Esse espaço é um laboratório de Teoria Social. Quanto a mim, sou antropólogo e professor na Universidade Federal do Pampa. Tenho graduação e mestrado em Ciências Sociais, licenciatura em Sociologia, especialização em História do Brasil, doutorado e pós doutorado pela UFSM.
domingo, 31 de janeiro de 2021
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
As Forças Armadas do caos. Por Vladimir Safatle
Militares brasileiros estão associados ao uso da força para o silenciamento das consequências da miséria e do descaso. Fazem isso mais uma vez na pandemia. Por isso, a única saída é o impeachment
por Vladimir Safatle*, em El País
Uma das maiores ilusões a respeito do Governo Bolsonaro é que ele seria composto por dois eixos em estado contínuo de antagonismo. De um lado, haveria o núcleo ideológico, com suas pautas de regressão social e isolamento internacional, enquanto no outro lado encontraríamos o núcleo militar. Se o primeiro seria impulsionado pela crença em ser o protagonista maior de uma revolução conservadora no Brasil, o segundo seria ainda pautado por certa perspectiva “moderada” e “racional”.
Na verdade, essa foi a melhor narrativa que as Forças Armadas poderiam encontrar para si mesmas. Isso lhes permitiu tomar de assalto o poder executivo, colocando milhares de seus membros da ativa e da reserva dentro da estrutura do poder, sem ter que assumir o ônus de agente fundamental do caos. Jogando a carta do corpo técnico que assume o Estado corrompido, procurando defende-lo de ideólogos que viriam de todos os lados, as Forças Armadas tentaram vender ao país a imagem de serem uma espécie de força de contenção indispensável e inevitável. Bastouuma pandemia com seus desafios reaispara que toda essa história ruísse
Na verdade, o país viu, agora em escala catastrófica, a repetição do que sempre ocorre quando as Forças Armadas tomam a frente. O que está a ocorrer no Brasil atualmente é sim a implementação consequente do ideário que anima suas Forças Armadas. Pois longe de serem uma parte da solução, elas são historicamente o eixo fundamental do problema.
Faz parte das tomadas de poder das Forças Armadas criar essa imagem de serem animadas por um conflito interno, como se estivéssemos a todo momento a lidar com uma instituição dividida entre o bom policial e o mau policial. Já na ditadura militar havia a pantomima do conflito entre o núcleo duro e os moderados. Foi isso que permitiu aos militares fazer um duplo papel, entre o Governo e a oposição ao Governo delas próprias. Se a ditadura brasileira conseguiu durar inacreditáveis 20 anos é porque tal pantomima fazia parte do modo normal de governo. Para fazer o Governo funcionar, era fundamental que os opositores encontrassem, nas próprias Forças Armadas, a esperança de uma contenção das Forças Armadas. Da mesma forma, agora estamos a ver o pretenso conflito entre o grupo ligado a Bolsonaro e os generais mais sensatos. Sensatez essa que não foi capaz de influenciar em uma ação sequer que pudesse tirar o país do caminho em direção às mais de 200.000 mortes, isso a despeito de todo o esforço estatal de desaparecimento de corpos.
Quem fizer uma pesquisa a respeito das propagandas louvando o “ideal de desenvolvimento” do regime militar encontrará essas campanhas narrando a vitória do homem (sim, eram sempre homens) sobre o “inferno verde” representado pela Amazônia. Vitória essa que se daria através da abertura de estradas como a Transamazônica ou de projeto absurdos e corruptos como o Projeto Jari. Fotos de grande troncos de árvores centenárias cortadas e empilhadas em caminhões ilustravam o canto do país que vencia suas “fronteiras internas” à base do fogo, do roubo, da posse e do desaparecimento dos corpos de ameríndios mortos. O que Bolsonaro fez foi simplesmente levar às últimas consequências o ideário que sempre moveu as Forças Armadas como ponta de lança da guerra do Brasil contra si mesmo. As chamas cuja fumaça chega agora até nossas grandes cidades não é fruto de um Nero tropical, mas a consequência lógica do espírito que suas Forças Armadas sempre representaram.
