quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Entrevista para o Grupo Objetiva Júnior (Empresa Jr) da UFSM

 1. Apresente-se: Nome, formação e área de estudo

Meu nome é Guilherme Howes, sou antropólogo, bacharel em Ciências Sociais, licenciado em Sociologia, especialista em História do Brasil, mestre em Ciências Sociais e doutor em Educação. Toda formação pela UFSM. Meus estudos giram em torno da antropologia política, da sociologia do trabalho e das políticas públicas em educação.


2. Como você observa as mudanças de trabalho no decorrer do tempo e adaptação das pessoas a esses cenários?


As mudanças no mundo do trabalho são a expressão mesma das mudanças de uma sociedade centrada (cada vez mais) no trabalho. Tomando o trabalho como o centro da sociabilidade humana, qualquer mudança no mundo do trabalho transforma-se numa mudança da própria sociabilidade humana. A palavra “adaptação” configura-se como um eufemismo para o caráter transformador que o trabalho traz para a vida humana. Desde o evento da Modernidade, os trabalhadores muito mais sujeitam-se ao trabalho do que se adaptam a ele. Desde então até a Contemporaneidade, o trabalho que deveria ser um fim das atividades vitais humanas transformou-se num meio para realização de uma lógica que não é humana, mas a sociabilidade do modo de produção capitalista. Nesta, o centro não é o ser humano e sua humanização, mas o lucro do capital por meio da exploração do trabalho humano, da extração de cada vez mais valor da força de trabalho humana. Sendo assim, as mudanças no trabalho têm se dado no sentido de atender à lógica inumana do capital, desumanizando os trabalhadores. 


3. Hoje percebe-se modalidades flexíveis de trabalho, porém com jornadas diárias chegando a 10h/12h. Qual sua percepção sobre essa realidade?


Flexibilização é mais um eufemismo para atenuar a exploração do trabalho humano. Para criar essa atenuação da linguagem e assim parecer menos horrendo do que de fato é, o capital produz seu próprio léxico. Assim, cria termos atenuadores que transformam informalidade em empreendedorismo, a sujeição do trabalho em colaboração - chamando os trabalhadores de colaboradores e precarização em flexibilidade. A flexibilidade, na atual conjuntura, vem acompanhada de perdas salariais, de garantias legais e trabalhistas, de seguridade e sobretudo previdenciárias.


4. Em outros países a escala de trabalho já foi reduzida pensando na produtividade dos seus colaboradores, porém no Brasil ainda nem é uma PEC. Por quais fatores você acredita ainda ser difícil pensar em uma escala reduzida?


É preciso compreender que há uma divisão mundial do trabalho. Para que o coração burguês do capital (leste dos EUA, Europa central e Japão)  goze de jornadas reduzidas, a periferia do sistema precisa intensificar a exploração. Por outros termos, para haja fartura na Casa Grande é preciso escassez e chicote na senzala geoglobal periférica. Pertencemos a esta última. Estamos na contramão, na parte pobre e por essa razão partilhamos de migalhas da divisão internacional do trabalho. Desde pelo menos uma década, há um golpe em curso no Brasil, e esse golpe não é contra um partido ou um ou outro político em particular, mas contra a classe trabalhadora, que paga com horas de trabalho, com seu suor, seu sangue e suas lágrimas, seus cérebros, seus nervos e seus músculos pelas horas a menos trabalhadas, pela redução da jornada de trabalho dos países capitalistas centrais.


5. Quais as possíveis consequências sociais e econômicas da redução da escala de trabalho?


A luta pela redução das jornadas de trabalho é uma luta histórica da classe trabalhadora. Reduzir o tempo gasto no trabalho é antes e mais compreender que existe vida além do trabalho. Reduzir jornadas não reduz  produtividade. Apenas diminui a exploração do trabalho. Aumentar jornadas de trabalho não aumenta produtividade, apenas aumenta a exploração do trabalho. O que aumenta a produtividade é investimento em tecnologia, a otimização de processos, é a capacitação dos trabalhadores, qualificando-os e inserindo-os nos ganhos da empresa. Reduzir jornadas é compreender que mais tempo para fruição da vida pode até mesmo se refletir em um mercado de consumo mais efervescente e participativo dos próprios trabalhadores. Talvez essas sejam as mais importantes consequências sociais e econômicas da redução da escala de trabalho.


Se existir alguma informação ou discussão a mais que seja interessante para a reportagem, pode mencionar!


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O assassinato do deputado Rubens Paiva e a luta de Eunice Paiva contra a ditadura: Ainda estou aqui

 

Por 



Na busca pela verdade, Eunice se formou em Direito na Universidade Mackenzie e se engajou em causas sociais, confrontando, por exemplo, a política indigenista do governo durante os anos 1970.

