Buchenwald.

Capítulo I – Memória individual e memória coletiva.

Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação. Pg 29
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco certa quantidade de pessoas que não se confundem. Pg 30
Para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível. Aliás eles não seriam suficientes. Pg 31
Na ordem das relações afetivas, um ser humano que é muito amado e que ama moderadamente muitas vezes só se dá conta tarde demais ou talvez jamais se dê conta da importância que foi atribuída às suas menores ações, às suas palavras mais insignificantes. Aquele que mais amou, um dia recordará ao outro declarações e promessas, das quais o outro não guardou nenhuma lembrança. Um porque estava bem menos envolvido que o outro na sociedade que os dois formavam e que se baseava num sentimento desigual partilhado. Pg 35
Para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum. Pg 39
Não há lembranças que reapareçam sem que de alguma forma seja possível relacioná-las a um grupo, porque o acontecimento que ela reproduzem foi percebido por nós no momento em que estávamos sozinhos, cuja imagem não esteja no pensamento de nenhum conjunto de indivíduos, algo que recordaremos nos situando em um ponto de vista que somente pode ser o nosso?
Na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual que chamamos de intuição sensível. Pg 42
Não nos lembramos da nossa primeira infância porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos um ser social.
Imagino o acontecimento, mas é provável que não seja uma lembrança direta, apenas a lembrança da imagem que formei daquilo há muito tempo, na época das primeiras descrições que me fizeram do fato.(ver Henri Brulard) Pg 43
Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar que as circunstâncias, sobre as quais nossa vontade não tem muita influência, as despertem e as representem para nós.
A condição necessária para voltarmos a pensar em algo aparentemente é uma sequência de percepções pelas quais só poderemos passar de novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas, do mesmo rochedo etc. (esta é a relação da etnografia com o diário de campo, quando o etnógrafo relê seus dados de campo na tentativa de refazer o caminho percorrido pela etnografia com a finalidade de produzir o texto etnográfico, que nada mais são do que as memórias do próprio pesquisador). Pg 53
Um rosto não é somente uma imagem visual. As expressões, os detalhes de uma fisionomia podem ser interpretados de muitas maneiras, conforme as pessoas que o cercam, conforme a direção do nosso pensamento, nesse ou naquele momento. Por isso, para reencontrar a imagem do rosto de um amigo que não vemos há muito tempo, é preciso aproximar, reunir, fundir umas com as outras as inúmera lembranças parciais, incompletas e esquemáticas que guardamos. Pg 56
Diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que este mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar esta diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social. Pg 69

Capítulo II – Memória coletiva e memória histórica.

Existiriam memórias individuais e memórias coletivas.
Ainda não estamos habituados a falar de memória de um grupo nem por metáfora. Aparentemente, uma faculdade deste tipo só pode existir e permanecer na medida em que estiver ligada a um corpo ou a um cérebro individual. Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais. Pg 71
Examinemos agora a memória individual.
O funcionamento da memória individual não é possível sem estes instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Pg 72
Haveria portanto motivos para distinguir duas memórias, que chamaríamos, por exemplo, uma interior ou interna, a outra exterior – ou então uma memória pessoal e a outra, memória social. Diríamos memória autobiográfica e memória histórica. Pg 73
A história parece um cemitério em que o espaço é medido e onde a cada instante é preciso encontrar lugar para novas sepulturas. Pg 74
O tempo social assim definido seria totalmente exterior às durações vividas pelas consciências. Mas o mesmo acontece com as datas marcadas no quadrante da história, que correspondem aos fatos mais notáveis da vida nacional, que correspondem aos fatos mais notáveis da vida nacional, que às vezes ignoramos quando ocorrem ou cuja importância só reconhecemos mais tarde.