No entanto, essa guerra do Brasil contra si mesmo foi não apenas contra a natureza. Ela foi uma guerra contra sua própria população. A história das Forças Armadas brasileiras é a história de uma guerra interna, de uma guerra civil não declarada que vai de Canudos e Contestado até o uso do Exército como “força de pacificação” nas comunidades do Rio de Janeiro. Ela foi a história do uso da força e do extermínio contra movimentos populares de toda ordem desde o Império. Ela foi ainda a história perpetua da “caça ao comunismo” desde o aparecimento do primeiro líder popular da república brasileira, Luís Carlos Prestes: um militar que escolheu o lado das lutas populares e que antecipou as táticas que seriam usadas, de maneira vitoriosa, na grande marcha chinesa. Esse fantasma da “caça ao comunismo” é a razão de existência das Forças Armadas brasileiras, e Bolsonaro sabe muito bem disso. É ele que lhe levou a dizer: “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”. “Comunismo” é o nome que as Forças Armadas brasileiras usam para se referir à figura de um povo insurreto.
Mas, principalmente, militares brasileiros estão associados ao uso da força para o silenciamento das consequências da miséria e do descaso. Faz-se necessário lembrar disso mais uma vez pois o que estamos a ver nessa pandemia, a catástrofe humanitária que a gestão das Forças Armadas produziu, não é um acaso. É a consequência necessária da maneira com que os militares sempre lidaram com a morte da sua própria população. Longe de procurar “proteger” as populações, suas ações sempre se deram no sentido de lembrar aos setores vulneráveis da população brasileira de que eles são matáveis sem dolo e sem imagem. É isso que as Forças Armadas estão a fazer mais uma vez com sua gestão criminosa e omissa em relação à pandemia.
Em menor escala, isso já ocorreu entre nós outras vezes. Que se lembrem dos espaços de silêncio da história brasileira. Lembremos, por exemplo, da natureza da violência estatal para confinar e deixar morrer populações em crises de seca. Foi no Ceará, entre 1915 e 1932, que o Brasil conheceu campos de concentração (sim, esse foi inclusive o termo usado à época) criados em cidades como Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Crato e Cariús, destinados a impedir que os flagelados da seca chegassem à capital. Campos nos quais se confinavam milhares de retirantes e se morria em massa por descaso, omissão e indiferença. E vejam que coincidência, o número de mortes é ainda hoje incerto (estimam-se só no Patu, em Senador Pompeu, até 12.000 mortes sem certidão de óbito e em vala coletiva). Ou seja, esse é de fato o modus operandi das Forças Armadas.
Contra a revolta de setores da sociedade diante de tal descaso, as Forças Armadas agora ameaçam o país com um estado de defesa, que suspenderia certas garantias institucionais, e que seria a forma efetiva de um autogolpe de Bolsonaro. No momento em que até tal carta é colocada sobre a mesa, o país não pode mais ser leviano em relação ao impeachment daquele que ocupa atualmente a presidência da república. Há sob sua responsabilidade direta uma somatória de crimes de omissão, de responsabilidade, de incentivo a comportamento que resultaram em um verdadeiro genocídio da população brasileira. Nenhum presidente da república tem tantas razões para ser afastado, julgado e encarcerado quanto o senhor Jair Bolsonaro.
Há um ano, vários foram os que insistiram que a única saída seria o impeachment. Naquela ocasião, não faltaram os que disseram que clamar por um impeachment era colocar a política à frente das exigências imediatas de gestão. Disseram que era importante obrigar o Governo a atuar contra a pandemia, ao invés de dispersar forças em um pedido de impeachment. A história demonstrou, no entanto, que não havia possibilidade alguma de levar Bolsonaro a gerir a pandemia. Ao contrário, ele não desprezou ocasião alguma para colaborar efetivamente para a situação na qual nos encontramos agora, com a população brasileira em estado de máxima vulnerabilidade, insuflando a indiferença em relação à morte e à ausência de proteção efetiva por parte do Estado.
Tudo isso demonstra como há de se lembrar, mais uma vez, que a única saída é o impeachment. E àquelas e àqueles que esqueceram, impeachment se conquista através da ocupação das ruas e do bloqueio das atividades. Os que têm privilégios ligados à segurança fornecida pelo acesso a serviços privados de saúde deveriam usar tal privilégio e forçar o fim deste Governo através da ocupação das ruas. Essa é a única coisa realmente concreta que podemos fazer para defender o país contra a pandemia. E só a certeza da existência dessa força popular que fará as Forças Armadas ocuparem seu único e verdadeiro lugar: esse caracterizado pelo afastamento da vida política nacional, o silêncio em relação à política e o retorno aos quartéis. Um pretenso Governo Mourão, por ser fruto da pressão popular, já nasceria natimorto. Isso até que consigamos enfim uma sociedade que não precise mais de Forças Armadas, pois se defende a si mesma.
*Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
–
Sem máscara, o presidente Jair Bolsonaro participa de evento em comemoração aos 80 anos da Aeronáutica, na quarta passada.ERALDO PERES / AP
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
A PANDEMIA DE 2020 E A NECESSIDADE DA TEORIA SOCIAL MARXIANA
Os
momentos de crise e colapsos da humanidade são possibilidades de
ressignificação de conceitos e de práticas, embates e discussões, avanços e
rupturas na tentativa de atenuar as situações inoportunas do dia-a-dia, mas,
sobretudo, para suprir a demanda e a necessidade da existência humana a partir
das tomadas de decisões e do agir prático no mundo do coletivo social.
Diante
da pandemia mundial de COVID-19 (vírus que causa infecções respiratórias e já
vitimou dezenas de centenas de pessoas pelo mundo e, atualmente, se manifesta
por solo/ar brasileiro, atestando, até então, mais de 203 mil mortes e mais de 8,1
milhões de casos confirmados[A1] ),
as orientações dadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelos cientistas/pesquisadores
e profissionais da saúde, para conter a proliferação do vírus no mundo todo, foram
uma boa higienização (das mãos com água, sabão e álcool em gel), uso de máscaras
e a não incidência de aglomerações, ou seja, como a elaboração e a aplicação de
vacinas ainda estão em processo e o desenvolvimento de planos de vacinação em
escala nacional ainda está em “avaliação”, tendo previsão de início para “o dia D e na
hora H”, [A2] como
argumentou o próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo (no Brasil, um plano
nacional de vacinação está em vistas de realização e desenvolvimento por parte
do Ministério da Saúde, mas nada concreto), a melhor recomendação, para sua
não-disseminação e prevenção, é a reclusão ou isolamento social, permanecendo
apenas em funcionamento os serviços essenciais como, entre outros, farmácias,
mercados, hospitais, postos de saúde, postos de gasolina. Esse fato nos
apresentou um dilema: salvar vidas ou a economia?
Tal
impasse foi fortalecido no dia 24 de março durante o pronunciamento, em rede
nacional, do Excelentíssimo Senhor Presidente da República que, contrariando as
recomendações médicas e dos órgãos responsáveis pela produção da Pesquisa em Saúde
no país e no mundo, solicitou a retomada das atividades produtivas e prestações
de serviços pelas empresas, comércios, escolas, entre outros, mantendo em
resguardo apenas as pessoas que se encontram no grupo de risco: idosos, diabéticos,
hipertensos, doentes cardíacos e pessoas com problemas respiratórios, entre
outros.
Esse
cético e negacionista discurso presidencial, minimizando os efeitos da pandemia,
inclusive chamando-a de “gripezinha” ou
“resfriadinho”, foi proferido com o
pretexto de “salvar” a economia do país que, conforme dados do IBGE, apresentou
em 2019 um PIB de 1,1, significando o menor avanço dos últimos 3 anos e dando
resquícios (para não dizer “intensificando”) de crise econômica nacional.
As
consequências e repercussões desse discurso gerou uma polarização nacional. De
um lado aqueles (principalmente empresários) que defendiam a retórica do
presidente e simpatizavam com o encerramento do isolamento social e a retomada
imediata das atividades de trabalho e produção; e, de outro, aqueles (trabalhadores
da saúde, da educação, gestores municipais e estaduais, demais trabalhadores em
geral) que consentiam com as recomendações científicas e dos profissionais da
saúde, defendendo a permanência do isolamento social de forma temporária para
amenizar as consequências da disseminação do vírus nas comunidades e nos leitos
hospitalares.
Nesse
interim, retomamos a questão: salvar vidas ou salvar a economia? Quais os
limites dessa dicotomia, isto é, há vida sem economia e/ou há economia sem
vida? De que economia se está tratando? Quantas vidas valem a “retomada
econômica” ou “proteção econômica”? Aliás, retomada econômica para “quem”? No
sentido de manifestar um posicionamento sobre essas indagações, cabe uma
reflexão à luz da Teoria Marxiana.
Infelizmente
há correntes teóricas que não mais reconhecem a relevância da obra Marxiana
para uma pertinente análise de nossos dias. Também há aqueles que (ainda) compactuam
com o fim da História e com o fim do Trabalho. Contrariamente, lançamos mão dos
ensinamentos da Teoria Social Marxiana para pontuar e fundamentar nossos
argumentos em torno da reflexão lançada acima.