O mistério do "desaparecimento" de Paiva, porém, só foi resolvido depois do fim da ditadura. Em 1986, numa entrevista à revista "Veja", o psiquiatra Amilcar Lobo, que tinha sido tenente-médico durante o regime, disse que tinha visto o engenheiro quase morto numa sala do quartel na Tijuca. Dias depois, a professora Cecília Viveiros de Castro, uma das mulheres presas ao voltar do Chile, em 1971, contou ao GLOBO que foi levada ao DOI em um carro com Rubens Paiva e viu que ele estava ensanguentado.

Com a aprovação da Lei dos Desaparecidos, em 1996, Eunice finalmente obteve o atestado de óbito do marido, após 25 anos. Em 2014, durante a Comissão Nacional da Verdade, que promoveu a apuração de crimes cometidos por militares da ditadura, uma reportagem do GLOBO baseada em depoimentos de ex-agentes envolvidos revelou que o corpo de Paiva fora enterrado em um terreno baldio no Alto da Boa vista e, dois anos depois, levado à Praia do Recreio dos Bandeirantes, para ser jogado no mar.

Naquele mesmo ano, a Justiça federal acolheu uma ação do Ministério Público Federal e tornou réus cinco ex-agentes acusados de matar o engenheiro e ocultar seu cadáver. Àquela altura, Eunice já vivia numa luta contra os sintomas do mal de Alzheimer. Ativista social, fundadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), ela morreu em 2018, aos 86 anos, considerada uma heroína para a militância que trabalha, até os dias de hoje, para revelar os abusos da ditadura.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Nota da diretoria nacional do ANDES-SN em apoio ao docente Guilherme Howes

 

Contra as milícias bolsonaristas nas redes sociais e as ameaças judiciais!


SINDCEFET-MG
https://sindcefetmg.org.br/contra-milicias-bolsonaristas-nas-redes-sociais-e-ameacas-judiciais/

O movimento docente, e todo conjunto da classe trabalhadora, atravessa uma conjuntura cuja marca tem sido ataques em todas as dimensões de nossa vida, a exemplo da recente tentativa do governo Bolsonaro e parte do congresso em aprovar a famigerada PEC 32, que visa destruir o serviço público.

Os ataques às Universidades, Institutos federais e CEFET’s, tão constante por parte desse governo e de seus/suas apoiadore(a)s, expressam o ódio que tais têm do conhecimento, da ciência, da liberdade de pensamento e de ideias.

Recentemente o docente Guilherme Howes, docente do Campus Santana do Livramento e Primeiro Secretário de Formação Sindical da atual gestão da SESUNIPAMPA – Seção Sindical do ANDES-SN, ao expressar sua opinião, em relação à catástrofe do governo Bolsonaro, responsável direto pela morte de mais de 600 mil pessoas por COVID-19, pelo aumento do desemprego, do custo de vida, da fome no Brasil, foi e tem sido atacado em redes sociais pelas milícias do bolsonarismo, especialistas em atacar os que se opõem ao genocídio, ecocídio e etnocídio realizado pelo governo. Para além desse ataque em redes sociais, o referido professor e dirigente sindical tem sido assediado por ameaças judiciais proferidas por um importante empresário apoiador do governo genocida.

Dessa forma, a Diretoria Nacional do ANDES-SN vem, por meio dessa nota, manifestar solidariedade ao docente Guilherme Howes, reafirmando nosso compromisso em defesa da educação pública, gratuita e democrática. Lembramos que um ataque a um(a) docente é um ataque a todos e a todas. O bolsonarismo não nos calará.

Brasília(DF), 18 de outubro de 2021.

Diretoria Nacional do ANDES-Sindicato Nacional

O exílio da periferia

 O assunto que tem mobilizado os veículos locais de comunicação nos últimos dias diz respeito ao reajuste da tarifa do transporte público em Santa Maria. O poder público esforça-se para fazer parecer que não se trata de uma questão política, mas sim de uma questão técnica; que o cálculo que resulta no valor da passagem atende a critérios eminentemente contábeis. 



O site que demonstra como o cálculo da passagem é feito denomina-se Transporte Transparente e lá parece estar tudo certo, perfeitamente explicado e discriminado. Onde está então o problema? Justamente em fazer o cálculo! Não pode haver esse cálculo. O transporte público não pode ser regido pela lógica de um serviço privado. Seu fim último é a população. Transporte público não é mercadoria, e a finalidade, portanto, não pode ser a lógica do mercado, o lucro; mas sim transportar pessoas com dignidade. Por mais que o cálculo esteja correto do ponto de vista contábil, sua lógica numérica não cabe para esse fim!

