terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A EDUCAÇÃO NA ERA DA PÓS-VERDADE: PROVOCAÇÕES DE NOSSO TEMPO

 Por Gislei José Scapin

Ditadura no Brasil: existiu? Nazismo: de esquerda ou de direita? Terra: plana ou arredondada? Vacinas: boas ou ruins? Essas são algumas das emergentes inquietações que se balizam no plano da Pós-Verdade. Tais questões me ‘saltam aos olhos’, uma vez que teriam sido respondidas e, sobretudo, certificadas, considerando o movimento de provisoriedade da Verdade histórica e objetiva.



Contudo, o que pretendo destacar não é somente esse movimento de ceticismo para com os fatos e a objetividade certificada historicamente pela humanidade, mas refletir, leia-se provocar, sobre as atuais formas de manipulação da Verdade e seus meios de divulgação, e, sobretudo, como isso afeta os processos educativos da sociedade. Para tanto, penso ser necessário elencar algumas questões: em tempos atuais, que/qual Verdade estamos construindo? Em que/qual Verdade estamos acreditando? Que/qual Verdade estamos socializando e/ou compartilhando? E, por fim, o que o movimento da Pós-Verdade representa para a Educação?

 O termo Pós-Verdade, conforme o Oxford Dictionaries, foi a palavra do ano em 2016, contendo a seguinte definição de forma abreviada: circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal, considerando, também, a função assertiva de um interlocutor-chave. Nesse bojo, compartilho do pensamento do jornalista britânico Matthew D’Ancona ao explicar que Pós-Verdade não coincide com a mentira, pois essa ultima sempre existiu ao longo da história humana. O fenômeno atual, por sua vez, trata da reação das pessoas às formas de manipulação e deturpação da realidade e da verdade, isto é, a indignação dá lugar à indiferença e à conivência. A primazia da emoção e do sentimentalismo em detrimento da razão e dos fatos objetivos, como forma de compreensão e explicação da realidade concreta, corrobora para o desmoronamento do valor da Verdade e, por fim, do desprezo à própria ciência (elevem isso a um contexto pandêmico: já imaginaram o estrago? Evidências não nos faltam).

Diante disso, percebo que todo o movimento e o caminho de explicação do real, que foi desenvolvido e percorrido pela humanidade superando as formas de entender o mundo a partir do mito para, pois, expressar e consolidar o pensamento racional, tenha caído por terra com o advento da Pós-Verdade. Expresso esse entendimento, uma vez que na era da Pós-Verdade os fatos, além de serem manipulados, são interpretados a partir das causas emocionais e sentimentais dos indivíduos, cada um com sua forma de compreender e reproduzir a realidade, cada um com sua subjetividade de mundo, que se multiplica a passos largos no plano da intersubjetividade, isto é, das coletividades que compartilham das mesmas sensações e emoções em prol do lhe convém. A título de exemplo, como mencionei no início deste artigo, podemos citar o movimento antivacina no Brasil, que, a partir de crenças, leiam-se teorias da conspiração, construídas e disseminadas por determinado coletivo, divulgou um rol de críticas às campanhas de vacinação, desprezando todo o avanço no campo da medicina. Segundo dados do Ministério da Saúde, a aplicação de vacinas destinadas às crianças menores de dois anos de idade apresentava uma queda desde 2011, resultado disso: o Sarampo, em escala ampliada, deu as caras por aqui novamente. Imaginem isso no atual momento histórico, pandêmico, em que vivemos, onde o próprio Excelentíssimo Senhor “Presifake”, o inominado, está impulsionando uma campanha antivacina (com enorme carga xenofóbica) e seu “gado”, evidentemente, estão aderindo e fortalecendo tal ação. Vejam como a Pós-Verdade encontra seu espaço na contemporaneidade, em especial regada pelos envios/disparos em massa via rede social.

