sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pauta de aluna do Curso de Jornalismo da UFSM - Relevância social e política da praças e espaços públicos

- Historicamente falando, qual é o papel da praça pública no âmbito político?
- Este papel se manteve ao longo do tempo ou sofreu alterações?
- No país, quais foram os períodos com maior ocorrências de manifestações políticas?
- Quais são as pautas mais recorrentes das manifestações?
- Em processos como, por exemplo, Diretas Já e Impeachment de Collor e Dilma, a força popular nas ruas foi determinante? Neste sentido, quais são as potencialidades das manifestações?
- É possível relacionar os movimentos de "esquerda" às manifestações em espaços públicos? Se sim, por que isso acontece?
- As manifestações necessariamente têm um lado político? 
- O uso de espaços como a praça, por candidatos a cargos públicos em período de campanha, é estratégico? Isso mudou ao longo do tempo? 
- Para finalizar, falando especialmente de Santa Maria (se você souber responder): Quais são as peculiaridades de Santa Maria no que diz respeito às manifestações políticas? O fato de ser uma cidade universitária influencia nisso?

Questões 1 e 2, sobre a questão do papel histórico da Praça
A noção de espaço "público" é uma concepção bastante recente na história. Ela data do mesmo tempo da consolidação do Estado Moderno, que tem seu ápice no século 18, mas que se estende até o fim do dezenove. Junto com ele surge essa ideia de "espaço público", de espaço compartilhado, aquele que é coletivo e "de todos" ao mesmo tempo que é de cada um. As praças são os ícones do espírito desse tempo e desses espaços. É para elas que grandes grupos de pessoas convergiam para conviver, praticar lazer, ócio, comércio... Em 2017 publiquei no meu blog um breve texto do qual trago esse trecho:

"Ao longo dos séculos 18 e 19, o “Porto de la Grève”, situado às margens do rio Sena, tornou-se o coração comercial de Paris. Formou-se em seu entorno um grande mercado por onde chegavam bebidas, grãos, feno, madeira, fazendo deste lugar um dos mais populares daqueles tempos. Tinha esse nome pois ficava à frente de uma praça chamada "Place de Grève". “Grève”, em francês, quer dizer lugar plano, pedregoso ou arenoso situado às margens do mar ou de um curso de água. Com o tempo a praça passou a abrigar também muitos operários, que ao amanhecer, reuniam-se à espera de trabalho. Eram no geral pessoas precarizadas pelo crescente desemprego. É desse contexto social que a expressão “greve” remete a trabalhadores paralisados em sua atividade laboral. Ainda no Medievo, a "Place de Grève" servira para torturas e execuções públicas; foi nela também que pela primeira vez em 1792 a guilhotina foi acionada." (http://antropologiaufsm.blogspot.com/2017/10/la-greve.html)
Como você pode ver, ao longo da história Moderna, as praças significaram verdadeiros lugaras sociais de memória, de coabitação, de realização de uma certa efetivação de cidadania, mesmo que uma cidadania formal e burguesa. Sendo assim, as praças são e sempre foram lugares socialmente políticos, de presença, de lutas e resistência, de ação e inação, de expressão das pautas e agendas sociais de cada tempo e de cada espaço.
Com o tempo, e o advento das redes sociais virtuais, bem como o crescimento das cidades e seus índices de violência, somados à depauperação dos espaços públicos, em especial nas regiões mais populares e de periferia, as praças se tornaram lugares remotos, abandonados, perdendo contemporaneamente, parte de sua centralidade e importância, bem como de seu papel de espaço público compartilhado.