Um acontecimento só toma lugar na série de fatos históricos algum tempo depois de ocorrido. Portanto somente bem mais tarde é que podemos associar as diversas fases da nossa vida aos acontecimentos nacionais. Pg 74
Nossa memória não se apóia na história aprendida, mas na história vivida. Por história, devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto. Pg 78, 79
A imagem que eu tinha de meu pai não parou de evoluir desde que o conheci, não apenas porque, durante sua vida, lembranças se juntaram a lembranças: mas eu mesmo mudei, e isto quer dizer que meu ponto de vista se deslocou.
Tudo que aprendo de novo sobre meu pai, e também sobre os que mantiveram relações com ele, todas as novas opiniões que tenho sobre a época em que ele viveu, todas as reflexões novas que me vem à cabeça, à medida que me torno mais capaz de refletir e disponho mais termos de comparação, me levam a retocar o retrato que tenho dele. É assim que lentamente se degrada o passado, pelo menos tal como antes me parecia. As nova imagens recobrem as antigas. Pg 94
É impossível que duas pessoas que presenciaram um mesmo fato o reproduzam com traços idênticos quando o descrevem algum tempo depois. Pg 96
Não esquecemos nada, mas essa proposição pode ser entendida em diferentes sentidos. Para Bergson, o passado permanece inteiro em nossa memória, exatamente como fi para nós; mas certos obstáculos, em especial o comportamento de nosso cérebro, impedem que evoquemos todas as suas partes. (memória pessoas)
Para nós, ao contrário, o que subsiste em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento não são imagens totalmente prontas, mas – na sociedade. (memória social) pg 97
De tudo o que foi dito antes, concluímos que a memória coletiva não se confunde com a história e que a expressão “memória histórica” não é muito feliz, pois associa dois termos que se opõe em mais de um ponto. A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. (==> o tradicionalismo reinventa a história e a faz ser revivida como memória. O passado imemorial, histórico, é trazido para o presente.) pg 100
Em geral a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se decompõe ou se apaga a memória social. Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixá-la por escrito ou pura e simplesmente fixá-la.
Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, o próprio evento que nele esteve envolvido ou que nele teve consequências, que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrição ao vivo de atores ou espectadores de primeira mão – quando ela se dispersa por alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades que não se interessam mais por esses fatos que lhes são decididamente exteriores, então o único meio de preservar estas lembranças é fixá-los por escrito por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem. Se a condição necessária para que exista a memória é que o sujeito que lembra, indivíduo ou grupo, tenha a sensação de que ela remonta a lembranças de um movimento contínuo, como poderia a história ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê esta história e os grupos de testemunhas ou autores, outrora, de acontecimentos que nela são relatados? Um dos objetivos da história talvez seja justamente lançar uma ponte entre passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. ( a memória coletiva ou social não pode se confundir com a história. A história começa onde a memória acaba. E a memória acaba quando não tem mais como suporte um indivíduo ou grupo. A memória é sempre vivida, a história é impessoal). Pg 101
A memória coletiva se distingue da história em pelo menos dois aspectos. Ela é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retem do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Não ultrapassa os limites do grupo. Quando um período deixa de interessar ao período seguinte, não é um mesmo grupo que esquece uma parte de seu passado: na realidade, há dois grupos que se sucedem. (a memória não morre, o que morre é o grupo). Pg 102
Existem muitas memórias coletivas. Esta é a segunda característica pela qual ela se distingue da história. A história é uma e se pode dizer que só existe uma história. Pg 105
Em todo caso, o historiador acredita ser muito objetivo e imparcial. O mundo histórico é como um oceano para onde afluem todas as histórias parciais. Sim, a musa da história é Polímnia. A história pode se apresentar como a memória universal da espécie humana. Contudo, não existe nenhuma memória universal. Pg 106
É dizer que a história se interessa principalmente pelas diferenças, e abstrai as semelhanças sem as quais, contudo, não haveria nenhuma memória, pois nós só nos lembramos de fatos que têm por traço comum pertencer a uma mesma consciência, o que lhe permite ligar uns aos outros, como variações sobre um ou alguns temas. Pg 107
História ==> diferenças
Memória ==> semelhanças
Cada um dos grupos tem uma história. Neles distinguimos personagens e acontecimentos – mas o que chama nossa atenção é que, na memória, as semelhanças passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo. É o tempo decorrido, durante o qual nada o modificou profundamente, que ocupa o maior espaço em sua memória. Pg 108
Esse é ponto de vista da história, porque ela examina os grupos de fora e abrange u período bastante longo. A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro e durante u período que não ultrapassa a duração média de uma vida humana.