Em meio a essa discussão, no último dia 13 de maio, celebrou-se a data daquilo que Martinho da Vila chamou de Sublime Pergaminho, o documento formal do fim oficial da escravatura no Brasil. Apesar de serem assuntos aparentemente diversos, olhando-se mais de perto, são extremamente conexos. Há 130 anos acreditamos que por força de uma lei tenhamos rompido a barreira do exílio e da segregação. Não rompemos! E a prova disso é a forma como tratamos, desde lá, dos direitos sociais da população mais pobre, e o transporte público, é um exemplo.

Como lembra o geógrafo Milton Santos, queremos ser cidadãos e não consumidores, sermos os sujeitos da história, uma história escrita por pessoas, reais, de carne e osso e não por cálculos transparentes, translúcidos. Não somos números, somos gente! A qualidade dos serviços públicos, como o transporte público, acessível e de qualidade, é que assinará a verdadeira carta de alforria dos brasileiros, em especial dos moradores pobres, trabalhadores e estudantes, que vivem hoje a realidade da segregação e do exílio na periferia.

Publicano no Jornal diário de Santa Maria em 16 de maio de 2018

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Íntegra da entrevista para jornalista Marina da Sesunipampa

 1. Quais são os principais desafios enfrentados por instituições multicampia na coordenação e implementação de ações sindicais, considerando a dispersão geográfica dos seus campi?

As universidades em contexto de multicampia possuem dificuldades muito próprias. Com a expansão do ensino superior dos anos 2000 e 2010 muitas universidades foram criadas nessa configuração. Muitas que já existiam, criaram campi descentralizados ou avançadas (UFRGS, UFSM, FURG por exemplo), o que é um tipo de multicampia, enquanto outras foram criadas já em modo multi campi, a exemplo da Federal da Fronteira sul, con 5 campi e a Unipampa com 10 campi. Foi um modo de atender a demandas políticas e ao mesmo tempo expandir e interiorizar o ensino público e superior.

Essa dispersão geográfica, desde o seu início, trouxe desafios peculiares para a implementação de ações sindicais.

Cada campus acaba atuando como um conjunto independente de faculdades, como pequenas universidades totalmente dispersas umas das outras. A Unipampa não é uma universidade departamentalizada, cada campus é uma unidade com certa autonomia administrativa e financeira.

Cada campus pode ter necessidades específicas devido a contextos regionais distintos, como variações nas condições de trabalho, infraestrutura e questões sociopolíticas locais. Essa diversidade de realidades pode complicar a construção de pautas sindicais unificadas, exigindo uma adaptação flexível às demandas de cada localidade e isso se reflete num enfraquecimento da coesão sindical.

Essa dispersão físico geográfica somada às disparidades das demandas peculiares de cada campus acaba afetando a capacidade de pressão conjunta sobre a administração central.

Diante disso, de conjunto, as ações da Sesunipampa são realizadas por meio virtual, reuniões de diretoria, assembleias e demais funções sindicais. Todos sabemos que as plataformas digitais apresentam limitações, além das desigualdades no acesso em cada campus, variando de acordo com a estrutura de cada um e essas dificuldades trazem consequências no senso de unidade e colaboração tão necessários a um sindicato.


2. Como a diversidade de realidades locais entre os diferentes campi de uma instituição pode impactar a unidade e eficácia das estratégias de mobilização sindical?

Universidades em contexto de multicampia guardam dificuldades muito próprias que dizem respeito aos contextos locais em que se localizam.

No caso da Unipampa essa dificuldade é extrema: são três campi em municípios que fazem fronteira com a Argentina e sete campi que fazem fronteira com o Uruguai. A distância entre os campi mais distantes um do outro é de quase mil quilômetros. O Campus de São Borja, na Fronteira Oeste do estado habita a realidade socioeconômica dos municípios das Missões e do Noroeste do estado. O campus de Jaguarão, no extremo sul do estado, tem outra realidade sócio-econômica. Entre eles, outros campi, nas regiões sul e oeste do estado, enfrentam também suas próprias realidades. Em geral, são campi localizados em municípios com forte economia rural, agropecuária extensiva, monocultura e agronegócio.

Em certa medida, cada campus (o perfil de seus professores, técnicos, alunos e comunidade universitária) acaba refletindo um pouco a mentalidade sócio econômica de cada lugar e as estratégias de mobilização sindical também essas características. Como são regiões dominadas culturalmente pelo individualismo da economia estancieira e monocultora as atividades sindicais são vistas como movimentos desabonadores para os que se mobilizam e esse estado de coisas acaba inibindo toda a atividade coletiva e sindical.