Com
ela aprendemos que o trabalho, na
qualidade de atividade exclusivamente humana, tudo produz, isto é, na síntese
homem/mulher-natureza há uma mediação da atividade do trabalho para a produção de bens materiais e espirituais, serviços,
mercadorias e riquezas de todos os gêneros, inclusive a vida e o próprio gênero
humano. Se o trabalho tudo produz,
logo quem trabalha (o sujeito do trabalho ou trabalhador) é o responsável pela
produção ao empreender trabalho vivo e concreto à lógica produtiva de seu tempo
histórico.
Outro
ensinamento é o que segue: o primeiro pressuposto para fazermos história é a
existência e o primeiro ato histórico da humanidade foi a produção de meios
para sua existência. Noutras palavras, para produzirmos nossa existência e
escrevermos/vivermos nossa história (a história humana) é imprescindível o
pressuposto da existência: precisamos existir e estar em condições de existir para
produzirmos nossa vida, nossa história, nossa sociedade e, portanto, nossa base
econômica.
Esses
dois ensinamentos instrumentalizam e fomentam a reflexão acerca do embate: vida
ou economia? Isto é, o trabalho juntamente
com seu produtor/executor (trabalhador) e o pressuposto da existência e da
produção dos meios para tal, são determinações fundamentais para pautarmos e
delinearmos tal discussão.
Em
suma, sabemos quem retornou ou protegeu a economia: os trabalhadores e
trabalhadoras, que, em razão da propriedade privada dos meios de produção por
parte do empresariado, muito pouco ou quase nada irão usufruir da riqueza
produzida, apenas o mínimo necessário para (re)produzirem sua precária
existência, ou melhor, sua sobrevivência e de seus pares. Em razão disso, o
“apelo” a retomada da produção e da volta ao trabalho, dissimulado pela preocupação
com a falta de alimentos e salários ou, até mesmo, com o rompimento dos
contratos de trabalho (demissões em massa) e respaldado pelo discurso irresponsável
e criminoso do presifake da república, é uma demanda da classe empresarial do
país que está mais interessada em acumular e valorizar sua riqueza e seu
capital do que apresentar melhores condições de vida aos trabalhadores. Aliado
a isso temos a existência, a história, a vida dos trabalhadores que está em
risco ao serem expostos ao vírus no caminho até o trabalho, em transportes
lotados e em filas gigantescas, assim como no próprio local e nas relações de
trabalho.
Ao
priorizarem a produção e a economia em detrimento da vida humana, fica
evidente, portanto, o menosprezo de classe e o quanto descartáveis são os
trabalhadores e trabalhadoras. Esses, coagidos pelas ameaças de fim/rompimento
de contrato e por rótulos opressores (vagabundos,
esquerdistas, sustentados pelos pais, tirando férias...) proferidos por
simpatizantes do “discurso da morte”, como ficou denominado o pronunciamento do
presifake (dia 24/03), retornaram aos seus postos de trabalho com nenhuma
garantia por parte do Estado ou das empresas (além do Auxílio Emergencial como
empreitada maior da oposição) de sobrevivência e melhoria das condições de
trabalho/vida. E, caso forem contaminados e chegarem a óbito, em razão dos
hospitais não comportarem as demandas emergenciais de atendimento, serão
substituídos por outros trabalhadores, que seguirão o movimento da máquina
produtiva e “recuperarão” a economia, mantendo a ordem e o lucro do patrão.
Esses
foram dois ensinamentos marxianos que sempre ressurgem nos momentos de crise,
em especial no atual momento de pandemia pelo COVID-19. Aliás, eles nunca
morreram, sempre estiveram vivos e permeando nossas vidas, mas muitos não
percebem (por não terem acesso aos instrumentos e rudimentos desses conceitos e
fundamentos) ou, por mau-caratismo, não reconhecem como determinações socio-históricas,
objetivadas no modo de produzir a vida no capitalismo.
Portanto,
tão importante quanto à economia é a vida, a existência humana e as condições
para tal. A economia, que não se resume a dinheiro ou renda e sim às formas de
extrair da natureza e das relações sociais as bases concretas de manutenção e
reprodução da vida, só ocorre a partir da existência de sujeitos em pleno
desenvolvimento e em plenas condições materiais para transformarem a natureza e
a si próprio por meio da atividade vital humana e consciente que é o trabalho, produtor de todas as riquezas.
