Os
momentos de crise e colapsos da humanidade são possibilidades de
ressignificação de conceitos e de práticas, embates e discussões, avanços e
rupturas na tentativa de atenuar as situações inoportunas do dia-a-dia, mas,
sobretudo, para suprir a demanda e a necessidade da existência humana a partir
das tomadas de decisões e do agir prático no mundo do coletivo social.
Diante
da pandemia mundial de COVID-19 (vírus que causa infecções respiratórias e já
vitimou dezenas de centenas de pessoas pelo mundo e, atualmente, se manifesta
por solo/ar brasileiro, atestando, até então, mais de 203 mil mortes e mais de 8,1
milhões de casos confirmados[A1] ),
as orientações dadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelos cientistas/pesquisadores
e profissionais da saúde, para conter a proliferação do vírus no mundo todo, foram
uma boa higienização (das mãos com água, sabão e álcool em gel), uso de máscaras
e a não incidência de aglomerações, ou seja, como a elaboração e a aplicação de
vacinas ainda estão em processo e o desenvolvimento de planos de vacinação em
escala nacional ainda está em “avaliação”, tendo previsão de início para “o dia D e na
hora H”, [A2] como
argumentou o próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo (no Brasil, um plano
nacional de vacinação está em vistas de realização e desenvolvimento por parte
do Ministério da Saúde, mas nada concreto), a melhor recomendação, para sua
não-disseminação e prevenção, é a reclusão ou isolamento social, permanecendo
apenas em funcionamento os serviços essenciais como, entre outros, farmácias,
mercados, hospitais, postos de saúde, postos de gasolina. Esse fato nos
apresentou um dilema: salvar vidas ou a economia?
Tal
impasse foi fortalecido no dia 24 de março durante o pronunciamento, em rede
nacional, do Excelentíssimo Senhor Presidente da República que, contrariando as
recomendações médicas e dos órgãos responsáveis pela produção da Pesquisa em Saúde
no país e no mundo, solicitou a retomada das atividades produtivas e prestações
de serviços pelas empresas, comércios, escolas, entre outros, mantendo em
resguardo apenas as pessoas que se encontram no grupo de risco: idosos, diabéticos,
hipertensos, doentes cardíacos e pessoas com problemas respiratórios, entre
outros.
Esse
cético e negacionista discurso presidencial, minimizando os efeitos da pandemia,
inclusive chamando-a de “gripezinha” ou
“resfriadinho”, foi proferido com o
pretexto de “salvar” a economia do país que, conforme dados do IBGE, apresentou
em 2019 um PIB de 1,1, significando o menor avanço dos últimos 3 anos e dando
resquícios (para não dizer “intensificando”) de crise econômica nacional.
As
consequências e repercussões desse discurso gerou uma polarização nacional. De
um lado aqueles (principalmente empresários) que defendiam a retórica do
presidente e simpatizavam com o encerramento do isolamento social e a retomada
imediata das atividades de trabalho e produção; e, de outro, aqueles (trabalhadores
da saúde, da educação, gestores municipais e estaduais, demais trabalhadores em
geral) que consentiam com as recomendações científicas e dos profissionais da
saúde, defendendo a permanência do isolamento social de forma temporária para
amenizar as consequências da disseminação do vírus nas comunidades e nos leitos
hospitalares.
Nesse
interim, retomamos a questão: salvar vidas ou salvar a economia? Quais os
limites dessa dicotomia, isto é, há vida sem economia e/ou há economia sem
vida? De que economia se está tratando? Quantas vidas valem a “retomada
econômica” ou “proteção econômica”? Aliás, retomada econômica para “quem”? No
sentido de manifestar um posicionamento sobre essas indagações, cabe uma
reflexão à luz da Teoria Marxiana.
Infelizmente
há correntes teóricas que não mais reconhecem a relevância da obra Marxiana
para uma pertinente análise de nossos dias. Também há aqueles que (ainda) compactuam
com o fim da História e com o fim do Trabalho. Contrariamente, lançamos mão dos
ensinamentos da Teoria Social Marxiana para pontuar e fundamentar nossos
argumentos em torno da reflexão lançada acima.
Com
ela aprendemos que o trabalho, na
qualidade de atividade exclusivamente humana, tudo produz, isto é, na síntese
homem/mulher-natureza há uma mediação da atividade do trabalho para a produção de bens materiais e espirituais, serviços,
mercadorias e riquezas de todos os gêneros, inclusive a vida e o próprio gênero
humano. Se o trabalho tudo produz,
logo quem trabalha (o sujeito do trabalho ou trabalhador) é o responsável pela
produção ao empreender trabalho vivo e concreto à lógica produtiva de seu tempo
histórico.