3. De que maneira as instituições de fronteira, situadas em áreas geograficamente isoladas, enfrentam dificuldades adicionais na articulação com sindicatos e movimentos nacionais?

Aqui aparecem duas coisas distintas mas interligadas e que causam prejuízos imensos à organização sindical e acadêmica: o insulamento (interno) e o isolamento (nacional). Não só estamos completamente afastados uns dos outros como estamos isolados do resto do país. As dificuldades não são apenas sindicais, mas acadêmicas também. É extremamente difícil organizar eventos, trazer convidados não só de fora do estado como também do próprio RS. Os campi localizados em municípios que recebem voos tem aeroportos precaríssimos, com poucas e instáveis linhas. A dificuldade também ocorre no sentido rodoviário. Das estradas que dão acesso aos municípios da Unipampa, nenhuma delas é duplicada, são rodovias precárias, pessimamente preservadas, muito afetadas pelo transporte de carga que escoa desses municípios. Não há qualquer balança de controle de peso das cargas de madeira, gado, grãos e outras commodities.

Nesse sentido, campi localizados em lugares inacessíveis acabam insulados, o que inviabiliza o intercâmbio interno, e isolados do cenário nacional, tanto em sentido sindical quanto mais ainda em sentido da organização sindical.


4. Quais são os obstáculos enfrentados por sindicatos de instituições multicampia na comunicação e no engajamento de servidores e estudantes espalhados por diferentes localidades?

Para além de todas as dificuldades de que tratamos até aqui, somam-se os obstáculos enfrentados pelos sindicatos localizados em instituições multicampi na comunicação e no engajamento de servidores e estudantes espalhados por diferentes localidades.

O sindicato do técnicos administrativos da Unipampa, o Sindipampa, está atualmente inativo. Já foi um sindicato ativo e combativo e hoje encontra-se totalmente desarticulado. É claro que não são apenas razões internas, nessa desarticulação implicam causas muito mais amplas como a despolitização da categoria, a desestruturação da carreira e a precariedade da estrutura da instituição. Mas a desarticulação é flagrante. 

As assembleias da Sesunipampa são muito sinalizadoras dessa desarticulação: dos 10 campi, raramente consegue-se participação de mais da metade dos campi. Numa Universidade em que a despolitização impera sobre docentes e taes, não é de estranhar que a despolitização atinja também os discentes. Os alunos têm vínculo bastante efêmero com a instituição, permanecem nela por poucos anos. A organização dessa categoria efêmera, temporária, em contexto de insulamento e isolamento é muito mais difícil ainda. Há campi que sequer possuem diretórios acadêmicos dos cursos de graduação. As tecnologias digitais ajudam a mitigar essas limitações, no entanto, são insuficientes para proporcionar uma organização robusta, de conjunto, com pautas centralizadoras e um engajamento significativo.


5. Como a experiência sindical da Sesunipampa, atuando num contexto de multicampia e fronteira, pode contribuir para o debate do movimento sindical?

Recentemente, o Andes Sindicato Nacional criou um grupo de trabalho para debater multicampia: é o GT Multicampia e Fronteira. Isso é indicativo de que o tema está no centro das discussões da Nacional e o quanto esse tema se tornou importante. Nós, aqui da Unipampa, ainda estamos em fase de organização dos debates. As tarefas são muitas e os que efetivamente se implicam com elas são poucos. Por essa razão, ainda levaremos um certo tempo para levar nossas apreciações e experiências a respeito dessa realidade que muito nos constitui.


6. Quais estratégias podem ser adotadas para superar as barreiras impostas pela distância e pelas particularidades regionais nas campanhas sindicais de instituições multicampia e de fronteira?

No âmbito da Sesunipampa, temos realizado anualmente caravanas que visitam presencialmente os campi promovendo discussões sobre temas pertinentes à categoria com um todo, debatendo questões particulares de cada contexto e promovendo campanhas de sindicalização. Há também um esforço coletivo em nível de diretoria buscando sindicalizar ao menos um docente em cada campus. Fazendo isso, a Seção busca contar com a presença de todos os campi nas campanhas, nas assembleias e na representatividade da categoria.

Para além disso, é preciso entender que essa questão das barreiras impostas pela multicampia é muito mais ampla. Isso impacta toda a Universidade e obviamente impacta também o sindicato que organiza-se politicamente dentro dela.


Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Pampa, uma seção sindical do ANDES Sindicato Nacional na Universidade Federal do Pampa.




segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Sociedade da desinformação

Desafio do letramento digital no Brasil

No último quarto do século 20, o Brasil assumiu a condição de sociedade urbana de massa com ampla parcela de sua população analfabeta, cujo acesso generalizado à indústria cultural resultou nas consequências que ainda marcam a realidade da democracia brasileira.