Por
fim, à titulo de provocações finais, se a grande preocupação, seja do
presifake, seja do empresariado, era “salvar a economia” e a economia só pode
ser “salva”, produzida e valorizada pelo trabalho vivo (pela atividade do
trabalhador), por que o Brasil, nas figuras institucionais do Ministério da
Saúde e do próprio presifake, ainda não apresentou um plano real de vacinação
em âmbito nacional para dar condições de existência e de agir aos trabalhadores
e trabalhadoras? Isso seria “apenas” mais um traço da incompetência do governo?
As evidências da materialidade do mundo produzem possíveis conclusões!
A EDUCAÇÃO NA ERA DA PÓS-VERDADE: PROVOCAÇÕES DE NOSSO TEMPO
Por Gislei José Scapin
Ditadura
no Brasil: existiu? Nazismo: de esquerda ou de direita? Terra: plana ou
arredondada? Vacinas: boas ou ruins? Essas são algumas das emergentes
inquietações que se balizam no plano da Pós-Verdade. Tais questões me ‘saltam
aos olhos’, uma vez que teriam sido respondidas e, sobretudo, certificadas,
considerando o movimento de provisoriedade da Verdade histórica e objetiva.
Contudo,
o que pretendo destacar não é somente esse movimento de ceticismo para com os fatos
e a objetividade certificada historicamente pela humanidade, mas refletir,
leia-se provocar, sobre as atuais formas de manipulação da Verdade e seus meios
de divulgação, e, sobretudo, como isso afeta os processos educativos da
sociedade. Para tanto, penso ser necessário elencar algumas questões: em tempos
atuais, que/qual Verdade estamos construindo? Em que/qual Verdade estamos
acreditando? Que/qual Verdade estamos socializando e/ou compartilhando? E, por
fim, o que o movimento da Pós-Verdade representa para a Educação?
O termo Pós-Verdade, conforme o Oxford
Dictionaries, foi a palavra do ano em 2016, contendo a seguinte definição de
forma abreviada: circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes
em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal,
considerando, também, a função assertiva de um interlocutor-chave. Nesse bojo,
compartilho do pensamento do jornalista britânico Matthew D’Ancona ao explicar
que Pós-Verdade não coincide com a mentira, pois essa ultima sempre existiu ao
longo da história humana. O fenômeno atual, por sua vez, trata da reação das
pessoas às formas de manipulação e deturpação da realidade e da verdade, isto
é, a indignação dá lugar à indiferença e à conivência. A primazia da emoção e
do sentimentalismo em detrimento da razão e dos fatos objetivos, como forma de
compreensão e explicação da realidade concreta, corrobora para o desmoronamento
do valor da Verdade e, por fim, do desprezo à própria ciência (elevem isso a um
contexto pandêmico: já imaginaram o estrago? Evidências não nos faltam).
Diante
disso, percebo que todo o movimento e o caminho de explicação do real, que foi
desenvolvido e percorrido pela humanidade superando as formas de entender o
mundo a partir do mito para, pois, expressar e consolidar o pensamento
racional, tenha caído por terra com o advento da Pós-Verdade. Expresso esse
entendimento, uma vez que na era da Pós-Verdade os fatos, além de serem
manipulados, são interpretados a partir das causas emocionais e sentimentais
dos indivíduos, cada um com sua forma de compreender e reproduzir a realidade,
cada um com sua subjetividade de mundo, que se multiplica a passos largos no
plano da intersubjetividade, isto é, das coletividades que compartilham das
mesmas sensações e emoções em prol do lhe convém. A título de exemplo, como
mencionei no início deste artigo, podemos citar o movimento antivacina no
Brasil, que, a partir de crenças, leiam-se teorias da conspiração, construídas
e disseminadas por determinado coletivo, divulgou um rol de críticas às
campanhas de vacinação, desprezando todo o avanço no campo da medicina. Segundo
dados do Ministério da Saúde, a aplicação de vacinas destinadas às crianças
menores de dois anos de idade apresentava uma queda desde 2011, resultado
disso: o Sarampo, em escala ampliada, deu as caras por aqui novamente. Imaginem
isso no atual momento histórico, pandêmico, em que vivemos, onde o próprio
Excelentíssimo Senhor “Presifake”, o inominado, está impulsionando uma campanha
antivacina (com enorme carga xenofóbica) e seu “gado”, evidentemente, estão
aderindo e fortalecendo tal ação. Vejam como a Pós-Verdade encontra seu espaço
na contemporaneidade, em especial regada pelos envios/disparos em massa via
rede social.