Outro
ensinamento é o que segue: o primeiro pressuposto para fazermos história é a
existência e o primeiro ato histórico da humanidade foi a produção de meios
para sua existência. Noutras palavras, para produzirmos nossa existência e
escrevermos/vivermos nossa história (a história humana) é imprescindível o
pressuposto da existência: precisamos existir e estar em condições de existir para
produzirmos nossa vida, nossa história, nossa sociedade e, portanto, nossa base
econômica.
Esses
dois ensinamentos instrumentalizam e fomentam a reflexão acerca do embate: vida
ou economia? Isto é, o trabalho juntamente
com seu produtor/executor (trabalhador) e o pressuposto da existência e da
produção dos meios para tal, são determinações fundamentais para pautarmos e
delinearmos tal discussão.
Em
suma, sabemos quem retornou ou protegeu a economia: os trabalhadores e
trabalhadoras, que, em razão da propriedade privada dos meios de produção por
parte do empresariado, muito pouco ou quase nada irão usufruir da riqueza
produzida, apenas o mínimo necessário para (re)produzirem sua precária
existência, ou melhor, sua sobrevivência e de seus pares. Em razão disso, o
“apelo” a retomada da produção e da volta ao trabalho, dissimulado pela preocupação
com a falta de alimentos e salários ou, até mesmo, com o rompimento dos
contratos de trabalho (demissões em massa) e respaldado pelo discurso irresponsável
e criminoso do presifake da república, é uma demanda da classe empresarial do
país que está mais interessada em acumular e valorizar sua riqueza e seu
capital do que apresentar melhores condições de vida aos trabalhadores. Aliado
a isso temos a existência, a história, a vida dos trabalhadores que está em
risco ao serem expostos ao vírus no caminho até o trabalho, em transportes
lotados e em filas gigantescas, assim como no próprio local e nas relações de
trabalho.
Ao
priorizarem a produção e a economia em detrimento da vida humana, fica
evidente, portanto, o menosprezo de classe e o quanto descartáveis são os
trabalhadores e trabalhadoras. Esses, coagidos pelas ameaças de fim/rompimento
de contrato e por rótulos opressores (vagabundos,
esquerdistas, sustentados pelos pais, tirando férias...) proferidos por
simpatizantes do “discurso da morte”, como ficou denominado o pronunciamento do
presifake (dia 24/03), retornaram aos seus postos de trabalho com nenhuma
garantia por parte do Estado ou das empresas (além do Auxílio Emergencial como
empreitada maior da oposição) de sobrevivência e melhoria das condições de
trabalho/vida. E, caso forem contaminados e chegarem a óbito, em razão dos
hospitais não comportarem as demandas emergenciais de atendimento, serão
substituídos por outros trabalhadores, que seguirão o movimento da máquina
produtiva e “recuperarão” a economia, mantendo a ordem e o lucro do patrão.
Esses
foram dois ensinamentos marxianos que sempre ressurgem nos momentos de crise,
em especial no atual momento de pandemia pelo COVID-19. Aliás, eles nunca
morreram, sempre estiveram vivos e permeando nossas vidas, mas muitos não
percebem (por não terem acesso aos instrumentos e rudimentos desses conceitos e
fundamentos) ou, por mau-caratismo, não reconhecem como determinações socio-históricas,
objetivadas no modo de produzir a vida no capitalismo.
Portanto,
tão importante quanto à economia é a vida, a existência humana e as condições
para tal. A economia, que não se resume a dinheiro ou renda e sim às formas de
extrair da natureza e das relações sociais as bases concretas de manutenção e
reprodução da vida, só ocorre a partir da existência de sujeitos em pleno
desenvolvimento e em plenas condições materiais para transformarem a natureza e
a si próprio por meio da atividade vital humana e consciente que é o trabalho, produtor de todas as riquezas.
Por
fim, à titulo de provocações finais, se a grande preocupação, seja do
presifake, seja do empresariado, era “salvar a economia” e a economia só pode
ser “salva”, produzida e valorizada pelo trabalho vivo (pela atividade do
trabalhador), por que o Brasil, nas figuras institucionais do Ministério da
Saúde e do próprio presifake, ainda não apresentou um plano real de vacinação
em âmbito nacional para dar condições de existência e de agir aos trabalhadores
e trabalhadoras? Isso seria “apenas” mais um traço da incompetência do governo?
As evidências da materialidade do mundo produzem possíveis conclusões!
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