Neste primeiro quarto do século 21, a transformação digital da sociedade brasileira transcorre acelerada e ampla, porém com maioria da população vivendo em pleno iletramento digital. 

As consequências são inequívocas, cuja difusão de notícias falsas e mentiras comprometem a democracia e suas instituições. Um risco enorme que pressupõe o combate por meio de um amplo programa nacional de letramento digital. 

A União Europeia já se deu conta disso, possuindo importante política de combate às mentiras e as notícias falsas.



Marcio Pochmann

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Entrevista para a Revista Úrsula

 1-O hábito de mentir e divulgar notícias falsas não é um fenômeno novo, mas, na contemporaneidade da era digital, ele foi turbinado por um aspecto muito importante, a velocidade de compartilhamento. Segundo pesquisa do Instituto Idea, a cada quatro mensagens recebidas no whatsapp e Telegram, uma é considerada falsa ou duvidosa, com conteúdos distorcidos ou falsos. A partir dessa informação, o professor poderia definir o que são Fake News dentro da atual conjuntura?

De fato, a mentira e a divulgação de notícias falsas não é uma novidade, no entanto, na contemporaneidade, tudo isso ganhou uma nova dinâmica. Trabalhei essa questão na resenha que publiquei sobre o livro do Han (HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson, Editora Vozes, Petrópolis, RJ: 2002) disponível em <https://revista.fdsm.edu.br/index.php/revistafdsm/issue/view/37/45> onde o autor diferencia a mentira da fakenews de forma clara e necessária. Em resumidas contas, na atual conjuntura vivemos uma crise da verdade, tal como a conhecíamos. Essa crise consiste na perda da crença que tínhamos na facticidade. Nessa espécie de vazio, de   um   novo   niilismo   do   século  XXI,  passam  a  circular  informações  totalmente desacopladas da realidade, formando um espaço hiper-real, como diz Han. Aqui, é fundamental desambiguar os termos como mentira e fake news, facticidade e realidade. è fundamental que fique claro que as fake news não são uma mentira..  De  forma  simples  pode-se  entender  a  mentira com algo irreal, que não acontece ou não aconteceu. Já as “fake news” não  consistem simplesmente numa mentira porque elas forjam um novo tipo de realidade, não factual, mas  hiper-real.  Han afirma que o novo niilismo não implica que a mentira foi feita verdade ou que a verdade foi difamada como mentira. Em vez disso, a própria diferenciação entre verdade e mentira é que foi anulada e dentro dessa compreensão, quem inventa uma nova realidade, não mente, em sentido habitual, mas cria um para realidade, uma hiper realidade, uma fakenews, cuja principal função não é narrar a factualidade do mundo mas produzir efeitos nos ânimos e ações dos indivíduos. A função da fakenews não é pretérita, de narrar falsamente o acontecido, mas futura e prospectiva, de mobilizar corações e mentes a agir em função do que preferem acreditar que é verdade.


2-Aprofundando um pouco nesse tema e pensando nas eleições municipais que se aproximam, de que maneira as fake news podem influenciar os resultados? Poderia trazer algum exemplo de eleições passadas?

