segunda-feira, 17 de abril de 2017

Por um simples celular?

Assistimos nos últimos dias a narrativa jornalística sobre dois assassinatos bárbaros ocorridos em Porto Alegre. O primeiro, de um jovem de 29 anos, doutorando de Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que caminhava em uma sexta-feira à tarde pelas ruas da Zona Norte da cidade. O segundo caso, de um outro jovem universitário pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Fadergs), este com 20 anos de idade, que ensinava artes marciais para crianças carentes. Em ambos os casos, as vítimas foram alvejadas após serem assaltadas, ao que parece, sem reação. E o que mais espanta a todos, além da violência destes e de tantos outros crimes semelhantes, é a aparente banalidade das suas motivações. Foi por um “simples” celular.
Ora, se fossem algo realmente tão “simples” como se costuma dizer, sem nenhum valor ou importância, seguramente não seriam a motivação de crimes tão cruéis. Mas o que há então de tão misterioso e secreto em um “simples” mobile, capaz de motivar ações tão perversas? Convém ressaltar antes que a intensão aqui é de explicar e não de justificar os crimes. Nada justifica a perda de uma vida, mas tentar compreendê-la, nós podemos.
Há exatos 150 anos, o velho Marx escrevia no capítulo inicial de sua maior obra sobre o que denominava como “caráter fetichista da mercadoria e o seu segredo”. Isto é, em nossa sociedade as mercadorias não são coisas tão simples como parecem, elas possuem uma espécie de encantamento, de “feitiço”. Esta expressão tomada por Marx foi levada à Europa pelos colonizadores franceses ainda no século 18. O “fetiche” era como eles denominavam nas religiões não europeias, a mística de “simples objetos” de possuírem propriedades mágicas e misteriosas. Estes vodus, carrancas, totens e outros objetos eram capazes de mexer com emoções profundas e despertar mecanismos que as pessoas pareciam não controlar conscientemente.
Dizia o autor que, assim como aqueles objetos de adoração dos povos colonizados que impressionavam os franceses, também a mercadoria “à primeira vista, parece uma coisa trivial, evidente.” Aparece para todos nós, nas interações sociais cotidianas, no nosso dia a dia, como meros objetos, coisas banais, quase sem valor ou importância. Porém, “analisando-a, vê-se que ela é uma coisa complicada, cheia de sutilezas metafísicas” e propriedades sobre humanas. Em outras palavras, aquele “simples” celular que motiva crimes tão assustadores, muito mais esconde suas propriedades mercadológicas, seu fetiche, seus encantos, suas capacidades de despertar desejos e emoções, seu valor social, seus mistérios, do que nos revela.
Desde que é roubado, sob a condição de que alguém tenha perdido a vida para que o roubo se efetivasse, até que seja recomprado em uma banca de rua, em uma loja ilícita, aquela pequena peça eletrônica pode movimentar o tráfico de drogas, de armas, de pessoas. Ainda antes mesmo de ser roubado, é uma geringonça que concentra, muitas vezes, trabalho feminino subcontratado, trabalho infantil explorado, com matéria prima fornecida justamente pelos países que pagam o preço mais elevado para obter aquele produto acabado. No final de todo processo, quando já não possuir valor nem serventia alguma, transformar-se-á em lixo eletrônico e será despejado irresponsável e arbitrariamente em depósitos na China, na Índia, em Gana ou na região de Lagos na Nigéria.
Depreende-se de tudo isso que não se trata mesmo de uma coisa assim tão simples! Portanto, as motivações implicadas em assaltos para o roubos de “simples” celulares, ou ainda, de outras mercadorias como bonés ou tênis importados, de relógios de marca, nada possuem de simplicidade. Pelo contrário, são parte de um longo, perverso e complicado processo social de comércio ilegal, violência e exploração, que é histórico, explicável; e não circunstancial, ocasional.
Quando alguém rouba e mata por um celular, portanto, o faz não por algo simples, prosaico; mas por um denso e complexo símbolo de poder e status que ele representa em nossa sociedade; quem o faz está certo de que trocará por droga ou venderá com facilidade aquele pequeno objeto de desejo, haverá quem queira e pague por ele, mesmo que tenha custado uma vida. Mas quem o vê imediatamente não percebe todo processo social que ele condensa: o crime, a exploração, a extorsão, sua efemeridade, sua complexidade, suas sutilezas.

É dessa forma, que neste imbricado processo de aparente simplicidade, pessoas se “coisificam”, destituindo-se de sua humanidade. É o que Zygmunt Bauman chamava de “transformação das pessoas em mercadorias”. Isto se dá ao mesmo tempo em que coisas parecem criar vida e produzirem motivações que levam pessoas a matar pessoas. Esta ainda é a maior contradição de nosso tempo. É uma completa inversão dos valores em um modelo de sociedade sempre instável. Se historicamente, em outros tempos e lugares já se matou pela honra, pela terra, pelo sangue, pela religião ou pela pátria; hoje se matam pessoas por algo bem mais complexo, “por um simples celular!”.
Publicado na Coluna sociedade do Jornal Diário de Santa Maria - 22/03/2017
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/geral-policia/noticia/2017/03/duas-vidas-por-um-simples-celular-9754080.html

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