Assistimos
nos últimos dias a narrativa jornalística sobre dois assassinatos bárbaros
ocorridos em Porto Alegre. O primeiro, de um jovem de 29 anos, doutorando de
Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que caminhava em
uma sexta-feira à tarde pelas ruas da Zona Norte da cidade. O segundo caso, de
um outro jovem universitário pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul
(Fadergs),
este com 20 anos de idade, que ensinava artes marciais para crianças carentes. Em ambos os casos, as vítimas
foram alvejadas após serem assaltadas, ao que parece, sem reação. E o que mais
espanta a todos, além da violência destes e de tantos outros crimes semelhantes,
é a aparente banalidade das suas motivações. Foi por um “simples” celular.
Ora, se
fossem algo realmente tão “simples” como se costuma dizer, sem nenhum valor ou
importância, seguramente não seriam a motivação de crimes tão cruéis. Mas o que
há então de tão misterioso e secreto em um “simples” mobile, capaz de motivar ações tão perversas? Convém ressaltar
antes que a intensão aqui é de explicar e não de justificar os crimes. Nada
justifica a perda de uma vida, mas tentar compreendê-la, nós podemos.
Há exatos
150 anos, o velho Marx escrevia no capítulo inicial de sua maior obra sobre o
que denominava como
“caráter fetichista da mercadoria e o seu segredo”. Isto é, em nossa sociedade
as mercadorias não são coisas tão simples como parecem, elas possuem uma
espécie de encantamento, de “feitiço”. Esta expressão tomada por Marx foi
levada à Europa pelos colonizadores franceses ainda no século 18. O “fetiche”
era como eles denominavam nas religiões não europeias, a mística de “simples
objetos” de possuírem propriedades mágicas e misteriosas. Estes vodus, carrancas,
totens e outros objetos eram capazes de mexer com emoções profundas e despertar
mecanismos que as pessoas pareciam não controlar conscientemente.
Dizia
o autor que, assim como aqueles objetos de adoração dos povos colonizados que
impressionavam os franceses, também a mercadoria “à primeira vista, parece uma coisa
trivial, evidente.” Aparece para todos nós, nas interações sociais cotidianas,
no nosso dia a dia, como meros objetos, coisas banais, quase sem valor ou
importância. Porém, “analisando-a, vê-se que ela é uma coisa complicada, cheia
de sutilezas metafísicas” e propriedades sobre humanas. Em outras palavras,
aquele “simples” celular que motiva crimes tão assustadores, muito mais esconde
suas propriedades mercadológicas, seu fetiche, seus encantos, suas capacidades
de despertar desejos e emoções, seu valor social, seus mistérios, do que nos
revela.
Desde
que é roubado, sob a condição de que alguém tenha perdido a vida para que o
roubo se efetivasse, até que seja recomprado em uma banca de rua, em uma loja
ilícita, aquela pequena peça eletrônica pode movimentar o tráfico de drogas, de
armas, de pessoas. Ainda antes mesmo de ser roubado, é uma geringonça que
concentra, muitas vezes, trabalho feminino subcontratado, trabalho infantil
explorado, com matéria prima fornecida justamente pelos países que pagam o
preço mais elevado para obter aquele produto acabado. No final de todo
processo, quando já não possuir valor nem serventia alguma, transformar-se-á em
lixo eletrônico e será despejado irresponsável e arbitrariamente em depósitos
na China, na Índia, em Gana ou na região de Lagos na Nigéria.
Depreende-se
de tudo isso que não se trata mesmo de uma coisa assim tão simples! Portanto, as
motivações implicadas em assaltos para o roubos de “simples” celulares, ou
ainda, de outras mercadorias como bonés ou tênis importados, de relógios de
marca, nada possuem de simplicidade. Pelo contrário, são parte de um longo,
perverso e complicado processo social de comércio ilegal, violência e exploração,
que é histórico, explicável; e não circunstancial, ocasional.
Quando
alguém rouba e mata por um celular, portanto, o faz não por algo simples,
prosaico; mas por um denso e complexo símbolo de poder e status que ele
representa em nossa sociedade; quem o faz está certo de que trocará por droga
ou venderá com facilidade aquele pequeno objeto de desejo, haverá quem queira e
pague por ele, mesmo que tenha custado uma vida. Mas quem o vê imediatamente
não percebe todo processo social que ele condensa: o crime, a exploração, a
extorsão, sua efemeridade, sua complexidade, suas sutilezas.
É
dessa forma, que neste imbricado processo de aparente simplicidade, pessoas se
“coisificam”, destituindo-se de sua humanidade. É o que Zygmunt Bauman chamava
de “transformação das pessoas em mercadorias”. Isto se dá ao mesmo tempo em que
coisas parecem criar vida e produzirem motivações que levam pessoas a matar
pessoas. Esta ainda é a maior contradição de nosso tempo. É uma completa
inversão dos valores em um modelo de sociedade sempre instável. Se
historicamente, em outros tempos e lugares já se matou pela honra, pela terra, pelo
sangue, pela religião ou pela pátria; hoje se matam pessoas por algo bem mais
complexo, “por um simples celular!”.
Publicado na Coluna sociedade do Jornal Diário de Santa Maria - 22/03/2017
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/geral-policia/noticia/2017/03/duas-vidas-por-um-simples-celular-9754080.html
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