domingo, 5 de julho de 2009

Comunidades Imaginadas


















ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.






GUILHERME HOWES

 Já no começo da apresentação do livro Comunidades Imaginadas, a Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz, aponta para as lembranças e os esquecimentos que marcam os eventos históricos. A Professora alerta que “imaginar” é um exercício tanto difícil quanto necessário, “nações são 'imaginadas', no sentido de que fazem sentido para a 'alma' e constituem objetos de desejos e projeções.” (p.10). Assim, imaginar é necessário, pois faz e dá sentido paraexistência das pessoas e dosgrupos, e difícil na medida em que “não se imagina no vazio e com base em nada” (p. 10), ouseja, os modelos de ação e imaginação, via de regra, estão ancorados em sistemas simbólicos que se afirmam no interior de lógicas comunitárias, afetivas que mobilizam os indivíduos ou uma coletividade em torno de um imaginário comum.


É dessa forma que a Professora apresenta a obra de Anderson: o tema do nacionalismo sendo abordado como um produto cultural, e para compreendê-lo é necessário primeiro entender suas origens históricas, de que forma seus símbolos e seus significados são tratados e transformados ao longo do tempo, resultando em uma profunda legitimidade emocional que resulta de um emaranhado complexo de diferentes forças históricas. Dessa forma, a nação não é só uma questão histórica, mas antropológica, na medida em que é “uma comunidade política imaginada; quase uma questão de parentesco ou religião.” (p. 12). Benedict O'Gorman Anderson, descendente de britânicos, nasceu em 26 de agosto de 1936, em Kunming, na China, no entanto migrou ainda criança para a Califórnia (EUA). Estudou e formou-se na Universidade de Cambridge, e posteriormente registrou-se no programa de estudos sobre Indonésia na Universidade de Cornell, desenvolvendo estudos em Jacarta, durante o golpe de Estado de 1965, e na Tailândia. Atualmente é professor emérito do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Cornell. Irmão mais velho de outro historiador, o inglês Perry Anderson (1938 – ), Benedict possui uma trajetória acadêmica fora dos circuitos tradicionais, os círculos eurocêntricos de abordagem dos fenômenos sociais. Anderson publicou Comunidades Imaginadas, pela primeira vez, em 1983 simultaneamente em Londres e Nova York sob o título Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, sendo reeditado várias vezes e posteriormente ganhando mais dois capítulos. Foi editado no Brasil, pela primeia vez em 1989, e também no Japão, na Alemanha, em Taipei, em Tel Aviv e no Cairo. Foi traduzido para o servo-croata, coreano, espanhol turco, sueco, holandês, norueguês, francês, búlgaro, esloveno, russo, romeno, lituano e catalão, o que permite afirmar que o interesse pela obra transcende as fronteiras do mundo ocidental, atingindo os mais diferentes povos e nacionalidades.
A obra.

O livro de pouco mais de trezentas páginas está estruturado em dez capítulos, além da apresentação, prefácio, introdução, posfácio, referências bibliográficas e (o sempre útil) índice remissivo. Antes de mais nada, convém ressaltar como o autor define nação: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.” (p. 32). Explicando melhor, imaginada pois seus membros jamais se conhecerão ou se encontrarão, limitada porque possui fronteiras finitas e soberana por ser laica e independente de uma dinastia ou de uma ordem divina (p. 32 – 34).
O capítulo I apresenta o que o autor denomina de raízes culturais de uma comunidade. Uma comunidade política imaginária, a nação - e a nacionalidade - é um artefato criado no final do século XVIII, a partir de concepções culturais fundamentais, como a da língua sagrada e do livro, associadas ou desenvolvidas pela revolução de Galileu, o encontro com o Novo Mundo, a revolução da imprensa, o desenvolvimento do capitalismo mercantil. A imprensa vai desempenhar um papel determinante, pois a sua difusão é geradora da simultaneidade, do conhecimento vivo, da reprodutibilidade e da disseminação dos saberes (Anderson, capítulo I). Em outras palavras, as nacionalidades modernas são coesas porque são imaginadas, fazem sentido para os que a imaginam, porque é imaginada individualmente por cada um. Não possuem os antigos vínculos coletivos que tradicionalmente ancoravam a sua coesão. Sem texto sagrado, diminuição da importância da religião, perda da sacralização de um idioma. Fim dos poderes dinásticos, do domínio divino de um rei. Nos novos vínculos imaginados que mantém coesos os grupos, tudo co-existe, fatos (em locais diferentes) interligam pessoas, criando consciência de um compartilhamento temporal.

No capítulo II, Anderson procura entender as origens de uma consciência nacional. O autor aponta que essas origens ancoram-se em uma língua impressa. O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi a interação mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), ema tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística humana. (p. 78). Com isto, o autor vincula o advento da língua impressa à noção de comunidade imaginada. O latim era falado por várias nacionalidades, não sendo um fator comum, a língua

falada possuía uma diversidade incapaz de unificar, portanto o prelo criou um campo unificado “de intercâmbio e comunicação abaixo do latim e acima dos vernáculos falados.” (p. 80). Em outras palavras, “o capitalismo tipográfico conferiu uma nova fixidez à língua” (p. 80), a comunidade se tornou coesa e imaginadamente unificada em torno do papel e da letra impressa. Outro fator importante, foi que este capitalismo tipográfico instituiu línguas oficiais diferentes dos vernáculos administrativos anteriores, criando, através da língua impressa, uma nova mercadoria e remetendo ao sentimento de simultaneidade. Convém ainda observar que essas raízes de uma consciência nacional, advém de “processos inconscientes que resultaram da interação explosiva entre o capitalismo, a tecnologia e a diversidade lingüística humana”. (p. 81). Entendo que o termo traduzido como explosivo refere-se, na verdade, muito mais a um sentido de espontâneo, que resume muito bem a maneira de como uma comunidade é imaginada, neste cenário das nações modernas.

Pioneiros crioulos é como Anderson denomina os novos estados americanos no terceiro capítulo. Pioneiros porque desenvolveram uma noção de nacionalismo antes da Europa e Crioulo (do inglês Creole) porque é como o dicionário Houaiss denomina os descendentes de europeus nascidos nos países hispano-americanos. “Eis, então, o enigma:” diz Anderson na página 88, e prossegue, “por que foram precisamente as comunidades crioulas que desenvolveram concepções tão precoces sobre sua condição nacional [nationness]

– bem antes que a maior parte da Europa?” Por que e como se fragmentaram? Por que vieram a falar o idioma da metrópole? O autor propõe então algumas respostas: estas novas nações criavam movimentos de independência nacional, constituindo-se como unidades administrativas desde o século XVI até o século XVIII. Outro fator determinante se refere à “própria imensidão do Império Hispano-americano, a enorme variedade de solos e climas e, sobretudo, a tremenda dificuldade de comunicação numa época pré-industrial contribuíram para dar um caráter auto-suficiente a essas unidades.” (p. 91). Além disso, a política comercial das metrópoles proporcionava uma fragmentação das colônias em unidades administrativas o que as transformavam em zonas econômicas distintas. Outro argumento utilizado por Anderson, no sentido de criar uma comunidade imaginada nas novas colônias hispano-americanas, é a noção de significado. Nestes novos lugares, co-habitavam pessoas e grupos advindos de diferentes pontos do mundo: malaios, persas, indianos, berberes, turcos, entre outros. Para todos, o novo lugar possuía um mesmo significado. Anderson utiliza a obra de Turner (processo social, ritual de passagem e liminaridade) para demostrar que todos haviam passado por um mesmo ritual de passagem, com objetivos comuns, dificuldades comuns, temores comuns e habitando um mesmo lugar. Mas a grande questão para o autor, no que se refere à sedimentação de uma noção de comunidade imaginada entre as novas nações, é a imprensa. Mais do que isso, o jornal. Através deles desenvolveu-se uma forte contraposição nós X eles. No século XVIII, as gazetas, até mesmo pelo seu caráter popular, eram a forma mais viável, lucrativamente, pelos tipógrafos. Segundo Anderson, “Um traço fecundo desses jornais era sempre o seu caráter local.” (p. 103). Mesmo que os habitantes das cidades de Buenos Aires, Bogotá e Cidade do México não lessem as gazetas uns dos outros, sabiam da existência delas, ou seja, tinham uma consciência comum delas. O autor conclui o terceiro capítulo afirmando que o liberalismo e o iluminismo, idéias correntes da época, e de impacto profundo para as novas nações, por si sós, não eram capazes de conduzir à coesão de uma comunidade política imaginada, “Para esta tarefa específica, o papel histórico decisivo foi desempenhado por funcionários-peregrinos e impressores locais crioulos.” (p. 106).

O quarto capítulo, Velhas línguas, novos modelos o autor expõe como os novos modelos de nacionalismos (1820 – 1920) lincavam-se ideologicamente e politicamente a línguas impressas nacionais dos velhos estados europeus. A nação, afirma Anderson, é uma invenção sem patente, assentada em cópias “piratas” (p. 107), dos novos estados americanos, das línguas impressas do velho mundo. “Do tumulto americano brotaram essas realidades imaginadas: estados nacionais, instituições republicanas, cidadania universal, soberania popular, bandeiras e hinos nacionais etc.” (p. 124). Ou seja, as “cópias”, transformaram-se em modelos legítimos e mobilizadores desses movimentos.

No Capítulo V, Imperialismo e nacionalismo oficial, Anderson explica o que entende por nacionalismo oficial: “a fusão deliberada entre nação e o império dinástico” (p. 131). O autor lembra que foi em meados do século XIX, na Europa, que se formaram esses nacionalismos oficiais. Eles eram historicamente impossíveis de ser pensados separadamente de um nacionalismo lingüístico popular. São uma reação dos grupos dinásticos e aristocráticos, detentores do poder, mas ameaçados de exclusão das comunidades imaginadas populares. “Eis aí um bom exemplo de nacionalismo oficial – uma estratégia de antecipação adotada por grupos dominantes ameaçados de marginalização ou exclusão de uma nascente comunidade imaginada em termos nacionais.” (p. 150).

