Em 2016, a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade
de Oxford elegeu o vocábulo "pós-verdade" como a palavra do ano na
língua inglesa. Ela é também, e certamente, uma palavra central para pensar as
circunstâncias que vivemos no Brasil de hoje. Entretanto, por aqui, subvertemos
a expressão inglesa, extrapolamos seu significado, esgarçamos seus limites e,
possivelmente, tenhamos instaurado, assim, a pós-mentira!
Na origem, a expressão “pós-verdade” foi usada pela primeira
vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesic e designava uma
situação em que na hora em que se desenha a opinião pública, os fatos objetivos
importam menos que nossas crenças e valores. Mas o que é mais grave é o seu uso
político, pois é uma política pós-factual. Equivale a dizer que não importa se
algo é verdade ou não, mas o tanto de impacto que pode causar antes de ser
verificado ou comprovado. Depois do estrago feito vem a se saber que não era
verdade, que se tratava de mentira travestida de verdade, mas aí o estrago já
está feito, cumpriu sua função!
A questão, portanto,
é que não se trata de pós “verdade”, mas de pós “mentira”, pois o que se
comprova post factum é a sua inveracidade
e não sua veracidade. Mas por que aceitamos isso? Por que convivemos com isso?
Por que tantos acreditaram, por exemplo, no “kit gay”? Uma mentira distribuída
como verdade e em escala industrial, responsável direta pela ascensão da
mentira ao poder. Como isso foi possível?
Uma narrativa judaica talvez ajude a responder. Ela conta
que certa vez, a mentira e a verdade se encontraram. A mentira disse para a
verdade: “Que dia lindo!” A verdade olhou para o céu desconfiada, mas percebeu que
estava um lindo dia de sol. Elas andaram um pouco e chegaram até uma fonte,
quando a mentira a convidou para se banharem. Novamente incrédula a verdade
conferiu a água, achou bastante aprazível e aceitou o convite para o banho. Despiram-se
e entraram na água. Percebendo a verdade distraída, a mentira saiu da água,
vestiu-se com as roupas da verdade e foi-se dali. A verdade, por sua vez,
recusou cobrir-se com as vestes da mentira. E por não ter do que se
envergonhar, saiu a caminhar nua pelas ruas e vilas.
Deve ser por isso que muitos de nós se recusam a encarar a verdade,
pois ela põe a nu nossas crenças e valores. Preferimos agir hipocritamente
escondidos em “pós-mentiras” e fakenews,
desde que vestidas de verdades. Sem elas
sentiríamos vergonha de aplaudir mitos idiotas e falsos heróis, ficaríamos
constrangidos diante da nudez de nossas mentiras imediatas; seria insuportável
não ter como justificar nossas escolhas, ódios e preconceitos.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 20 de novembro de 2019https://diariosm.com.br/colunistas/colunas-tem%C3%A1ticas/p%C3%B3s-mentira-1.2183492
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