Questão 3, sobre os períodos com maiores ocorrências de manifestações políticas
No Brasil a disposição de espaços públicos, no estrito sentido do termo, datam, obviamente, do advento da República. Portanto, é de depois dela que os espaços públicos passam a ter relevância política mais contundente. Um ano antes dela, a Abolição formal da escravidão foi um luta travada nas ruas e nas estradas por movimentos citadinos e camponeses em prol de uma causa social... depois disso, as revoltas que resultaram nas greves de 1917 também forma lutas políticas travadas nas grandes praças do centro do País. Manifestações políticas propriamente de rua nunca foram a lógica mais comum num país como o nosso, talvez pela cidadania tão tardia que conquistamos e a constante lógica violenta e repressiva dos donos do poder. Creio de depois de 1917, tenhamos ocupado a rua novamente de forma mais sistemática e massiva, somente durante a ditadura civil empresarial militar. Nesse período foram várias ocasiões de ocupação e pressão política popular. O Movimento Diretas Já, que começou timidamente em junho de 1983, foi a tentativa da oposição, de que criando uma grande mobilização popular, poderia impor a regra de voto direto para eleger a sucessão presidencial. O movimento ganhou vulto 1984 quando um grande frente de lideranças levaram a cabo a Caravana das Diretas reunindo nas ruas do país perto de 1 milhão de pessoas. Mesmo com toda essa força, a pauta foi derrotada em abril de 1984, restando, entretanto, na população a sensação de que a mobilização popular era uma força política importante no cenário do poder. Mais recentemente, durante o governo Collor, o movimento cara-pintadas desempenhou importante papel na derrubada do governo (1992). Collor convocou a população para sair às ruas de verde e amarelo, mas a reação popular foi adversa. As pessoas foram espontaneamente às ruas vestindo preto, tiras pretas no braço e panos pretos nas antenas dos carros. Todos pintavam os rostos de preto ou verde e amarelo gritando "fora Collor" e "impeachment já". Derrubaram o governo!
Por fim, a partir de 2013 temos acompanhado novamente mobilizações nas ruas. Assim escrevi há alguns dias no meu blog (http://antropologiaufsm.blogspot.com/2019/05/e-so-o-comeco.html)
É bem verdade que entre 2013 e em 2016 a população foi às ruas, mas naquele momento o que os impelia não eram suas consciências propriamente ditas; eram, em verdade, estímulos externos, a maior parte deles impulsionados pelos “think tanks”, os tanques de cérebros, repositórios intelectuais de ideias contrárias aos ideais populares. No limite, eles foram e são as organizações por trás da guinada da direita na América Latina, guiada por ideais e interesses neoliberais e contrários aos mais pobres, aos trabalhadores, em especial aos mais jovens.
Penso que sejam essas as principais emergências populares em nossa história recente.

Questão 4, sobre as pautas das manifestações
Por tradição política e histórica, as pautas de nossas manifestações políticas são sempre reformistas e reativas. Propõem reformas no sistema político e e são reações a governos de que não gostam. Nunca foram reivindicações anti-sistema. Esse é um inegável traço conservador e burguês de nossa população. Nunca esteve na agenda das reivindicações públicas, subverter o sistema, tomar meios de produção, produzir mesmo uma revolução, atacar diretamente a elite no poder, nas palavras do sociólogo Jessé Souza, destituir a "elite do atraso".
Questão 5, que trata sobre se as manifestações no Diretas Já, Impeachment de Collor e Golpe sobre Dilma, foram determinantes.
É preciso diferenciá-los:
Em todos os casos as manifestações e mobilizações populares foram determinantes, mas cada um a sua maneira.
No caso das Diretas Já foi uma causa perdida. A Emenda Constitucional Dante de Oliveira foi rejeitada na madrugada do dia 26 de abril de 1984. Assim, o vodo direto para presidente não foi possível, mas as forças que detinham o poder perceberam que a derrota era uma questão de tempo, as massas ganhavam importância.
No caso do Impeachment, a mobilização popular obteve êxito. Sua mobilização foi decisiva para a derrubada do presidente. 
No caso do Golpe misógino, jurídico, midiático, parlamentar contra a presidenta Dilma, as mobilizações foram decisivas, porém não em favor do empoderamento das pautas populares. Entre 2013 e 2016 estivemos (como ainda hoje) sob efeito de uma guerra híbrida. Uma guerra que não veste farda, mas sim, toga. A vitória das mobilizações sobre o governo instituído trouxe derrotas a setores e demandas populares. Entregando riquezas nacionais a interesses internacionais. 14 meses depois das mobilizações de 2013 elegemos o congresso mais inepto, conservador e golpista de nossa história. Congresso este que votou o Impeachment do Presidenta, inventado artificialmente um crime de responsabilidade fiscal. As mobilizações de 2016 defendiam pautas regressivas, conservadores, golpistas, moralistas, e contrárias a interesses historicamente populares. 

Questão 6, sobre as esquerdas e os espaços públicos
Sim, os espaços públicos são os espaços políticos por excelência, das esquerdas, dos progressistas, daqueles que querem mudanças. A última vez que a burguesia usou legitimamente o espaço público foi na Revolução Burguesa, na França, em 1789. Depois disso, ela extinguiu a monarquia, tomou o poder, conquistou os meios de produção de riquezas, fundou o estado moderno para legitimá-los e nunca mais quis saber de revolução, manifestações, balbúrdias.... tornou-se conservadora daquilo que tinha conquistado. Não há razões para a direita burguesa querer instabilidade, desordenando os espaços públicos. Quando ela faz, faz de maneira falsa, criando uma espécie de "rebeldia conservadora", parecendo rebelde, mas buscando manter, e até ampliando, o poder nas mão dos donos do capital.