A memória coletiva é um painel de semelhanças. Pg 109
(a história não é memória por haver descontinuidade entre quem a lê e os grupos a que ela se refere). (a história fragmenta o tempo, se põe fora dos grupos e acima deles).

Capítulo III – A memória coletiva e o tempo.

(a memória é coletiva e é através das representações coletivas que os indivíduos percebem o passado).
A sucessão do tempo, sua rapidez e seu ritmo, não é senão a ordem necessária segundo a qual se encadeiam os fenômenos da natureza. Mas a vida em sociedade implica em que todos os homens entram em acordo sobre tempos e durações. Pg 113
Sou obrigado a regular minhas atividades segundo o andar dos ponteiros do relógio, segundo o ritmo adotado por outros e que não leva em conta minhas preferências. Pg 114
(é necessário criar padrões exteriores pois cada consciência possui o seu tempo). Ex astros, relógios.
Há horas mortas, dias vazios, enquanto em outros momentos, seja porque os eventos se precipitam seja porque nossa reflexão se acelera, ou porque estivéssemos em estado de exaltação e efervescência afetiva, temos a impressão de viver anos em alguma horas ou alguns dias. Pg 116
À medidas que envelhecemos, o ritmo da vida interior se torna mais lento e, enquanto o dia de uma criança está cheio de impressões e observações multiplicadas, no declínio dos anos o conteúdo de um dia, se levarmos em conta apenas o conteúdo real do que despertou a nossa atenção e nos deu o conteúdo de nossa vida interior, se reduz a muito menos estados distintos um do outro e, neste sentido, em um pequeno número de momentos singularmente dilatados. Pg 117
Nada provaria mais claramente que o tempo, concebido como algo que se estende ao conjunto dos seres, não passa de uma criação artificial, obtida por soma, combinação e multiplicação de dados tomados de empréstimo às durações individuais e somente a estas. Pg 119
O tempo só é real na medida que tem um conteúdo, ou seja, na medida que oferece ao pensamento uma matéria de acontecimentos. É bastante amplo para oferecer às consciências individuais um contexto de respaldo suficiente para que estas possam nele dispor e reencontrar suas lembranças. Pg 156

Capítulo IV – A memória coletiva e o espaço.

Por que nos apegamos aos objetos? Por que desejamos que eles não mudem e continuem em nossa companhia?
Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Pg 157
Não se pode dizer que as coisas façam parte da sociedade. Contudo, móveis, enfeites,quadros, utensílios e bibelôs circulam dentro do grupo e nele são apreciados, comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do gosto, e também nos recordam os costumes e as antigas distinções sociais.
As formas dos objetos que nos rodeiam têm este significado. Não estávamos errados ao dizer que eles estão em volta de nós, como uma sociedade muda e imóvel. Eles não falam, mas nós os compreendemos,porque tem um sentido que familiarmente deciframos. São imóveis somente na aparência, pois as preferências e hábitos sociais se transformam e, quando nos cansamos de um móvel ou de um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. Pg 158
Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se fecha no contexto que construiu. Pg 159
Os grupos de que falamos até aqui estão naturalmente ligados a um lugar, porque é o fato de estarem próximos no espaço que cria entre seus membros as relações sociais: uma família, um casal pode ser definido exteriormente como um conjunto de pessoas que vivem na mesma casa, sob o mesmo teto. Os habitantes de uma cidade ou de um bairro formam uma pequena comunidade, porque estão reunidos em uma mesma região do espaço. Pg 165
Não há memória coletiva que não aconteça num contexto espacial. Nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda.
