sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Entrevista Jornal Semanário - junho 2017

1. Pq o Sr. acredita que ainda não foi sancionada a Lei que caracteriza a homofobia como crime?A pauta da homofobia não avança no Congresso devido ao extremo conservadorismo que marca a atual legislatura. Esse é um assunto tabu para a sociedade. Tratar das questões do gênero e da sexualidade causam desconforto principalmente pela falta de informação e formação da classe política e da sociedade em geral. Mas o que se torna ainda mais difícil o avanço de debates deste tipo no Congresso é o altíssimo número de congressistas ligados a setores religiosos. São 71 deputados que se declaram oficiosamente evangélicos, além dos demais setores religiosos, que em pautas desse tipo, votam juntos.

2. Segundo um relatório da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais, o Brasil ocupa o primeiro lugar em número de homicídios na comunidade LGBT na região, somando 340 mortes por homofobia em 2016.Por que ainda temos esse grande número?
Vivemos em uma sociedade cujo padrão, o “standart” social é o masculino branco. É um padrão civilizatório, um modelo de existir histórica e juridicamente legitimado. Vemos este padrão na lei, na história social, na linguagem, na publicidade, na educação. Assim, somos socialmente misóginos, racistas e homofóbicos. A questão da homofobia, devido à homossexualidade ser satanizada historicamente pela religião e pela medicina, paga hoje um preço histórico por esta marca social. É vista como perigosa, como algo a ser “castigado”, aniquilado.
3. É sabido, principalmente quando entramos em contato com algumas pessoas que são nossas fontes em matérias como essas, que os principais inimigos deles são os fundamentalistas religiosos, grupos de pessoas dentro de algumas religiões que insistem em condenar e retirar direitos já adquiridos dessas pessoas. Por que o Sr. acredita, principalmente em se tratando de sociedade, que essas questões ainda acontecem?
Toda religião é a expressão de uma concepção de mundo em detrimento de todas as outras. Tendemos a ver religiões como expressões de um “bem”, mas são, na verdade, a expressão de um ideário que procura aniquilar, convencer, “evangelizar” todos os que pensam diferentes de si, toda religião monoteísta é fundamentalista. Toda religião é a expressão moral de um grupo, de uma sociedade ou de uma civilização. Portanto, ela expressa sempre uma cosmovisão parcial, excludente e convenientemente situada. Se ela expressa o bem, o faz expressando aquilo que os seus seguidores acreditam; excluindo, segregando, todos aqueles que dela desacreditam. As religiões, portanto, não são expressões de um “bem”, seja qual for esse bem. São, em verdade, a capitulação da nossa civilização de possuir uma visão global do que seja o bem e o mal. Ser religioso não é um atestado de bondade nem um salvo conduto para a moralidade, mas uma maneira de impor a noção de que a verdade de uns, deve ser a “verdade” de todos.

4. A luta por igualdade da comunidade LGBT rendeu frutos no Brasil. Cirurgias para mudança de sexo em hospitais públicos, adoção de crianças por casais formados por cônjuges de mesmo sexo, casamento civil, direito a benefícios por parte do parceiro e licença maternidade para os pais são algumas das conquistas obtidas nos últimos dez anos. Mas porque ainda somos considerados tão homofóbicos em nosso País?
Somos homofóbicos porque estes direitos não estão histórica nem culturalmente legitimados, sedimentados. São altos os índices de feminicídio e crimes homofóbicos. Os avanços de leis “escola sem partido” são endêmicos nas câmaras legislativas dos estados e dos municípios e ganham força na Câmara Federal; nesses projetos, as abordagens às questões do gênero e da sexualidade estão fundamentalmente ameaçados. Vivemos um cenário de crescente conservadorismo político, e neste cenário, todas as conquistas civis, políticas e sociais obtidas desde a promulgação da Constituição de 1988, estão sob grave ameaça.

