quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Pós-mentira


Em 2016, a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford elegeu o vocábulo "pós-verdade" como a palavra do ano na língua inglesa. Ela é também, e certamente, uma palavra central para pensar as circunstâncias que vivemos no Brasil de hoje. Entretanto, por aqui, subvertemos a expressão inglesa, extrapolamos seu significado, esgarçamos seus limites e, possivelmente, tenhamos instaurado, assim, a pós-mentira!Resultado de imagem para pós verdade
Na origem, a expressão “pós-verdade” foi usada pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesic e designava uma situação em que na hora em que se desenha a opinião pública, os fatos objetivos importam menos que nossas crenças e valores. Mas o que é mais grave é o seu uso político, pois é uma política pós-factual. Equivale a dizer que não importa se algo é verdade ou não, mas o tanto de impacto que pode causar antes de ser verificado ou comprovado. Depois do estrago feito vem a se saber que não era verdade, que se tratava de mentira travestida de verdade, mas aí o estrago já está feito, cumpriu sua função!
 A questão, portanto, é que não se trata de pós “verdade”, mas de pós “mentira”, pois o que se comprova post factum é a sua inveracidade e não sua veracidade. Mas por que aceitamos isso? Por que convivemos com isso? Por que tantos acreditaram, por exemplo, no “kit gay”? Uma mentira distribuída como verdade e em escala industrial, responsável direta pela ascensão da mentira ao poder. Como isso foi possível?Resultado de imagem para pós verdade
Uma narrativa judaica talvez ajude a responder. Ela conta que certa vez, a mentira e a verdade se encontraram. A mentira disse para a verdade: “Que dia lindo!” A verdade olhou para o céu desconfiada, mas percebeu que estava um lindo dia de sol. Elas andaram um pouco e chegaram até uma fonte, quando a mentira a convidou para se banharem. Novamente incrédula a verdade conferiu a água, achou bastante aprazível e aceitou o convite para o banho. Despiram-se e entraram na água. Percebendo a verdade distraída, a mentira saiu da água, vestiu-se com as roupas da verdade e foi-se dali. A verdade, por sua vez, recusou cobrir-se com as vestes da mentira. E por não ter do que se envergonhar, saiu a caminhar nua pelas ruas e vilas.
Deve ser por isso que muitos de nós se recusam a encarar a verdade, pois ela põe a nu nossas crenças e valores. Preferimos agir hipocritamente escondidos em “pós-mentiras” e fakenews, desde que vestidas de verdades.  Sem elas sentiríamos vergonha de aplaudir mitos idiotas e falsos heróis, ficaríamos constrangidos diante da nudez de nossas mentiras imediatas; seria insuportável não ter como justificar nossas escolhas, ódios e preconceitos.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 20 de novembro de 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/colunas-tem%C3%A1ticas/p%C3%B3s-mentira-1.2183492

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