Diremos que realmente não há grupo nem gênero de atividade coletiva que não tenha alguma relação com o lugar. Pg 170
Os homens só adquirem o direito de propriedade sobre uma terra ou sobre uma coisa a partir do momento em que a sociedade da qual são membros admite a existência de uma relação permanente entre eles e essa terra ou essa coisa. Esta é uma convenção que violenta a realidade, pois as pessoas estão sempre mudando. Qualquer princípio que invoquemos para fundamentar o direito de propriedade não adquire nenhum valor se a memória coletiva não intervier para garantir sua aplicação. Pg 172
Podemos fixar nossa atenção nos limites das propriedades, nos direitos ligados às diversas partes do solo, bem como zonas ativas e passivas em cima das quais são exercidos os direitos relacionados ou subtraídos à pessoa. Também pensar nos lugares ocupados pelos bens econômicos, da consciência religiosa, entre legares profanos e sagrados. Assim, cada sociedade recorta o espaço à sua maneira de forma a construir um contexto fixo em que ela encerra e encontra suas lembranças. (a fixidez do espaço assegura a memória). Pg 188
Quando tocamos na época em que já não conseguimos imaginar os lugares, nem mesmo confusamente, chegamos também a regiões do passado que nossa memória não atinge. (se não lembramos dos lugares é porque não temos mais memória). (rememorar é, antes de tudo, reconstruir o espaço). Pg 189

Reflexões sobre Maurice Halbwachs. Debate com Bergson e Durkheim.

Halbwachs era um seguidor da escola sociológica francesa, sua perspectiva parte do social para o individual, do todo para a parte, como tem como marca a escola francesa. Dessa forma é que se pode entender o estudo da memória para Halbwachs. Ele não nega a existência do indivíduo. Embora entenda a memória como uma construção social, partindo do todo para a parte. Quem lembra é o indivíduo. O indivíduo quando lembra entra no domínio das sensações, e se utiliza dos sentidos e percepções que só dizem relações a ele. Desta forma, cada indivíduo pode ter uma memória distinta do outro. Todo evento que guardamos na memória tem a marca social, por mais que o tenhamos vivido individualmente. Se vivenciamos um evento publicamente, mais marcante ele será, pois será partilhado, reforçando de sobremaneira sua marca social.
A maneira como formatamos nossos quadros de memória é determinada por elementos que, do ponto de vista social, possuem mais relevância. Quando vamos relatar algo de memória, “recheamos” a fala com o que chamamos de “chão”. Tentamos , com isso, ligar um fato vivido coletivamente a coisas que fazem sentido individualmente. Podemos ainda, segundo Halbwachs, distinguir os quadros de memória dos homens dos das mulheres. Uma mulher, tende a ligar seus quadros de memória a uma perspectiva do mundo doméstico, do privado, da família, enquanto que os homens ligarão seus quadros a uma perspectiva do público, do mundo do trabalho. É importante ressaltar aqui que estes vínculos não são dados por natureza, ou como condições inatas de cada gênero, mas sim, construídos socialmente.
Quando Halbwachs fala do “social” não podemos pensar apenas em sociedade do ponto de vista macro. Mas do micro, os valores, como se dá o enquadramento homem/mulher, como enquadra gerações, com o enquadra a sua vida social, enfim como percebe o mundo. Quando sistematizamos estes dados, os submetemos a algumas clivagens: clivagem religiosa, clivagem de gênero, clivagem ética, clivagem identitária, ou qualquer outra que se queira enfocar e de acordo com o grupo que se está estudando. O importante é que se tenha o foco daquilo que se quer enxergar, daí então, pode-se fazer estes outros cruzamentos.