Tratei pontualmente disso em um texto de janeiro de 2020, também ano de eleições municipais. As fakenews não comunicam a todos, indiscriminadamente, de forma livre e aberta. São mensagens cifradas, direcionadas e transmitidas em bolhas algorítmicas cirurgicamente elaboradas. Eu lembro muito bem quando criei meu primeiro e-mail, nos meados dos anos 1990 e quando uma década depois, em uma aula da graduação, o professor anunciava o Google como um novíssimo site de busca. Naquele momento a informação parecia estar ao alcance de todas e todos. Ainda menino, estudante de uma escola pública na fronteira do RS com a Argentina, quando precisávamos fazer trabalhos escolares nos reuníamos, via de regra, na minha casa. Filho de professora, na estante da minha Madrinha tinha a Barça, a enciclopédia que reunia todo conhecimento científico, tudo que por ventura precisássemos para o trabalho da escola estava ali naquela coleção de livros! Esses dois momentos estão intimamente relacionados e respondem à questão: Nas últimas duas décadas a Internet nos apareceu como a democratização do conhecimento e da informação. Se lá na fronteira, há três ou quatro décadas, eu e meus colegas tivéssemos acesso à Web, todas e todos teríamos igualmente acesso ao conhecimento e à informação e não precisaríamos mexer nos livros da estante. Essa tendência, contudo, não foi exatamente o que aconteceu. Pelo contrário, parece que hoje, na medida em que se amplia o acesso, se amplia também uma espécie de seleção, de filtro pelo qual passa a informação até chegar até cada um de nós: e o nome disso é algoritmo. Ele é um artifício da inteligência informacional que decide e determina antes que saibamos ou queiramos, o que veremos, saberemos, quereremos ou odiaremos. Um caso exemplar disso está no filme “Privacidade Hackeada”. Redes sociais criam, sem que percebamos, um teste de nossa personalidade com base em cinco principais sentimentos: abertura a experiências, responsabilidade, extroversão, agradabilidade e irritabilidade. Em conjunto, esses traços dividem as pessoas em diferentes tipos de personalidade. O algoritmo é extremamente preciso. Com dez ingênuas curtidas nossas a postagens de nossos amigos ele é capaz decifrar o tipo de pessoas que somos, com mais probabilidade de acerto que nossos colegas de aula ou de trabalho; com 150 curtidas ele sabe mais sobre nós do que nossos pais; e com 300 despretensiosas curtidas ele compreende melhor nossa personalidade que nossa ou nosso parceiro (quiçá nós mesmos!). Isso sem considerar que nosso rastro digital é muito mais amplo do que apenas likes ou deslikes. Assim, toda e qualquer informação que nos chega, ou não chega, tem por base essa triagem digital chamada algoritmo. Não vemos tudo, como a internet fazia parecer no início, mas apenas aquilo que o nosso algoritmo selecionou para nós, formando uma verdadeira bolha. Aquela promessa de mundo digital irrestrito e totalmente acessível que sonhamos está amputado por um pequeno recorte que emoldura as informações que a nossa própria preferência ou repugnância configurou. Somos, neste cenário, mais desinformados e menos conhecedores do que os leitores da Barça dos anos 70 e 80. Vemos o mundo por uma fresta pensando que vemos o mundo todo! Só nos aparece nas redes sociais aquilo que, sem que percebamos, está configurado para nos aparecer. Os algoritmos dessas redes são como um buraco no chão, quanto mais fundo mergulhamos nelas mais fechada é a visão que temos do céu, embora sempre pensemos que aquele pequeno pedaço é o céu inteiro. A promessa da sociedade do conhecimento e da informação se realizou de modo inverso, vivemos em bolhas de desinformação e de uma ignorância artificial, principal característica da sociedade do algoritmo. O poder político nessa sociedade é exercido pelos que detém o controle das plataformas, das bigtechs. É contra elas que militamos, por isso a importância da sua regulamentação.



3-Com o advento do Chat GPT e do uso popular das diversas ferramentas de IA, as pessoas com acesso à internet e a dispositivos compatíveis, tem experimentado diversas possibilidades de uso. Como o professor enxerga essa popularização da tecnologia e como seus usos no mundo da política podem induzir os eleitores ao erro?

Essas inteligências artificiais não podem ser compreendidas separadamente das suas estruturas organizativas. As bigtechs tem interesses econômicos em fazer uma commodity parecer informação. Elas se popularizaram justamente por serem um produto à venda no mercado e portanto produz mais lucro na medida em que é mais consumido. as possibilidades de uso são em verdade uma commoditização dos usuários. O uso político dessas ferramentas estará condicionado, por todas essas razões, aos interesses econômicos dessas gigantes da tecnologia. Quanto ao induzimento ao erro decorrente da influência das tecnologias da informação e da comunicação, também não estamos diante de algo inédito. Nos detendo especificamente nas tecnologias digitais e sua crescente popularização a partir do final dos anos 2000, já podemos identificar vários casos que servem de exemplo. Em novembro de 2008, os Estados Unidos elegeram como Barack Obama quando mais da metade do eleitorado admitiu ter usado a internet para se engajar nas eleições. Três quartos dele declarou voto em Obama. Em dezembro de 2010, uma onda de protestos e de revoltas contra governos ditatoriais de países árabes do Oriente Médio e da África tiveram como gatilho as Redes Sociais. A Primavera Árabe disparada pelo Facebook transformou-se, logo depois, num outono árabe e, tempos depois, em um frio inverno árabe. O falso e artificial calor das ruas e a abstração das demandas impulsionadas pelos algoritmos mostraram-se ao seu final em pesadelo. Revoltas em países sem nenhuma tradição democrática foram deliberadamente impulsionadas por interesses econômicos financiados por bigtechs aliadas às democracia burguesas do Ocidente. No Brasil, o Junho de 2013 teve também seu estopim nas redes sociais, mas as suas consequências, 7 anos de golpe e governos ilegítimos, são sentidas na vida concreta de trabalhadores e trabalhadoras até os dias de hoje. O Brexit, a eleição de Trump e Jair Bolsonaro são todos casos típicos desses impulsionamentos algorítmicos. Os filmes “O dilema das redes” e “Privacidade Hackeada” ilustram muito bem essas distopias políticas. A indução ao erro (e o próprio “erro”) é, portanto, em síntese, uma commodity que resulta de interesses muito bem definidos: os do grande capital e sua nova “arminha de brinquedo”, as redes sociais.



