Desde algum tempo, nas aulas sobre
cultura de diversidade, procuro por um exemplo que apresente claramente a
distinção entre diferença e desigualdade decorrentes da diversidade social,
econômica e geográfica da sociedade. Acredito que finalmente encontrei este
exemplo.
Passei os últimos dias em uma praia de
Santa Catarina. Durante este tempo, entre o mar, o sol e as caminhadas, ficava
observando o movimento de pessoas pela areia. Muita gente passeando,
aproveitando aquele lugar para descansar, mas também muita gente trabalhando.
Garçons, guarda-vidas, instrutores de stand
up paddle e de surf, pescadores e mais uma porção de gente ocupada em
pequenas vendas à beira do mar. Foi a partir destes últimos que tive a ideia do
exemplo de que falei para as minhas aulas.
No meio daquela multidão de gente,
chamam a atenção os vendedores de redes e mantas tecidas no nordeste do Brasil,
seguramente por mãos femininas, e vendidas no sul do país por homens que
empurram seus carrinhos lotados de carga. Carregam um sotaque forte típico do
nordeste brasileiro. São paraibanos, cearenses, alagoanos, pernambucanos que
migram de seus domicílios de origem, a milhares de quilômetros, deixando o
convívio de seus familiares e amigos, viajando escondidos e precariamente
acomodados nos baús de caminhões, em busca de algumas vendas nos meses de calor
do sul. São gentes, para usar uma denominação de Darcy Ribeiro, de pele amorenada,
compleição física mediana, provavelmente descendentes das camadas mais pobres
daquela população. Dessa forma, o passado escravocrata do nordeste brasileiro
imprime, ainda hoje, nas praias do Sul, uma indelével marca de sua forma social
excludente. Ao vê-los transitar pela areia, não como turistas, mas como
trabalhadores precariados, percebemos que eles não nos revelam a diferença, mas
a desigualdade de nossa sociedade.
Outro grupo ocupado de pequenas vendas à
beira do mar são os jovens senegaleses com seus “paus de selfie”, capas para mobiles
e óculos de sol. São de uma negritude intensa, expressada pelo forte tom escuro
de sua pele e pela compleição física alongada e esguia. São gentis,
sorridentes, falam um português atrapalhado pela influência francófona de sua
colonização e pelo espanhol aprendido açodadamente nos entrepostos de sua
migração global. Vendem produtos que pouco se sabe sobre sua fabricação.
Sabe-se lá que mãos foram exploradas e usurpadas para sua montagem e
transporte. Revelam o lado perverso da tão aclamada “globalização”, em que os
produtos do trabalho humano não conhecem fronteiras, que estes mesmos humanos só
veem recrudescer. A presença na praia destes grandes meninos de pele
intensamente negra não revela a diversidade da nossa sociedade, mas a abissal
desigualdade entre quem está ali para fazer turismo e quem precisa estar ali
para poder sobreviver.
Por fim, chama ainda atenção uma porção
de jovens caingangues, meninos e meninas, vendendo pequenos artesanatos,
bijuterias e tererês para o cabelo.
Como os dois outros grupos discriminados anteriormente, também carregam em sua
aparência física, traços diacríticos que os identificam e os distinguem. No
entanto, este é o limite da diferença, em tudo o mais, sua presença na areia à
beira do mar apenas nos revela a desigualdade da qual são vítima e
consequência. São o epifenômeno de um longo e perverso processo social, no qual
sempre estiveram à margem, nas franjas, à sobra. A dureza de seu trabalho,
dificultada pela rudeza da areia quente e do sol a pino, contrasta com a
graciosidade de seus cabelos escuros e olhos “rasgados” que em muito lembram os
orientais, comprimidos em suas faces franzidas pela luz e pelo calor da praia.
Facilmente chamam a atenção no meio da multidão de gente, mas não por suas
diferenças, e sim pela face cruel de um processo colonizador desigual e
terrível de que são evidência.
Toda esta multiplicidade de pessoas, de produtos,
de origens, de sotaques e de tons não revelam a diferenças da nossa sociedade,
mas as suas desigualdades. Para que a diversidade histórica, étnica, social e
econômica da sociedade transforme-se em diferenças, é preciso primeiro que
sejam preservadas as condições mínimas de dignidade humana, de condições de
trabalho, de alimentação, de educação, de ocupação do espaço para viver e
reproduzir-se socialmente. Sem isso, nossas diferenças não se realizam, não se
evidenciam, não são diferenças. Tudo o que aquela diversidade revela então são
as nossas desigualdades; uma espécie de “dessemelhança” como seres sociais,
decorrentes de nossos diferentes processos sócio-históricos, das disparidades
de oportunidades, de seres humanos que, no limite, são idênticos em suas
potencialidades. Como nos ensinou Rosa Luxemburgo, jamais seremos humanamente
diversos, se não formos socialmente iguais.
Publicado na coluna Sociedade do Jornal Diário de Santa Maria - em 22/02/2017
http://diariodesantamaria.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/noticia/2017/02/das-praias-de-santa-catarina-exemplos-de-desigualdades-9727530.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário