Bourdieu utiliza dois conceitos que ajudam a entender a relação entre indivíduo e sociedade. São os conceitos de campo e de habitus. O habitus diz respeito aos esquemas mentais de percepção, pensamento e ação que caracterizam o comportamento do indivíduo. Ou seja, é como o sujeito percebe, pensa e age no mundo real. São disposições internas herdadas da família e estruturadas pela experiência individual e pela educação, constituindo-se no seu habitus primário. Os sujeitos, embora pré-dispostos pelo habitus primário, são submetidos às contingências e múltiplas possibilidades de ação da vida adulta, que constitui seu habitus secundário. Sendo assim, o habitus é a interiorização do mundo exterior. É uma “marca” que a sociedade impõem e imprime sobre o indivíduo.
O campo é constituído pelas esferas autônomas da vida social, construídas historicamente, envolvendo relações sociais, sistemas hierárquicos que pressupõem dominação. Com esta noção de campo, Bourdieu propõe um conceito de sociedade formado por instâncias ao mesmo tempo interdependentes e autônomas que instituem entre os indivíduos e os grupos relações de concorrência e poder. “O habitus científico é uma regra, um modus operandi científico quefunciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem.”
Meu objeto de estudo, as manifestações da cultura gaúcha acionada, produz não só um habitus gauchesco ou um habitus tradicionalista, como também uma hexis cultural gaúcha.“... o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural (...) como Mauss, o qual reconhece a dimensão corporal da hexiscomo porte ou postura – a noção serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado”. Vendo dessa forma, o corpo seria portador dessa hexis, desse habitus corporal. É como se disséssemos, ao ver uma pessoa na rua que ela pertence a esta ou aquela classe social, apenas pela sua aparência, pela sua maneira de vestir ou de se comportar. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, estéticos e morais. É também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. É uma matriz determinada pela posiçãosocial do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações.
Um peão da estância ao ir à cidade, veste-se como um homem urbano. Calças jeans, camiseta, e um tênis. Um homem da cidade, ao visitar uma fazenda ou uma entidade tradicionalista tentará vestir-se e comportar-se como as pessoas do meio. No entanto, nenhum deles conseguirá somente com uma roupa igual, oo copiando alguns trejeitos, assimilar a cultura ou penetrar no "ethos" do grupo. Para internalizá-lo seria necessário um processo social mais intenso e duradouro, se é que pode haver essa possibilidade. Assim, o corpo, a expressão física, a linguagem corporal marcaria o sujeito com sua condição social, sua classe social. Por mais que o indivíduo ascenda ou descenda socialmente ou transite em mais de um grupo identitário, aquele do qual herdou sua hexis, seu habitus, sua "marca" social estará estampado em sua forma de agir, de falar ou de representar o mundo.
Dessa forma, pode-se entender que as condições de participação social baseiam-se na herança social. O acúmulo de bens simbólicos estão inscritos nas estruturas do pensamento e também no corpo, e são constitutivos do habitus através do qual os indivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social. A cultura gaúcha é repleta do consumo de bens simbólicos. Este é um ponto de diálogo e de interface, mas também um ponto de dissenção entre os mundos rural e urbano.
No texto A Distinção. Crítica social do julgamento (2007), Bourdieu discute a correspondência entre práticas culturais e sua relação com classes sociais, bem como os princípios que legitimam as hierarquias sociais aí implícitas. Ou seja, qual a dinâmica que rege estas relações, e que mecanismos hierárquicos distintivos estão implícitos nestas interações. Para Bourdieu “Os bens culturais possuem, também,uma economia, cuja lógica específica tem de ser identificada para escapar do economicismo.”(Bourdieu, 2007). Isso quer dizer que na prática do consumo da cultura, música, literatura,monumentos, roupas (pilcha gaúcha), culinária (erva mate, carne do churrasco), entre outros, a relação entre as preferências dos indivíduos e a sua origem social, está além da limitação do valor. As escolhas particulares estariam sendo mediadas, perpassadas pelo seu nível de instrução, sua origem social, pela sua vinculação identitária.
Retomo aqui a idéia de aproximação e dedistanciamento, de circularidade de fluxos interpretativos entre o homem do campo (o peão de estância), e o homem da cidade (o tradicionalista urbano), em relação aos seus julgamentos de gosto quanto ao mercado de bens simbólicos entendidos dentro de uma cultura gaúcha acionada. Entre ambos, achamos pontos de convergência e de divergência no que diz respeito a este mercado de bens simbólicos. A pilcha, da qual não se pode desvincular a identidade gaúcha, é cada vez menos encontrada nas estâncias. A bombacha e a bota de couro, perderam seu valor prático na atividade do campo. O valor alto destes utensílios, que ganharam status de grife, afastou o seu uso pelos homens do campo. Calças jeans, e outros tecidos mais baratos (sarja, tactel), que se encontram em lojas de departamentos ou em agropecuárias, assim como botas de borracha, ou botas de lona e solado de pneu, se aproximam mais do valor possível de ser pago pelo trabalhador rural. A erva mate, assim como o fumo e a palha, oferecidos gratuitamente aos peões, nas estâncias, até algum tempo atrás, não mais constam da estrutura oferecida pelos patrões. Até mesmo a lenha, para os fogões e lareiras, hoje depende da iniciativa do peão. A carne oferecida à peonada como esteio da alimentação, pois era costume nas estâncias carnear, para o próprio consumo, atualmente é comprada individualmente por cada trabalhador. Isto mostra que estes elementos, reduzidos nas estâncias ao seu valor econômico, guardam seu valor simbólico vinculados a um mundo rural mitificado. Outro exemplo é a música gaúcha produzida sobre este mundo imaginado que perdeu seu significado ao ser ouvida pelo homem do campo. Estabelece-se aí uma relação de poder sobre bens simbólicos, mediadas por relações de poder econômico. O homem rural, depauperado, assemelha-se ao homem pobre dos cinturões das cidades, ambos inseridos numa mesma lógica de consumo de bens culturais e simbólicos. A análise de Bourdieu é sobre a possibilidade da autonomia da produção e do consumodesses bens culturais, discutir se eles podem se dar independentemente das diferenças sociais, se se pode distinguir da forma artística as implicações históricas, econômicas e políticas. Bourdieu pensa nas relações de poder que estão no bojo das trocas culturais. Através de uma crítica social ao gosto estético, afirma que a arte popular não consegue anuir a uma legitimidade estética, e ainda ao contrário, serve de referência negativa (mau gosto) à arte superior ou consagrada. Os julgamentosde gostos e de preferências não são o reflexo da estrutura social, mas um meio de afirmar uma vinculação social.
“O duplo sentido do termo 'gosto' – que, habitualmente, serve parajustificar a ilusão da geração espontânea que tende a produzir esta disposiçãoculta, ao apresentar-se sob as aparências da disposição inata – deve servir,desta vez, para lembrar que o gosto, enquanto 'faculdade de julgar valoresestéticos de maneira imediata e intuitiva' é indissociável do gosto no sentidode capacidade para discernir os sabores próprios dos alimentos que implica apreferência por alguns deles.” (Bourdieu, 2007).
A partir desta leitura de Bourdieu é possível entender que as classes sociais possuem práticas culturais que legitimam hierarquias implícitas nestas relações. Estabelecem-se aí relações de poder, através de categorias de dominação, que produzem capital social e cultural e se reproduzem socialmente. Estas relações de poder instituem ações organizadas que incapacitam os indivíduos a elaborar estratégias que ultrapassem as relações de desigualdades sociais.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Cap. I, II, III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
__________. A Distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk,2007.
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