5. É possível afirmarmos que em nossas escolas os debates sobre o tema ainda são muito superficiais e, um tanto quanto, conservadores?
Sim, nas escolas o quadro é ainda mais grave. O que ocorre pela via da educação é uma espécie de “higienização” do corpo, do gênero e da sexualidade. Desde os livros de biologia, passando pelos livros de história, pelos conteúdos, pelas práticas, ocorrem verdadeiras naturalizações daquilo que é e foi socialmente construído. O discurso dominante no currículo das escolas é o do par binário masculino/feminino, da monogamia patriarcal, da moralização do corpo, da natureza biológica e inescapável do gênero e da sexualidade. Não há espaço nem preparo teórico e metodológico para abordagens verdadeiramente tolerantes, inclusivas, compreensivas, contraditórias, e que percebam os seres humanos como produtos culturais dos seus tempos e de seus espaços.


6. O tema de identidade de gênero já é amplamente debatido. No entanto, em pleno século XXI, muitas pessoas tendem a ignorar ou, pior do que isso, não entender o que isso representa para essas pessoas. A que fatores você atribui isso?
Não concordo que seja amplamente debatido. É restritamente debatido. Há lugares em que o tema é completamente ignorado. A domesticação e dominação do corpo é uma evidência na saúde e na educação. Na política, salvo em espaços muito reservados, o tema não é debatido com a liberdade que deveria. Pesa sobre ele sempre um caráter moralizante, religioso, legalista, medicalizado; que restringe o debate, naturaliza o enfoque, dogmatiza os entendimentos, normatiza as abordagens, e “normal”iza as diferenças.

7. Como professor, qual seria a arma ideal contra o preconceito? O debate familiar, escolar... enfim? 
Em nossa cultura costumamos repetir que umas e outras coisas “não se discutem”. Isso é uma armadilha da nossa sociedade moralista. Tudo que se vive socialmente deve ser discutido social e publicamente. Religião, sexualidade e política devem sempre ser assunto de debate públicos, de deliberação coletiva e decisão política. Nossos preconceitos devem ser tratados politicamente. Não restritos apenas à escola, ao cenário parental doméstico (família), a grupos particulares; deve ser levado à mídia, às pautas dos partidos políticos, aos debates públicos. Nunca tratados secretamente como assuntos menores, proibidos, “delicados”; são temas de abordagem política, que dizem respeito a todos e por todos devem ser deliberados.

8. Bento Gonçalves é uma cidade considerada preconceituosa, principalmente, por existirem diversas pessoas da cultura italiana que ainda residem aqui. De que maneira essa cultura enraizada influencia nessas questões?

A religiosidade influencia muito. O ethos de uma religião diz muito sobre como ela responde à concretude de sua vida civil e material. Os protestantes, por exemplo, em especial os calvinistas, tratam de forma muito diferente de nós os assuntos que consideramos “delicados”. São exemplos disso o trato da “igualdade social” e da democracia pelos norte americanos e do enfrentamento das drogas pelos holandeses. Enfrentaram e equacionaram estas questões de forma muito mais laica e secular. Lugares em que é forte a presença da colonização cristã católica, as questões tendem a ser tratadas com muito mais restrições, há temas e assuntos “proibidos”. Temas tabus, vedados ao debate e ao enfrentamento público. Isso atrapalha o avanço do debate, a abertura para diferentes versões sobre o tema, sobre diferentes leituras a respeito das questões essenciais da vida social. Essa é a base material sobre a qual se assenta o preconceito e as atitudes de discriminação. Culturas e sociedades mais tradicionais tendem sempre a ser mais conservadoras e, portanto, menos tolerantes, menos abertas a variações culturais. Cada ser humano é uma dessas variações, cada ser humano é uma singularidade. Tornar-se humano é singularizar-se. Quanto mais humanos nos tornamos mais diferentes dos outros seres humanos nos constituímos. A única coisa que um ser humano tem de igual a um outro é a capacidade de ser diferente. Nesse sentido, pouco ou quase nada temos de “natural”, ou inato; e toda tentativa de nos amarrar a essa suposta “natureza”, como fazem as sociedade mais tradicionais, é um sempre um golpe ideológico e conservador de uma “igualdade” humana falsamente constituída.
Entrevista concedia à jornalista Lauro Gross em 2017 Jornal Semanário - Bento Gonçalves

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