Questão 7, sobre as manifestações terem um lado político
Sim, toda manifestação pública tem um caráter, um cunho político. 

Questão 8, sobre o uso da praça por candidatos
A nova lei eleitoral é a resposta para essa pergunta. A restrição do uso do espaço público para as campanhas políticas é uma medida que apenas beneficia os donos do poder e enfraquece setores populares. Concentrar as campanhas dentro do rádio e da televisão é uma medida que retira o jogo político do espaço público e enfraquece a ação e as organizações populares.

Questão 9, sobre Santa Maria
Santa Maria é uma cidade com características bem peculiares. moro aqui há 25 anos e ainda procuro entender o comportamento político da cidade, sempre muito intrigante. Ao mesmo tempo que há muitos jovens, é uma cidade universitária, é também um pólo regional, onde há um setor de serviços muito pujante. É um pólo militaresco, guardando esse importante marcador em sua fisionomia ídeo-política. Pode-se concluir então que Santa Maria é uma "colcha de retalhos" no que se refere às suas características políticas. Por ser tão multifacetada, historicamente tem resultante pendular em seu comportamento político, ora pendendo mais à esquerda ora pendendo mais à direita nas suas preferências eleitorais. 
O fato de ser uma cidade universitária, entretanto, não parece ter preponderado em sua trajetória política. Não é uma regra o fato de que jovens adotem posturas políticas mais progressistas, mas é uma tendência evidente que jovens estejam sempre mais abertos e menos resistentes àquilo que pode beneficiar sua formação e seu futuro, rechaçando qualquer medida que venha a ferir sua principal conquista: a liberdade de expressão.

Andressa, espero ter contribuído. Agradeço a confiança e fico a disposição para qualquer atividade. Posso fazer uma fala presencial aos seus colegas, se assim julgarem válido, na disciplina em questão. Para mim é favorável qualquer horário desde segunda até quarta pela manhã.

Um fraterno abraço e bons estudos

quarta-feira, 15 de maio de 2019

É só o começo!


Hoje está sendo um dia de manifestações em todo o Brasil. Há tempos não se via tamanha vontade popular de lutar e resistir. Ao que parece, pode ser um primeiro passo em direção ao rescenso das massas no sentido da sua autonomia intelectual, de sua autodeterminação, pode ser só o começo da retomada de seu protagonismo de lutas e militância.
É bem verdade que entre 2013 e em 2016 a população foi às ruas, mas naquele momento o que os impelia não eram suas consciências propriamente ditas; eram, em verdade, estímulos externos, a maior parte deles impulsionados pelos “think tanks”, os tanques de cérebros, repositórios intelectuais de ideias contrárias aos ideais populares. No limite, eles foram e são as organizações por trás da guinada da direita na América Latina, guiada por ideais e interesses neoliberais e contrários aos mais pobres, aos trabalhadores, em especial aos mais jovens.
Não é de se estranhar que o reascenso de agora tenha seu germe na Educação. É ela o setor mais castigado pelas crueldades do novo Governo.
Foi entre 2005 e 2012 que o Ministério da Educação promoveu expansão e interiorização do ensino superior. Dessa forma, foram criadas 18 universidades federais, foram construídos 173 campi universitários, foram construídos 360 institutos técnicos federais, foram concedidas dois milhões de bolsas do ProUni, foram financiados dois milhões e meio de pobres que não tinham como entrar na universidade, senão pelo FIES. Tudo isso permitiu aos jovens, principalmente os mais pobres, sonhar e efetivamente participar como protagonistas da produção de conhecimento e da divisão sociotécnica do trabalho.
Ora, basta observar as datas! Essa ascensão social promovida pela Educação pôs em pânico a classe média conservadora. Detentora histórica do capital simbólico promovido pelo conhecimento, a classe média higienizada se viu dividindo o espaço que julgava exclusivamente seu com as filhas e filhos das empregadas domésticas, dos pedreiros, dos mais pobres; se viu competindo no mercado de trabalho com gente que até então lhe servira como subordinado e subserviente. Foi isso que a fez servir de tropa de choque, massa de manobra do processo que culminou no golpe de 2016.
Se é momentaneamente mais difícil a luta contra o poder econômico, cuja manutenção pertence à “Elite do Atraso” nas palavras do sociólogo Jessé Souza, a luta pela democratização do conhecimento é a pauta possível e mais urgente da agenda política do momento. Setores populares da sociedade brasileira, e em especial os jovens, são os que mais se beneficiam dos investimentos em educação. É por essa razão que são eles que estão hoje no pelotão de frente da resistência. Que seja só o começo!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria, por conta dos protestos em favor da educação e contra os cortes do governo
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/%C3%A9-s%C3%B3-o-come%C3%A7o-1.2141453