Halbwachs, quando tratou a questão da memória, a retirou da perspectiva do individual. Ela é uma criação do indivíduo, mas partindo do ponto de vista que o indivíduo é uma criação da sociedade. Esta é uma perspectiva da sociologia francesa. O indivíduo é uma categoria que existe e foi criado socialmente. Halbwachs inicia sua carreira no final do séc. XIX e início do séc. XX. Neste momento as ciências sociais ainda não eram um campo dado. Recém começavam a definir seus métodos e seu objeto. Halbwachs foi aluno de Henri Bergson. E este pode ser compreendido como o pai dos estudos da memória. No entanto a perspectiva de Bergson ainda é aquela de que a memória é um somatório de sensações e percepções que vão gerando imagens que vão ficando guardadas em nós. Ficam “ali”, dentro de nós à espera de serem buscadas. Sendo assim, algumas sensações, como um cheiro ou um som, por exemplo, podem nos trazer a lembrança de um evento, de um acontecimento por nós vivido ou percebido. Por esta perspectiva, o indivíduo é o portador desta memória. Desta forma a lembrança é física, e o corpo entra como veículo para esta memória. Quando Halbwachs escreve, ele não despreza toda esta teoria. Embora tire o foco central da questão da memória, do indivíduo, ele reconhece a importância deste para a memória coletiva. Quem vai sentir, quem vai guardar é o indivíduo. No entanto, o indivíduo apreende isso socialmente. A ele é ensinado a maneira de como fazer isso, de como guardar, de como selecionar aquilo que deve ser registrado. Ele não escolhe apenas aquilo que quer lembrar, mas aquilo que lhe é permitido e/ou imposto socialmente. É claro que sempre haverá distinções entre uns e outros, mas até mesmo estas diferenças são dadas socialmente. Os indivíduos se distinguirão dentro de um padrão determinado, dentro de um limite, que é também construído socialmente.
Halbwachs se contrapôs à história enquanto dada. A história que realmente importa é aquela que os indivíduos realmente lembram. Então Halbwachs coloca a grande questão para a historiografia francesa: quem constrói a história, quem a escreve, pra que e pra quem? A história demorou até a metade do século XX para “ver” os rótulos subalternos. Os marginalizados, os excluídos, os negros, etc. Halbwachs coloca a história nesta perspectiva, como uma construção social.
Três grandes áreas preocupam-se com a questão da memória: a história, a psicologia e a antropologia. Seus enquadramentos possuem semelhanças e distinções. Dando prioridades a pontos de vista distintos. Quando o antropólogo estuda memória ele não busca estudar, necessariamente, a historiografia do local, mas sim as estruturas e significados ao longo de um percurso de tempo, dentro de um grupo determinado. O historiador trabalha mais no sentido de documentar, transpondo do oral para o escrito no sentido de preservar.
No entendimento de Halbwachs a memória reconstrói os fatos no sentido do presente para o passado. É com a bagagem que se tem no presente que se vai perceber o passado. É desta forma que a memória é social, pois é construída a partir do coletivo.
Para Halbwachs, mesmo quando estamos falando de nós mesmos, criando e fazendo coisas de profunda subjetividade, estamos “amarrados as objetividades”. Quando pensamos, mesmo que realizemos isto sozinhos, o fazemos coletivamente, pois utilizamos, para isso, uma língua que é coletiva. Esta linguagem nos é imposta pela sociedade. É o coletivo sobre o indivíduo. No entendimento de Halbwachs a memória reconstrói os fatos no sentido do presente para o passado. É com a bagagem que se tem no presente que se vai perceber o passado. É desta forma que a memória é social, pois é construída a partir do coletivo.
Para Halbwachs, mesmo quando estamos falando de nós mesmos, criando e fazendo coisas de profunda subjetividade, estamos “amarrados as objetividades”. Quando pensamos, mesmo que realizemos isto sozinhos, o fazemos coletivamente, pois utilizamos, para isso, uma língua que é coletiva. Esta linguagem nos é imposta pela sociedade. É o coletivo sobre o indivíduo.
Bergson foi o primeiro intelectual a tratar da questão da memória, ele concebia a memória mais no sentido individual, e não a concebia no sentido coletivo. A memória de um sujeito são impressões, imagens, a que ele chama de matéria, que este vem guardando em sua consciência, uma espécie de “caixa preta” do indivíduo. E o indivíduo, e somente ele tem acesso a esse acervo. Esta memória, segundo Bergson, é de cunho individual, e nem se refere a questões coletivas. Tudo é registrado. Não há, como em Halbwachs uma seleção, tudo é registrado e depois é retirado do “arquivo” como se nossa consciência fosse uma caixa preta. Halbwachs se inicia no estudo da memória utilizando o fundamento de Bergson. No entanto, ao conhecer os estudos de Durkheim, Halbwachs percebe algumas particularidades. Nossa mente não funciona exatamente como uma caixa preta, nem tudo fica dentro de nós, há mecanismos de seleção de nossas lembranças, de nossas memórias. Nós escolhemos, nós remexemos, nós selecionamos, nós esquecemos. Então Halbwachs passa a sair do ponto de vista do indivíduo, que lembra para a sociedade, que permite que o indivíduo lembre. Então a memória se descentra. Passa do individual, do indivíduo que lembra, para fora, para o coletivo. O que se nota, no raciocínio de Halbwachs em relação a Durkheim, é uma análise mais psicológica da memória. Há que se pensar que a psicologia como ciência, naquele momento histórico, e talvez ainda hoje, esteja em uma grande disputa entre aqueles construtos mais ligados ao condicionamento, mais de cunho biológico, e outros mais experimentais da psicologia mais humanitária, e Halbwachs está trabalhando nestes limites. Ele busca sair de um domínio empírico, completamente, como também não entrar no domínio metafísico completamente, pois nenhum dos dois, sozinhos, responde a estas questões plenamente. É necessário contemplar o domínio do empírico, da mesma forma transcender em um entendimento metafísico, introspectivo ou algo assim.
É necessário, neste momento, distinguir o que Durkheim entende por fato social. Os fatos sociais devem ser Coletivos, Exteriores e Gerais. Desta forma, os fatos sociais distingem-se por serem tratados como coisas. Isto era imperativo, para a época, assim como na ciência natural positivista. Halbwachs entende de uma maneira um pouco diferente. Os fatos sociais não eram bem coisas. Há o lado de quem os interpreta, há o lado daquele que narra, e a leitura dos fatos não é tão objetiva assim. Durkheim distingue os fatos sociais dos fatos psicológicos, porque na época os fatos psicológicos eram entendidos como individuais, e não queria tratar de indivíduos isoladamente. Distingue também dos fatos biológicos, por não tratar da natureza biológica do homem, mas de sua natureza social. É importante, entretanto, definir de onde Halbwachs está falando: vindo de uma tradição bergsoniana, onde sobressaía o indivíduo, a memória como algo isolado, não havendo esta leitura de uma construção exterior, então Halbwachs busca em Durkheim a idéia de que a vida é feita por um domínio do social sobre o homem. Segundo Durkheim, através da coerção, somos aquilo que a sociedade nos permite ser. A individuação possível em nós é dada dentro dos limites, que cumprimos para sermos aceitos, para não sermos vistos como diferentes. Embora eu acredite ter um estilo “só meu” de me comportar ou de me vestir, ao ler Durkheim perceberei que este “só meu” está carregado do meio social. Este domínio do exterior sobre o interior se dá de formas diversas, e segundo Durkheim, se inicia pela linguagem. A linguagem nos molda a tal ponto que nos resume, a apenas, linguagem. E o que reproduzimos, e o que representamos, é esta estrutura que a língua cria. A língua classifica o homem, separa tempo e espaço, ela nos dá os parâmetros e os padrões para agir e pensar.
