quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Ditadura da desinformação

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No mês de julho o sociólogo espanhol Manuel Castells veio ao Brasil para um Seminário sobre Educação, promovido pela FGV, e trouxe elementos importantes para pensar sobre nosso momento histórico. Castells foi assertivo ao afirmar que vivemos sob uma ditadura de novo tipo, um tempo de ditadura da desinformação. Nela, as plataformas digitais, que aparentemente seriam garantidoras de liberdade, são justamente o suporte material de nossa falta dela.
Olhando um pouco para o passado, conferimos que no século XIX os jornais, os meios de informação por excelência, tinham um caráter não só informativo, mas formativo. Era um tempo em que era escasso o mercado editorial, pouco haviam livros; ficando com os impressos periódicos o papel de instruir e informar. Marx, por exemplo, ganhou a vida fazendo esse trabalho. Longos textos dele publicados no Daily Tribune de New York viraram livros inteiros tempos depois.
Já o século XX foi o século dos tradicionais jornais, gazetas e fanzines. Durante esse tempo eles desempenharam o papel de informar os leitores. O músico Jorge Bem Jor sintetizou essa influência na letra de “Chama o síndico”. A maior comprovação da evidência e importância de algo era ser noticiado pelo jornal: não se tem dúvida, deu no “New York Times”!
A virada do século assistiu a crise desse modelo. O século XX terminou e o XXI iniciou sob o espectro da era digital e a informação não era mais exclusividade dos tradicionais meios de informação e comunicação. A informação agora estava a apenas um click, era abundante, e a preocupação era então como organizar e filtrar aquele turbilhão de dados.
Nos dias de hoje vivemos sob o império do algoritmo. Chega até nós apenas o que os softwares das redes sociais já reconheceram e selecionaram como algo que queremos ver. Assim, as pessoas não leem os jornais ou veem o noticiário para se formar ou informar como no passado, mas para se confirmar. Castells alertou em sua passagem pelo Brasil que as pessoas leem ou assistem apenas o que sabem que vão concordar. Nem chegará até elas algo de outra orientação cultural, ideológica ou política. Se vivemos então sob um novo tipo de ditadura, esta é uma ditadura de pensamento único, inaugurada pela era do algoritmo, que não aceita e nem vê o contraditório, a era da compreensão deformada da realidade social, a triste era da ditadura da desinformação.
Publicado no Site do Jornal Diário de Santa Maria em 07 de agosto de 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/ditadura-da-desinforma%C3%A7%C3%A3o-1.2158506

Pós-mentira


Em 2016, a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford elegeu o vocábulo "pós-verdade" como a palavra do ano na língua inglesa. Ela é também, e certamente, uma palavra central para pensar as circunstâncias que vivemos no Brasil de hoje. Entretanto, por aqui, subvertemos a expressão inglesa, extrapolamos seu significado, esgarçamos seus limites e, possivelmente, tenhamos instaurado, assim, a pós-mentira!Resultado de imagem para pós verdade
Na origem, a expressão “pós-verdade” foi usada pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesic e designava uma situação em que na hora em que se desenha a opinião pública, os fatos objetivos importam menos que nossas crenças e valores. Mas o que é mais grave é o seu uso político, pois é uma política pós-factual. Equivale a dizer que não importa se algo é verdade ou não, mas o tanto de impacto que pode causar antes de ser verificado ou comprovado. Depois do estrago feito vem a se saber que não era verdade, que se tratava de mentira travestida de verdade, mas aí o estrago já está feito, cumpriu sua função!
 A questão, portanto, é que não se trata de pós “verdade”, mas de pós “mentira”, pois o que se comprova post factum é a sua inveracidade e não sua veracidade. Mas por que aceitamos isso? Por que convivemos com isso? Por que tantos acreditaram, por exemplo, no “kit gay”? Uma mentira distribuída como verdade e em escala industrial, responsável direta pela ascensão da mentira ao poder. Como isso foi possível?Resultado de imagem para pós verdade
Uma narrativa judaica talvez ajude a responder. Ela conta que certa vez, a mentira e a verdade se encontraram. A mentira disse para a verdade: “Que dia lindo!” A verdade olhou para o céu desconfiada, mas percebeu que estava um lindo dia de sol. Elas andaram um pouco e chegaram até uma fonte, quando a mentira a convidou para se banharem. Novamente incrédula a verdade conferiu a água, achou bastante aprazível e aceitou o convite para o banho. Despiram-se e entraram na água. Percebendo a verdade distraída, a mentira saiu da água, vestiu-se com as roupas da verdade e foi-se dali. A verdade, por sua vez, recusou cobrir-se com as vestes da mentira. E por não ter do que se envergonhar, saiu a caminhar nua pelas ruas e vilas.
Deve ser por isso que muitos de nós se recusam a encarar a verdade, pois ela põe a nu nossas crenças e valores. Preferimos agir hipocritamente escondidos em “pós-mentiras” e fakenews, desde que vestidas de verdades.  Sem elas sentiríamos vergonha de aplaudir mitos idiotas e falsos heróis, ficaríamos constrangidos diante da nudez de nossas mentiras imediatas; seria insuportável não ter como justificar nossas escolhas, ódios e preconceitos.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 20 de novembro de 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/colunas-tem%C3%A1ticas/p%C3%B3s-mentira-1.2183492

