domingo, 28 de abril de 2019

Trabalho e segregação


Há alguns anos, em uma aula para alunos do curso de Arquitetura discutíamos como nós brasileiros, em nossa organização da vida doméstica segregamos, pelo trabalho, a forma como habitamos, convivemos e nos relacionamos em sociedade. O jornalista Anselmo Goes reporta que para atender à demanda de brasileiros mudando-se para Portugal as construtoras de lá vem fazendo adaptações nos projetos, que inclui “quarto dos fundos”, “área de serviço” e até “tanque”, imitando a forma segregadora que fazemos por aqui
Nessa aula, veio à discussão a questão do “quarto de empregada”. Como vimos, não há esse conceito em outros países, somos nós que o levamos para fora. Ele é uma espécie de senzalinha moderna, mal ventilada, mal iluminada, geralmente entulhado de bugigangas, em que enfurnamos pessoas. O quartinho de despejo é a reminiscência do nosso passado escravocrata e excludente. É lá que a empregada da casa se recolhe enquanto os patrões almoçam. Só depois esta mesma empregada, às vezes com seu filho, pode comer. Não precisa haver, nesse cenário, nenhum gesto explícito de preconceito de classe, nenhuma a palavra ofensiva, por vezes racista ou misógina. O ato em si é um gesto pedagógico e ensina que aquela mulher e seu filho ou filha não são seres como o mesmo estatuto social (e humano) dos patrões. O gesto os faz crer, perversamente, que são seres de segunda classe. Essa criança guardará para a vida o sentimento e a percepção de que para ela, as coisas são depois, crescerá naturalizando a segregação, contentando-se com as sobras.
Outra questão que veio à discussão na aula foi a do elevador “de serviço”. O mesmo aluno argumentou sobre sua necessidade e exemplificou: “imagina colocar gesso no décimo andar e ter de compartilhar o mesmo elevador com outros moradores!” O gesso faz muita sujeira, solta pó, sujaria o espaço e as roupas de todas e todos. Concordei, mas não sem ressalvas, lembrando que mesmo depois do serviço concluído, já limpos, os colocadores de gesso, continuavam utilizando o elevador de serviço. Prova de que o que está sendo segregado não é a natureza do trabalho, mas as pessoas que o realizam.
Podemos confirmar essa conclusão lembrando daquela empregada do um outro apartamento que desce já sem sua roupa de trabalho, banhada, mas mesmo assim desce pelo mesmo elevador de serviço. Ah sim, talvez seja porque ela desça carregando a sacolinha de lixo! E mais, se não o fizer, será reprendida pelo porteiro; sempre muito limpo e vestido alinhadamente; mas que, curiosamente, só usa o elevador social quando sobe ajudando a carregar sacolas. E ainda desce de volta até a portaria pelo elevador de serviço, todo sujo de gesso!
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 20 Fevereiro 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/trabalho-e-segrega%C3%A7%C3%A3o-1.2125047

Bullying não é humor


Muito se tem falado nos últimos dias sobre os limites do humor e da liberdade de expressão. O debate foi reaceso depois de duas condenações do jornalista Danilo Gentili (pelo crime de injúria contra a deputada federal Maria do Rosário e por ofensa e danos morais ao também deputado federal Marcelo Freixo). Ora, o debate não deveria ser exatamente esse. Uma democracia estará tanto mais viva quanto mais estiver garantida a liberdade de expressão, seja ela nas mais variadas formas de manifestação e uma delas é o humor. Não é essa a questão.
A palavra humor deriva do latim “umor”, que significa fluido ou seiva, por outros termos, o líquido essencial que alimenta os seres vivos. O “H” aderiu ao termo por uma associação com “húmus”, que em latim significa “terra”. Ou seja, “humor”, na origem, remete à ideia de terra molhada, rica, que alimentará a vida. Humor é alimento da vida, nunca pode, portanto, ser limitado ou criminalizado!
Como expressão artística e política o humor está ligado a formas de resistência. É como chargistas, cartunistas, caricaturistas, pintores, desenhistas, escultores, roteiristas, atores, compositores, historicamente desafiaram, fazendo graça, o poder e os poderosos: chefes de Estado, líderes autoritários, ícones da mídia e da economia. Fazendo-os parecer ridículos e patéticos. O humor é uma arma cirúrgica contra os opressores. Por essência, ele é também um poder, porém, contra hegemônico.
Voltando então ao caso do jornalista, convém lembrar que ele acumula em seu currículo, além de ofensas e injúrias, outros ataques a pessoas ligadas a grupos historicamente vilipendiados. Em 2012, pelo Twitter, ofereceu bananas a um internauta negro; este mês, enquanto a parlamentar Tábata Amaral falava em defesa de milhões de trabalhadores, durante a oitiva do Ministro da Economia na Câmara, twittou “a mina é tão gorda que acha que até os ministros devem ser temperados”.
Isso não é humor, é agressão; não alimenta a alma, não fortalece os que precisam resistir, não inspira a superação das nossas limitações ou fealdades. Não tem graça. Pelo contrário, no mundo de hoje, patético ou ridículo é ver graça nisso. Só os covardes o fazem.
O verdadeiro nome disso é Bullying, repito, Bullying!!! Humor, é tirar onda com o canalha que faz Bullying, com o valentão, com o fortão!! Fazer piada com a coleguinha gordinha, a magricela; o coleguinha negro, o coleguinha com roupa puída, o de óculos, o orelhudo, o dentuço, não é humor, é Bullying; não é liberdade de expressão, é agressão e covardia, e é assim que deve ser tratado pela justiça.
Publicado no Jornal Diário de Santa Maria, dia 17 de abril de 2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/bullying-n%C3%A3o-%C3%A9-humor-1.2136320