No sexto capítulo, Anderson denomina de A última onda, uma série de movimentos nacionalistas, principalmente localizados nas colônias da Ásia e África, como “uma reação ao novo tipo de imperialismo mundial, possibilitado pelas realizações do capitalismo industrial.” (p. 197). Em outras palavras, a modernização dos meios de transporte e informação, possibilitados pelo capitalismo industrial, influenciaram sensivelmente as relações entre Estados, entre nações, e entre comunidades e grupos. As viagens, antes feitas por poucos, agora era realizada por multidões. Essa rapidez crescente nas interações culturais adaptou e aprimorou o nacionalismo. Essas alterações modificaram decisivamente os meios de comunicação física e intelectualmente, “as camadas intelectuais descobriram formas alternativas à imprensa, difundindo a comunidade imaginada não só para as massas iletradas, mas para massas letradas que liam em outras línguas.” (p. 198).

No sétimo capítulo Patriotismo e racismo, Anderson tenta entender o apego, o vínculo emocional das pessoas, o sentimento de pertença, pelas suas representações coletivas. Retomando a ideia central do livro, qual seja, a de delinear os processos pelos quais a nação veio a ser imaginada e, uma vez imaginada, modelada, adaptada e transformada. (...) Mas é de se duvidar que a transformação social ou as consciências transformadas, por si mesmas, consigam explicar o apego que os povos sentem pelas invenções de suas imaginações – ou, (...), o porquê de as pessoas se disporem a morrer por tais invenções. (p. 199). Anderson entende que haja uma “naturalização” de elementos que compõem este pertencimento. Essa naturalização é garantida por qualidades “inatas” ou “puras”. As qualidades inatas remetem a “laços naturais”, ao nascimento, não escolhidos conscientemente. Ou noções de “pureza”, vinculadas a causas nobres ou heróicas derivadas de sentimentos fundamentais ou “puros”. No entanto, o autor lembra que a nação é concebida muito mais na língua do que no “sangue”. As pessoas podem entrar voluntariamente ou ser convidadas a entrar na comunidade imaginada, “mesmo as nações mais isoladas aceitam o princípio da naturalização (...) Vista como uma fatalidade histórica e como uma comunidade imaginada através da língua, a nação apresenta-se aberta e, ao mesmo tempo, fechada.” (p. 204). É impossível precisar a data em que nasce uma língua. Via de regra, remontam a um passado imemorial. Anderson afirma que o homo sapiens é, antes de tudo, homo dicens, comprovando que as línguas, além de inerentes à própria civilização, mostram-se mais enraizadas nas sociedades mais do que qualquer outro elemento. “Por meio dessa língua, que se conhece no colo da mãe e que só se perde no túmulo, restauram-se passados, imaginam-se companheirismos, sonham-se futuros.” (p. 215).

Em O anjo da história, nome do oitavo capítulo, Anderson inspira-se na metáfora de Walter Benjamim, para destacar a importância do particular, do efêmero, do pequeno pormenor desprezível, no contesto da história. Para esta história oficial, macro, só interessam os grandes acontecimentos, no entanto, nada do que um dia aconteceu deve ser desprezado. Ancorado na figura de Paul Klee Agelus Novus, o anjo da história representa uma permanente catástrofe. A nona tese de Benjamin conta uma história como uma catástrofe, um amontoado de ruínas e não uma cadeia de acontecimentos rumo ao progresso. O anjo da história vê a barbárie mas não compactua com ela. Ele gostaria de conversar com os mortos, juntar os fragmentos. Mas a tempestade, o progresso, o empurra para a frente. Por fim, afirma Anderson: “o anjo é imortal, e os nossos rostos estão voltados para a escuridão à nossa frente.” (p. 225). O anjo é o próprio historiador.

No nono e penúltimo capítulo, Censo, mapa, museu o autor expõe como essas três instituições de poder conseguem moldar os imaginários dentro da gramática política e ideológica desde o século XIX. Mutuamente interligados iluminam o estilo do pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. Essas três instituições “juntas, (...) moldaram profundamente a maneira pela qual o Estado colonial imaginava seu domínio – a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu território e a legitimidade do seu passado.” (p. 227).

No décimo e último capítulo Memória e esquecimento, Anderson menciona que “Todas as mudanças profundas na consciência, pela sua própria natureza, trazem consigo amnésias típicas.” (p. 278), ou seja, todo exercício de memória pressupõe também um exercício de esquecimento. E é deles, que segundo o autor, decorrem as narrativas. E Anderson cita Braudel, para quem as mortes que importam são aquelas miríades de fatos anônimos, que, somados e tabulados em índices médios de mortalidade por século, lhe permitem mapear as condições de vida (de lenta transformação) para milhões de pessoas anônimas cuja nacionalidade seria a última coisa a ser perguntada. (p. 280).



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