Um dos argumentos utilizados pelo relator do projeto de revogação do Estatuto, foi de que as mortes por homicídios aumentariam no país, em caso de flexibilização das normas de armamento. O senhor concorda com essa análise?
O relator do projeto, senador Paulo Rocha, defende que quanto mais armas houverem, maior será o número de homicídios por armas de fogo. Esse argumento é válido, porém a razão não é tão simples nem tão direta assim. Obviamente há uma relação entre ambas; mas não é tudo. Outros fatores, como sensação de impunidade, baixo controle sobre o preparo para o uso de armas, falta de regulação e policiamento; alto índice de tráfico de armas clandestina e drogas contribuem também para aumento nos números de casos de crimes cometidos com armas de fogo. Observe que a arma mesma é o resultado de um amplo conjunto de fatores que contribuem para que ela se torne um problema social, de segurança pública.
Crimes passionais, de trânsito e até mesmo acidentes com crianças em casas que possuem armas, são alguns dos argumentos utilizados por quem é contrário ao armamento. Isso de fato procede?
Esta é uma questão central, muito importante para entender a questão das armas no Brasil. A resposta para isso tem fundo essencialmente cultural. Tentarei aqui resumir de forma muito breve. Uma boa comparação, é, por exemplo, com os USA. Lá a arma tem um significado diferente do daqui. É uma questão político cultural. Para eles, as armas significam algo como honradez patriótica, independência, é uma questão política. O povo americano conquistou sua independência e sua autonomia política na força das armas, constituíram-se como povo, como nação, expulsando os ingleses pela força sua força. Armas para eles é uma questão pública. Para nós brasileiros, que tivemos um processo de independência resultante de um acordo com as elites, nossas maiores conquistas sociais sempre pareceram muito mais uma benesse do poder político, temos uma relação diferente com as armas. Elas nunca significaram para nós, assim, algo honroso no sentido público político, mas uma forma de garantir privilégios privados, contra um Estado explorador (e não defensor como os americanos), garantir a segurança de uns contra os outros, como se cada indivíduo fosse um inimigo, um concorrente em potencial. É por isso que armas aqui, resultam em mortes de brigas de trânsito, nas bebedeiras em bares, nas desavenças domésticas ente vizinhos e parentes. Armas, para nós é muito uma questão privada, enquanto que para povos historicamente independentes é assunto público, político, ligado à soberania nacional. Um americano não usa arma para ameaçar outro americano, mas culturalmente para garantir a segurança do "povo" americano. Essa é uma noção de democracia e de igualdade que nós, como povo, jamais tivemos...
Os números de homicídios logo após a campanha do desarmamento diminuíram, em um período de um ou dois anos. No entanto, esses índices estagnaram e até aumentaram depois de um tempo. Faltam políticas públicas a respeito do tema?
A questão não é de políticas públicas, mas de segurança pública. Não temos controle de fronteira, não temos polícia qualificada, não temos justiça eficiente, temos um sistema carcerário que é um terceiro ou quarto Estado dentro das fronteiras do Estado, um completo incontrole sobre o tráfico de armamentos e drogas; fica evidente que o problema não é só desarmar apenas a população civil. Isso é importante, mas mais importante ainda é ter controle sobre todos estes fatores que são os grandes abastecedores do crime comum e do crime organizado. Sem armas nas mãos da grande população temos índices altos de casos de crimes com armas de fogo, com maior liberdade para armas de fogo nas mãos da população civil, estes índices poderão ser muito mais altos.
Muitas das armas de fogo utilizadas para crimes no Brasil são fabricadas dentro do país, assim como mais de 50% delas são vendidas de forma legal antes de entrar no mercado negro. O que esses números dizem acerca da questão do desarmamento?
Não se combate um problema social apenas criminalizando sua conduta. Isso acontece muito com as drogas. No caso das armas, a taxa de transferência de uma arma é muito alto. Em muitos casos, o comércio se dá à margem do controle do Estado. Simplesmente o comprador de uma arma de fogo até então regular "esfria" a arma, isto é, dá baixa dela no sistema (fazendo um BO de furto por exemplo). Com isto livra-se do imposto de transferência e obtém a arma para uso pessoal ou mesmo para cometer ilicitudes. É um ciclo perverso que o poder policial alimenta por meio da rigidez do seu controle ineficaz. Nesse caso, fica evidente a falta de inteligência do poder público em lidar com a questão. A arma no Brasil é tratada como um caso de polícia, mas é um caso de política. Uma sociedade mais livre e mais igualitária não é uma população mais armada, mas uma população que possui maior segurança pública. É como nos transportes, acreditamos que os carros trazem liberdade! mas eles nos aprisionam no trânsito... livre seríamos se tivéssemos transportes públicos de qualidade! Muitos acreditam que armas individuais nos trarão segurança, mas é a qualidade do serviço público que poderá promover isso efetivamente.
Devemos ponderar, por fim, que os brasileiros podem ser possuidores de armas, apenas não as podem portar em público, salvo exceções. Propriedades rurais, domicílios em lugares mais ermos, podem muito legitimamente possuir armas de fogo. Há lugares no RS em que não há sequer uma dupla de PMs, talvez nesses casos uma arma de fogo (desde que registrada) justifique sua necessidade. Morremos, mais de 50 mil por ano, no trânsito, por crimes de trânsito que insistimos em chamar de acidentes. Se mais ainda pessoas possuírem armas de fogo, provavelmente este número aumente muito. Se já usamos carros como armas para matar pessoa inocentes, imagine se possuirmos armas propriamente ditas?
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