4-Que medidas o Professor acredita que precisam ser tomadas por indivíduos, plataformas e pelo governo brasileiro para prevenir a disseminação de fake news?

Essa resposta é muito simples na minha concepção: a regulamentação das redes sociais.

Em relação à proteção de dados e da privacidade, a regulamentação pode assegurar que os dados pessoais dos usuários sejam protegidos, prevenindo abusos e uso indevido pelas bigtechs. Políticas institucionais regulatórias podem ajudar a combater a propagação de fake news, desinformação e teorias da conspiração, promovendo um ambiente de informação menos inseguro. Regras claras podem ajudar a prevenir e responder a crimes cibernéticos, como assédio, bullying, e outras formas de violência digital. Em especial, a regulamentação pode exigir maior transparência das plataformas em relação a como seus algoritmos funcionam e como decisões de moderação de conteúdo são tomadas. Com isso, pode-se estabelecer obrigações legais para que as redes sociais sejam responsáveis pelo conteúdo que circula em suas plataformas pode incentivar uma maior vigilância contra conteúdos prejudiciais. Como consequência, a regulamentação pode prevenir a manipulação eleitoral e a interferência em processos democráticos, mesmo em seu sentido burguês, garantindo que o debate político público online seja mais equilibrado e minimamente transparente.

 

5-O Professor tem realizado forte militância política na internet, pelo Youtube, Tik Tok, etc. Nos conte um pouco sobre como começou esse trabalho.

Pois então, atuo nas redes desde sempre. Tinha Orkut e usava ele politicamente. O canal do YouTube é de maio de 2008. Minha conta no Twitter é de janeiro de 2010, mesmo ano da conta do Facebook. Na pandemia, em meados de 2020, criei um perfil no Instagram e no TikTok. Nenhuma delas tem caráter apenas pessoal ou privado. Minha inspiração vem dos Velhos Renanos: toda atividade política deve ser pública ou não será. Nela, é fundamental a ocupação de todos os espaços: nas ruas, nas redes, nos tribunais, nos corredores, nos auditórios, em todas as instâncias da vida social. É fundamental também ter claro as possibilidades de cada espaço. Há momentos e meios mais adequados para formação política, para agitação e propaganda, para divulgação, para criação e para embates e confrontos. Nesse sentido, tenho usado o Youtube para essa militância. Até 2020 o canal servia como um repositório de conteúdo didático pedagógico, de apoio aos conteúdos das aulas. Desde lá, o Canal passou a ser alimentado com muito mais frequência e tem crescido bastante. São mais de vinte mil seguidores e o Chimarrão Maarxista, aos sábados e domingos pela manhã reúne mais de cem pessoas simultaneamente para algumas horas de conversa e formação ao vivo. Há todo tipo de público, desde gente sem qualquer formação acadêmica, passando pelo público universitário (professores e estudantes) até pessoas comuns da classe trabalhadora. Repito com frequência que não sei dizer o que essas pessoas aprendem por lá, mas, contrariamente, tenho a mais absoluta convicção do quanto eu mesmo aprendo nas trocas com o chat. Como forma de divulgação eu utilizo o Instagram, o perfil tem perto de 5 mil seguidores, e o TikTok com cerca de 117 mil seguidores. Parte substanciosa da militância política hoje ocorre nas redes sociais e por essa razão é fundamental ocuparmos esses espaços. A classe trabalhadora tem conta nessas redes e considero uma tarefa política oferecer conteúdo nessas plataformas, no sentido de disputar esses espaços.


6-Como entende a militância digital? Acredita que o campo progressista está atrasado em relação a isso, ou entende esse processo como algo natural de maturação da disputa política nas redes?