No texto Consciousness and Colective Mind, Halbwachs fala da consciência individual e da mente coletiva, e define o seu campo de estudo. O texto começa com uma crítica aos estudos isolados do homem, a filosofia e surgimento da psicologia que tentam definir o homem como um átomo no universo. Halbwachs discorda deste ponto de vista. Entende o homem como uma construção social. Reportando-se a este período histórico, final do século XIX, início do século XX, ainda uma disputa de espaço entre as ciências naturais e as ciências sociais, as ciências sociais utilizando os métodos das ciências naturais, e todo um diálogo entre ambas. Revendo estas teorias hoje, já com um século de conhecimento sedimentado, quando algumas idéias parecem dadas, como dizer que nós somos frutos da cultura, do meio, parecem verdades irrefutáveis para nosso tempo, mas naquele momento intelectual, não. Ali, havia uma construção universalista do homem, uma filosofia universalista, uma psicologia universalista, entendendo que o ser humano seria sempre o mesmo, independente de cultura, ou de qualquer outras construções sociais. Hoje sabemos que para entender a sociedade devemos entender esta conjugação entre homem e meio, o exterior e o interior num sentido amplo.
Logo, Halbwachs passa a fazer uma crítica a psicologia, que entendia que as grandes categorias de entendimento do homem eram inatas, dadas pelo nascimento. Discorda de Kant quanto a categorias de tempo/espaço como categorias a priori, tempo/espaço como recipientes que armazenam informações recebias pelos órgãos dos sentidos que as ordenam na minha consciência. Halbwachs concorda com Durkheim, que entende, tempo/espaço como construções sociais. E não categorias dadas, mas construídas coletivamente. Cada sociedade vai capacitar seus indivíduos para perceber tempo/espaço de uma determinada maneira. Por exemplo, uma criança criada no ambiente rural, numa estância, que estuda numa escola rural, conceberá noções de tempo e espaço diferentes de outra que cresce na cidade, no meio urbano. Seu tempo e suas brincadeiras serão muito mais medidos pelo sol, pelo calor, pelo frio do que pelo tempo cronológico do relógio. Ao passo que a criança da cidade desenvolverá muito mais desenvoltura, por exemplo, na interação do espaço social. Ira interagir com muito mais outras crianças ao longo do seu dia, numa aula de judô, numa escola maior, no transporte coletivo, no ir e vir do transito caótico das cidades. Dessa forma podemos entender que as noções de tempo/espaço que desenvolvemos são fruto e consequência do meio em que vivemos e habitamos. Não são inatas. Entretanto são capacidade biológicas, recebidas geneticamente, mas desenvolvidas, física e psicologicamente pela interação com o meio específico. Então, o que nos torna humanos é a capacidade que temos de nos comunicar e nos expressar e o que nos dá isto é a linguagem. Mais uma vez aqui a dissenção entre as ciências biológicas e as ciências sociais. A biologia nos concebe (nós humanos) como puramente animais, e nós (antropólogos) nos concebemos (nós humanos) como puramente social. A biologia, e as ciências naturais, nos trazem de volta, o tempo todo para o domínio da natureza. Da mesma maneira que percebe como todas as espécies se transformam em relação ao meio, ela também quer entender como o homem se transforma em relação ao meio. Portanto, para a biologia somos apenas mais uma espécie. Talvez o primata mais desenvolvido. Esta era uma discussão presente desde o início do século com as teorias mais evolucionistas, mas também uma tentativa de cada campo científico demarcar o seu domínio.
Outro ponto importante no texto é que Halbwachs vai mostrar que a inteligência é um campo que se constrói socialmente. Se intende por inteligência, as capacidades, as aptidões, a cognição. Então cada sociedade vai desenvolver o tipo de inteligência útil e necessária para o indivíduo sobreviver naquele meio. O homem do campo construirá seu saber sobre o seu meio. O homem urbano desenvolverá aptidões que lhe serão úteis apenas para habitar na cidade e talvez nem façam sentido para o homem rural. É desta forma que se deve entender a categoria “conhecimento”, “inteligência” pensando relacionalmente ao meio em que são utilizadas e desenvolvidas. Lévi-Strauss demonstra isso brilhantemente em A ciência do concreto, primeiro capítuo de La Pensée Sauvage.