sábado, 3 de agosto de 2019

Protegido pelas sombras

Em 16 março de 2016 o então juiz Sérgio Moro publicou as gravações de grampo dos telefones de dois Chefes de Estado, um deles em pleno exercício de suas funções. As conversas foram veiculadas em telejornais de TV aberta, em rede nacional. Moro justificou sua ação de dar publicidade aos grampos, com base nos Artigos 5º e 93º da Constituição. Declarou que "A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem seus governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras". Estava aberto um precedente perigoso.
É importante lembrar que esse tipo de grampo telefônico só pode ser realizado com autorização expressa do Supremo Tribunal Federal, jamais por um juiz de 1ª instância. A justificativa da moralidade não pode atropelar os ritos legais. Um dos participantes da conversa, a então Presidenta, tinha prerrogativa de foro por função, e caberia à primeira instância apenas mandar as provas para a corte indicada. Dilma só poderia ser processada e julgada pelo STF, conforme manda o artigo 102, inciso I, alínea "b", da Constituição Federal. Ou seja, a única decisão que Moro poderia tomar na época a respeito da gravação seria enviá-las ao Supremo, para que lá fosse decidido o que fazer com essas provas.
À época, o então Ministro do Supremo Teori Zavascki, cassou a decisão de Moro alegando que o decreto de fim do sigilo dos grampos foi ilegal e inconstitucional. Para ele, Moro violou o direito Constitucional à garantia de sigilo dos envolvidos nas conversas. Cabe "apenas ao Supremo Tribunal Federal, e não a qualquer outro juízo, decidir sobre a cisão de investigações envolvendo autoridade com prerrogativa de foro na corte", declarou Teori. O Ministro do Supremo não teve tempo de dar sequência à sua investida em favor da legalidade, dez meses depois de contrariar Moro, o avião em que viajava caiu!

Nesta semana, os papéis se inverteram e Moro provou do próprio veneno. Reportagens do jornalista Glenn Greenwald foram publicadas pelo site The Intercept e mostram trechos de conversas trocadas entre o procurador da República Deltan Dallagnol e o próprio ex-juiz federal Sergio Moro, hoje Ministro de Estado. É importante lembrá-lo do que ele mesmo defendia: que a democracia exige que os governados saibam o que fazem seus governantes, mesmo quando estes agirem na obscuridade. Moro acreditou estar protegido, mas não estava. É o títere de um processo sombrio e tenebroso, repleto de fantasmas. Sua cruzada moralista ao arrepio da lei conhecerá aquilo de que realmente uma democracia não pode prescindir, o respeito aos limites da lei, mesmo quando acreditar que esteja acima dela e protegido pelas sombras!
Publicado no Site do Jornal Diário de Santa Maria em 12 de junho de 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/protegido-pelas-sombras-1.2146824

Justiça tem lado?

Os áudios vazados no fim da tarde dessa terça-feira, dia 08 de julho, pelo site The Intercept provocam uma discussão sobre a atuação do sistema judiciário brasileiro. Um Procurador da República comemora que um ex-presidente, em época de campanha eleitoral, fica impedido por uma liminar do STF, de dar entrevista aos jornalistas Florestan Fernandes e Mônica Bergamo. Isso nos permite perguntar: justiça tem lado? O procurador aconselha seus colegas manterem discrição pois se houver alarde sobre a liminar poderá haver "recurso do outro lado (...) por quem tem uma posição contrária à nossa".
Uma volta no tempo nos permite perceber o papel do judiciário na sociedade Moderna. Com a Revolução Gloriosa, na Inglaterra de 1688, nasce o inédito direito de destituir juízes, transferido do Rei para o Parlamento. Assim, surge a independência política do judiciário. Independente, ele não precisa mais ter lado, pode atuar apenas atento aos pressupostos legais. Mais tarde, na Alemanha, há exatos 100 anos, com a constituição de Waimar, fica estabelecido o papel do judiciário na estrutura do Estado. Ela reorganizou o Estado em função da Sociedade e não apenas do indivíduo. Mais que isso, consolida a independência da justiça em relação à política e às mudanças e dissabores da sociedade. 
A justiça agora está do lado da lei! O judiciário então, torna-se intangível pelo poder político justamente pelo seu papel técnico, que exerce a função de aplicação normativa e não de decisão originária normativa, que é papel do Parlamento. Este sim deve "ter lado" e defender os interesses de quem o elegeu. 
No brasil, o pacto de independência entre os poderes está estipulado na constituição de 1988 e ali está posto a função de cada um no Estado brasileiro. Não é função do judiciário participar de acordos políticos ou agir politicamente, comemorar ou aconselhar quaisquer das partes. O Poder Judiciário deve à sociedade o papel subalterno de aplicador da norma e não de agente político. O judiciário, portanto, não pode participar de pactos políticos, sob pena de incorrer em evidente improbidade. 
A função do judiciário, tomando-o dentro de uma compreensão política mais ampla do termo, é uma ação política interpretativa, de aplicação da norma; não uma ação política instaurativa, propositiva do que é novo, originária de novas relações, de uma nova estrutura social, isso é política no strictu senso e devem ser os políticos a fazê-la. 
Nesses termos, ouvir os áudios de um Procurador comemorando o fracasso legal de uma das partes é de uma covardia inominável. Assim colocado, totalmente afeito a uma das partes, o judiciário, que deveria ter uma função reativa às ilegalidades, torna-se ele próprio ativo e protagonista do uso político da lei, do lawfare. E o pior de tudo, só verá problema nisso quem tiver uma opinião "contrária à nossa", ou melhor, contrária ao lado que a justiça parcial que esse específico Procurador defende!

Publicado originalmente no site do Diário de Santa Maria em 10/07/2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/justi%C3%A7a-tem-lado-1.2152627