O tempo livre, decorrente da quarentena em isolamento social que muitos de nós estamos vivendo, têm permitido retomar leituras há muito tempo guardadas na memória da nossa infância. Reli as "Fábulas Completas" de Esopo, numa belíssima edição da Cosacnaify, com ilustrações de Eduardo Berliner. Foi revelador sobre o momento em que vivemos.
A fábula narra que houve uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou mas disse: "Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo." O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: "Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas". "Não tão rápido, amigo", disse o caçador. "E o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim".
Ela é o espelho da nossa realidade. Para retirar o Partido dos Trabalhadores do Poder (o Javali), a Lava Lato e a nova direita (o Cavalo) se uniram ao bolsonarismo (o Caçador). Para a nova direita vencer a eleição de 2018, foi preciso que Sérgio Moro prendesse Lula quando ele estava em primeiro lugar em todas as pesquisas e ganharia as eleições em primeiro turno. Era também necessário um candidato que, se vencesse, aceitasse trazer essa nova direita para dentro do poder. Foi o que aconteceu.
Depois de vencer o Pleito, Moro recebe como recompensa pela colaboração em vencer o Javali, o cargo de super Ministro da Justiça e da Segurança Pública. Em troca Moro se comprometia em blindar seu chefe, seu filhos e aliados, de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público em todas as instâncias e de todas as acusações.
Sem a aliança entre Moro, a Lava Jato e a nova direita com Bolsonaro, jamais o Cavalo e o Caçador teriam vencido o Javali. E essa aliança, como na Fábula, durou por um certo tempo. Agora, chegou o momento em que o Cavalo, já satisfeito com a ajuda do Caçador, pediu para que ele parasse de tutelá-lo, de dominá-lo. Moro não mais aceitou sujeitar-se ao bolsonarismo, com seus ministros terraplanistas, seu séquito militar e suas suspeitas de envolvimento com grupos milicianos. Moro demitiu-se, o Cavalo retirou o bridão.
A quarentena, que permitiu o tempo livre para ler Esopo, não deteve o desenrolar da História. Há poucos dias o Cavalo retirou de suas costas o Caçador e livrou-se de suas rédeas e de sua sela. A nova direita não precisa mais de Bolsonaro. Acontece que no mundo real, ao contrário da fábula, o Javali não está morto; e ameaça como um fantasma o cérebro e o coração dos vivos. Aos que sobreviverem ao coronavírus será permitido assistir a realidade superar a ficção. Fique em casa, lave as mãos. Será fabuloso!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 29 de abril de 2020
https://diariosm.com.br/colunistas/2.4254/a-f%C3%A1bula-da-quarentena-1.2222284
Esse espaço é um laboratório de Teoria Social. Quanto a mim, sou antropólogo e professor na Universidade Federal do Pampa. Tenho graduação e mestrado em Ciências Sociais, licenciatura em Sociologia, especialização em História do Brasil, doutorado e pós doutorado pela UFSM.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Anti-intelectualismo
Nunca antes, na história da sociedade brasileira, assistimos a tamanha rejeição ao que estou chamando de intelectualismo, uma forma de conhecimento social e historicamente reconhecido como válido. Grassa pelo cotidiano, pelos meios de comunicação, pelas redes sociais uma verdadeira apologia à ignorância, ao anti-conhecimento, ao conhecimento suspeito ou infundado, à falsidade deliberada e à desinformação. Tenho uma hipótese: essa onda contra o intelectualismo está assentada sobre três eixos, que se retroalimentam e são o combustível da ignorância.
O primeiro deles é o negacionismo, a negação da ciência como forma válida de conhecimento. A Ciência, desde a Ilustração, assumiu a prerrogativa de explicar o mundo aos homens, ela se diferencia dos saberes comuns por ser uma forma organizada de explicação, orientada metodologicamente e fundamentada empiricamente. O senso comum é também uma forma de conhecimento, porém não possui estrutura organizativa nem orientação metodológica definidas. Dessa maneira, não se rejeita ou refuta uma forma científica de conhecimento apenas negando-a com base no senso comum, mas apresentando em seu lugar algo que lhe substitua ou complemente, que seja organizado sistematicamente, com orientação metodológica clara e possa ser empiricamente demonstrado. Os problemas da ciência só se resolvem com mais ciência.
O segundo eixo que sustenta o anti-intelectualismo é o obscurantismo. Ao negar a factualidade histórica e teorias científicas consolidadas os anti-intelectualistas propõem colocar em seus lugares pretensas verdades infundadas, narrativas obscuras e teorias conspiratórias que, longe de explicar racionalmente o mundo, produzem uma falsa sensação de cientificidade, que temerariamente flerta com a irreverência. O obscurantismo aparece, assim, como "politicamente incorreto", independente, insubordinado, questionador; quando, em verdade, não passa de uma forma irresponsável de divulgar ideias esdrúxulas e altamente deletérias à sociabilidade humana.
Por fim, o irracionalismo enfeixa a estupidez. Ao negar o conhecimento científico, a história factual, a Teoria da Evolução, a esfericidade da Terra, por exemplo, o anti-intelectualismo nega a próprio senso lógico sobre o qual se ancora a razão humana. O irracionalismo é uma forma de compreensão do mundo que se coloca contra a lógica factual. Por isso tantos trabalhadores apoiam um Governo que lhes tira direitos, acreditam numa política social suicida, que lhes expõe a um vírus mortal, apoiam o uso de um medicamento que traz sérios riscos à saúde, defendem a volta de um Regime ditatorial que lhes restringe a liberdade, pedem o fechamento de Instituições cuja função é lhes assegurar justiça social, representação política e garantias civis!
Por tudo isso, penso que o anti-intelectualismo tem sido a principal marca da nossa sociedade, pelo menos desde quase uma década. Isso reverbera em toda vida social: na escola, na universidade, na política, na ciência, etc. Se tempos atrás pensávamos que hoje viveríamos na sociedade do conhecimento, cujo principal instrumento é o intelecto; hoje fica cada vez mais claro que estamos imersos na ignorância, no negacionismo, no obscurantismo e no irracionalismo, cujo principal instrumento está nas antípodas do conhecimento, o anti-intelectualismo.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria no dia 28 de maio de 2020
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