Creio que a primeira parte já esteja parcialmente respondida e concordo que o campo progressista ainda esteja atrasado nesse campo. Mais que isso, não só atrasados, mas também militando em um campo que é hostil às nossas concepções políticas. De forma geral, a esquerda sofre do que tenho denominado como “MorfoNecroFobia”, o medo de perder a velha forma. Uma espécie de ortodoxia mórbida, equivocada, tosca. Uma aversão a formas novas de militância, agitação e formação política. Um receio de que cedendo a inovações vá transformar-se em algo distinto do que se é essencialmente. Com isso, o campo da esquerda age de forma hostil a inovações, novidades e novas invenções. Essa morfonecrofobia acarreta anacronismos, hesitações e aversões a mudanças necessárias para o trabalho político. Em 2013, por exemplo, a direita se movia confortavelmente nas redes e nós, do campo progressista, sequer sabíamos o que significava shadowban, algoritmos e hashtags. Comemos poeira por anos por conta disso. Hoje, esse cenário tem mudado significativamente, até os mais conservadores têm se convencido da importância da virtualidade na vida política dos partidos, dos sindicatos, dos movimentos sociais e da militância individual. Ressalto também que a preocupação dos mais conservadores não é desprezível, é preciso cautela no trato com a relação entre política e virtualidade. As redes sociais fazem com que saibamos e nos preocupemos mais com coisas longe de nós  do que com problemas concretos do mundo à nossa volta. Como já mencionado anteriormente, as plataformas de redes sociais, as chamadas Big Thecs muitas vezes utilizam algoritmos que priorizam conteúdos que são mais propensos a gerar engajamento e assim a informação vira uma mercadoria. Isso pode levar à exibição de notícias ou eventos globais, muitas vezes mais sensacionalistas, em detrimento de notícias locais ou questões mais próximas. Os usuários podem escolher seguir contas e páginas que se concentram em assuntos globais, celebridades ou eventos distantes. Isso cria uma bolha informativa que destaca mais o que está acontecendo longe do que no entorno imediato. A natureza digital das redes sociais pode criar uma sensação de distância emocional em relação aos problemas locais. As pessoas podem ter a sensação que têm menos controle ou impacto sobre questões próximas, levando-as a se concentrar em questões globais que parecem mais urgentes ou que geram mais discussões, embora não sejam diretamente relevantes para suas vidas diárias. As consequências dessa distorção não são menos perigosas. Focar mais em problemas globais pode levar à desconexão com questões locais e com a comunidade imediata. Isso pode impactar a participação política direta e o envolvimento em problemas que afetam concretamente a qualidade de vida das pessoas. A atenção excessiva a eventos distantes pode levar a discussões superficiais sobre problemas complexos, sem a compreensão aprofundada das implicações locais desses problemas. Para mitigar essas consequências, penso que a única forma seja uma reconexão com as formas históricas de organização da classe trabalhadora: os partidos, os sindicatos, os movimentos sociais, as associações comunitárias, buscando ciência tanto dos problemas globais quanto das questões locais. E isso envolve esforço, organização, consciência crítica do mundo e do impacto das redes sociais nas nossas percepções e prioridades. Caso contrário, continuaremos vivendo uma realidade distorcida, cheia de curtidas, mas sem nenhum engajamento com o mundo real.


7-Para encerrar, como enxerga a atuação do governo Lula em relação a presença nas redes?

Muitos comparam o governo Lula a outros governos pretéritos da América Latinha, em especial o governo de Chaves, que se comunicava diretamente com a população. Acontece que o governo Lula não é um governo de esquerda, é um governo nitidamente social-democrata de cariz econômico keynesiano. Lula é um político popular, um dos maiores estadistas vivo do mundo, mas não é um líder populista e o próprio Lula parece saber disso. Governa a partir da institucionalidade ( das instituições burguesas de governança) e não a partir de um personalismo performático centrado na sua figura. É um democrata, no melhor sentido do termo. Aquele no qual se concebe a democracia dentro dos limites da legalidade, da impessoalidade e do pluralismo político. Nesse sentido, o uso das redes sociais, da tecnologia digital no seu governo atenta e restringe-se aos limites legais de sua utilização. Os críticos a esta posição são aqueles que defendem que o governo deve ter uma atuação mais incisiva no mundo virtual. Talvez por atribuírem a este mundo um peso, na vida social, que ele não tem. Mais do que isso, a vida dentro das redes sociais parece distorcer completamente a nossa percepção da realidade e isso, como mencionei na primeira resposta, é extremamente deletério para a democracia. A gente começa a saber mais e achar mais importante o que acontece nos outros estados do país e não na cidade em que a gente mora. A gente começa a se preocupar mais com a situação da Argentina do que com a associação do bairro em que a gente mora. Passamos a saber mais sobre os conflitos na Ucrânia e em Gaza do que sobre os problemas estruturais da cidade em que a gente mora. Sabemos quem é o presidente do Supremo e não sabemos o nome do presidente da nossa Câmara de vereadores. Talvez a razão disso seja justamente medir a vida social e concreta a partir daquela que vivemos dentro das redes sociais. O governo Lula claramente afasta-se desse tipo de distorção da realidade. A preocupação de Lula e de seu governo é com problemas concretos da situação concreta da classe trabalhadora. Um governo reformista, limitado, ordinário, mas diante do abismo do fascismo por que passamos recentemente no Brasil, isso já é, do ponto de vista imediato, suficientemente revolucionário.