Centralizando
minha argumentação no plano da coletividade e da intersubjetividade, qual/quais
meios proporcionam a consolidação da era da Pós-Verdade, construindo uma
realidade pautada pela primazia da emoção e do sentimento? Para responder essa
questão, diferentemente dos adeptos da Pós-Verdade, não utilizarei minhas
emoções ou meus sentimentos, mas sim dados e fatos objetivos a partir do que
vem sendo estudado/pesquisado neste início de século. Adepto das narrativas da
Modernidade e acreditando nos saberes legitimados pela Racionalidade
Científica, ponderam que o terreno fértil para a Pós-Verdade advém das teses e
da conjuntura da Pós-Modernidade em consonância com a expansão da globalização
e da informática/internet, materializado pela era da informação (diferente de “conhecimento”)
e da sociedade do conhecimento (“conhecimento como força produtiva”, como se
isso fosse algo ‘novo’, né, Marx?), em escala mundial. Disseminada, reitero,
pelo uso desenfreado e (mau) intencionado das redes sociais, a Pós-Verdade
produz a sua narrativa e sua forma de consciência irracional, a-histórica e
anti-realista, penetrando o cérebro, nervos, ossos e músculos das pessoas via
emoções/sentimentos e pela força do medo e do ódio (medo de uma vacina e ódio a
um povo/cultura que supostamente teria criado um vírus em laboratório para
tomar o poder/controle do mundo, por exemplo).
Em
síntese, acredito que esses mecanismos possibilitam a divulgação e
compartilhamento de informações (manipuladas e deturpadas) em tempo record, bem
como atingindo o maior número de indivíduos e usuários possíveis, que, sem
filtro e despidos de instrumentos para analisar/verificar/constatar as
informações recebidas, tratam-na como Verdade (absoluta) conforme a
identificação dessas com seus sentimentos, suas emoções e suas crença, desconstruindo
e nivelando “por baixo” toda a produção de conhecimento e toda a realidade
objetiva, desgastando, por fim, a noção de Verdade.
Como
a Educação lida com isso? Quais implicações desse cenário para o processo
educativo? Em minha reflexão, não limito a Educação na esfera da escolarização,
tampouco me referindo ou limitando em etapas ou idade específica dos sujeitos.
Penso que seja necessário elucidar as implicações da Pós-Verdade no âmbito mais
geral da Educação, no qual entendo como o processo de socialização e
apropriação dos saberes, da cultura, de toda a produção humana que precisa ser
disponibilizada e generalizada a todos como forma de manter a reprodução do
gênero humano e construir um projeto histórico de sociedade.
Entretanto,
como realizar esse processo educativo considerando todo o contexto da era da
informação e da manipulação dos fatos e da Verdade? Como enfrentar a indústria
da desinformação e da Fake News, a qual atinge boa parte do público adulto,
gerando, dentre outras, implicações no campo da política e, até mesmo,
contribuindo para a eleição presidencial, vide EUA (2016) e Brasil (2018)? Que
desafios enfrentarão os educadores, em especial, os professores, sobretudo no
Brasil, país que, conforme os Editores da Faro Editorial, em material publicado
em 2018, deu um salto da mentalidade mitopoética para a mentalidade da
Pós-Verdade, onde as marcas definidoras da Modernidade e do Iluminismo nunca
fincaram raízes? Quais instrumentos e/ou mecanismos serão utilizados e/ou
estarão à disposição dos educadores (em todos os sentidos), em especial, mais
uma vez, dos professores, para superar a era da Pós-Verdade e formar sujeitos
críticos e capazes de lidar e reconhecer a distorção dos fatos e da realidade,
ao passo em que o (novo) Brasil de 2019/2020 – da nova política, do
patriotismo, do conservadorismo, do fundamentalismo religioso, do
anticomunismo, do “fim da mamata”, do enxugamento e das Reformas do Estado, entre
outros traços – ataca e “mata a mingua” a Educação e todos os serviços
públicos? Como (re)construir (se é que foi construído) o senso crítico em
indivíduos que produzem sua existência no cenário exposto, atuando com indiferença
e incredulidade demasia diante da realidade deturpada?
Por
fim, que/quais armas teremos, enquanto sujeitos sociais e históricos, para combater
a arrasadora de fatos e Verdades chamada Pós-Verdade? Ou melhor, o que
aconteceu com a Verdade?