Centralizando minha argumentação no plano da coletividade e da intersubjetividade, qual/quais meios proporcionam a consolidação da era da Pós-Verdade, construindo uma realidade pautada pela primazia da emoção e do sentimento? Para responder essa questão, diferentemente dos adeptos da Pós-Verdade, não utilizarei minhas emoções ou meus sentimentos, mas sim dados e fatos objetivos a partir do que vem sendo estudado/pesquisado neste início de século. Adepto das narrativas da Modernidade e acreditando nos saberes legitimados pela Racionalidade Científica, ponderam que o terreno fértil para a Pós-Verdade advém das teses e da conjuntura da Pós-Modernidade em consonância com a expansão da globalização e da informática/internet, materializado pela era da informação (diferente de “conhecimento”) e da sociedade do conhecimento (“conhecimento como força produtiva”, como se isso fosse algo ‘novo’, né, Marx?), em escala mundial. Disseminada, reitero, pelo uso desenfreado e (mau) intencionado das redes sociais, a Pós-Verdade produz a sua narrativa e sua forma de consciência irracional, a-histórica e anti-realista, penetrando o cérebro, nervos, ossos e músculos das pessoas via emoções/sentimentos e pela força do medo e do ódio (medo de uma vacina e ódio a um povo/cultura que supostamente teria criado um vírus em laboratório para tomar o poder/controle do mundo, por exemplo).

Em síntese, acredito que esses mecanismos possibilitam a divulgação e compartilhamento de informações (manipuladas e deturpadas) em tempo record, bem como atingindo o maior número de indivíduos e usuários possíveis, que, sem filtro e despidos de instrumentos para analisar/verificar/constatar as informações recebidas, tratam-na como Verdade (absoluta) conforme a identificação dessas com seus sentimentos, suas emoções e suas crença, desconstruindo e nivelando “por baixo” toda a produção de conhecimento e toda a realidade objetiva, desgastando, por fim, a noção de Verdade.

Como a Educação lida com isso? Quais implicações desse cenário para o processo educativo? Em minha reflexão, não limito a Educação na esfera da escolarização, tampouco me referindo ou limitando em etapas ou idade específica dos sujeitos. Penso que seja necessário elucidar as implicações da Pós-Verdade no âmbito mais geral da Educação, no qual entendo como o processo de socialização e apropriação dos saberes, da cultura, de toda a produção humana que precisa ser disponibilizada e generalizada a todos como forma de manter a reprodução do gênero humano e construir um projeto histórico de sociedade.

Entretanto, como realizar esse processo educativo considerando todo o contexto da era da informação e da manipulação dos fatos e da Verdade? Como enfrentar a indústria da desinformação e da Fake News, a qual atinge boa parte do público adulto, gerando, dentre outras, implicações no campo da política e, até mesmo, contribuindo para a eleição presidencial, vide EUA (2016) e Brasil (2018)? Que desafios enfrentarão os educadores, em especial, os professores, sobretudo no Brasil, país que, conforme os Editores da Faro Editorial, em material publicado em 2018, deu um salto da mentalidade mitopoética para a mentalidade da Pós-Verdade, onde as marcas definidoras da Modernidade e do Iluminismo nunca fincaram raízes? Quais instrumentos e/ou mecanismos serão utilizados e/ou estarão à disposição dos educadores (em todos os sentidos), em especial, mais uma vez, dos professores, para superar a era da Pós-Verdade e formar sujeitos críticos e capazes de lidar e reconhecer a distorção dos fatos e da realidade, ao passo em que o (novo) Brasil de 2019/2020 – da nova política, do patriotismo, do conservadorismo, do fundamentalismo religioso, do anticomunismo, do “fim da mamata”, do enxugamento e das Reformas do Estado, entre outros traços – ataca e “mata a mingua” a Educação e todos os serviços públicos? Como (re)construir (se é que foi construído) o senso crítico em indivíduos que produzem sua existência no cenário exposto, atuando com indiferença e incredulidade demasia diante da realidade deturpada?

Por fim, que/quais armas teremos, enquanto sujeitos sociais e históricos, para combater a arrasadora de fatos e Verdades chamada Pós-Verdade? Ou melhor, o que aconteceu com a Verdade?

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