Halbwachs foi aluno de Bergson de 1894 até 1901. Bergson viveu de 1859 a 1941, e estudo a percepção por meio das imagens. Tentava entende de forma a memória guarda as imagens. Aquilo que Bergson denomina “matéria”, são imagens, são aquilo que está fora de mim, que eu vejo, que eu percebo. Bergson entende que a realidade é um conjunto de imagens, o que guardamos são imagens. A memória é a preservação de imagens passadas e cumprem a função de completar as lacunas da experiência presente. É como uma caixa preta, onde tudo é guardado, nada é perdido, e quando precisamos recorremos a ela. Halbwachs e Durkheim discordarão desta idéia. Para eles só se guardará aquilo que for socialmente válido e importante, e compartilhado coletivamente (exemplo do banho). Para Bergson é como se todos ficassem guardados. Esta é a combinação entre percepção e memória. Outro conceito importante em Bergson é o de “duração”. Duração é tempo de sobrevivência dessa imagem passada. O tempo vivido e o tempo pensado não são iguais. Um mesmo acontecimento vivenciado por igual período por duas pessoas diferentes, é recordado com diferentes impressões do tempo. Uma experiência que seja mais traumática para um do que para outro será revivenciada de formas diferentes para ambos. A “duração” (Bachelard) de um mesmo fenômeno será percebida diferentemente por pessoas que vivenciaram este mesmo fenômeno num mesmo intervalo de tempo e num mesmo espaço. Ou seja, um mesmo fenômeno. Quando cada um contar este mesmo acontecimento, o tempo pensado será diferente, embora o tempo vivido tenha sido o mesmo. Isto acarretará narrativas diferentes. Halbwachs chamará atenção para isto: o tempo é social mas cada um de nós fará uma leitura individual do social. Para Bergson o corpo será sempre o depositário das memórias. É o corpo físico que recebe a percepção. No entanto ele não discute o fato de os sentidos serem educados socialmente. Um exemplo disso é a dor. O sentimento de dor é uma construção social. Diferentes sociedades possuem diferentes noções de dor. Bergson toma a percepção como algo dado, diferentes culturas poderiam possuir uma mesma percepção. O homem do campo, o arquétipo gaúcho, construído socialmente como homem, viril, corajoso, brigador, deve sempre sublimar a dor, concebê-la como uma categoria “menor” dos sentimentos ou até mesmo sua total inexistência. A velhice traz, por vezes, a dor e a incapacidade para o trabalho e este é o fim de sua existência, sua morte, como demonstra Ondina Fachel Leal em Honra, morte e masculinidade na campanha gaúcha. Enfim, para Bergson, a memória é a lembrança dos fatos vividos, percebidos e sentidos pelas pessoas. Ela fica registrada integralmente nesta “caixa preta”, através de imagens do passado que são sua substância, sua matéria. A “duração” para Bergson é a sucessão desses estados de consciência entre passado e presente, este pulso vital.
Os estudos de memória foram, durante muito tempo considerados prioritários para a História, da Psicologia Social, de formas diferentes, e não da Antropologia. Entretanto a Antropologia tem chamado para si os estudos de memória e neste contexto pode-se entender a importância dos estudos de Halbwachs. Quando vai-se trabalhar com noções de passado é importante entender este diálogo entre história e antropologia. Quando nós, antropólogos, trabalhamos com reconstruções de passado, nos estudos de memória, não o fazemos com as mesmas preocupações que possui a história. Procuramos entender quais relações o passado possui com a vida dessas pessoas no presente. Todos possuímos passado, e portanto, possuímos memória. Para entender as noções de pertencimento, construções das identidades é também necessário compreender as memórias destes indivíduos. Ambas são construções sociais.

Um comentário:

  1. Oi professor, vim a procura dessa resenha... mas adorei o blog... parabens! E obrigada pelos textos a disposição dos alunos ;)

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