terça-feira, 4 de outubro de 2022

TEOREMA DE COASE

TEOREMA DE COASE

Disciplina de Análise Econômica do Direito | Professor Flavio Pires

Acadêmico: Guilherme Howes

 

O presente trabalho responde à seguinte proposta:

 

(...) apresentação de um artigo relativo ao Teorema de Coase, onde o aluno deverá apresentar a parte histórica sobre o ilustre professor, bem como sua tese relativa a tal teorema.

INTRODUÇÃO – BREVE NOTA BIOGRÁFICA

No final de 1910, no bairro de Willesden, região suburbana de Londres nasce um menino de classe média baixa, filho de empregados do Royal Mail, os serviços postais ingleses. Ao que consta em breves nota biográficas (RODRIGUES JÚNIOR, 2013), o pequeno Ronald viveu ali uma infância relativamente tranquila, apesar de seu país ter vivido um papel central na 1ª Grande Guerra. Mesmo tendo deixado a escola aos 12 anos de idade seus dedicaram-se para que o filho não tivesse o mesmo destino. Desde cedo inseriram o filho na vida escolarizada. Mais tarde, os esforços para a formação do filho foram recompensados com uma bolsa de estudos para o Kilburn Grammar School. O garoto não tardou a se decidir sobre a vida universitária. Demoveu-se da História por não se julgar suficientemente apto em latim e da Química devido às suas dificuldades com a Matemática. Optou, então, pela Economia. Em 1929, coincidentemente mesmo ano da quebra do bolsa de Nova Yorque, um marco para o liberalismo econômico, o jovem Ronald ingressa na London School of Economics (LSE) para cursar bacharelado em comércio.

Ali teve seu primeiro contato com o Direito, quando começou a estudar os casos das cortes inglesas e a ler revistas jurídicas. Isso o levou a pensar seriamente em seguir a carreira jurídica, o que provavelmente viria a ocorrer caso, durante os estudos na LSE, não tivesse sido transformado por uma uma palestra proferida por Arnold Plant, que o apresentou à economia, à obra de Adam Smith e à ideia da mão invisível do mercado (VALÊNCIO, 2016).

A partir disso, na sequência de seus estudos, aproximou-se de Arnold Plant[1], o que lhe possibilitou conseguir uma importante bolsa de estudos, a Sir Ernest Cassel Travelling Scholarship, levando-o a estuda nos Estados Unidos entre os anos 1931-1932 na Universidade de Chicago. Na Universidade americana dirigiu seu foco para as intersecções entre o Direito, a Economia e a atividade empresarial. Retornou a Londres ao final da bolsa de estudos e formou-se pela LSE em 1932.

O início da carreira acadêmica formal se dá imediatamente como professor No ano de 1932, Coase dá início a sua carreira acadêmica formal como professor na Dundee School of Economics and Commerce, entre os anos de 1932 a 1934; posteriormente, leciona na University of Liverpool, entre os anos de 1934 a 1935. Em 1935, retorna para a London School of Economics, sua “alma mater” (RODRIGUES JÚNIOR, 2013). O curto período vivido nos Estados Unidos somados à meia década de atividade docente na Inglaterra fizeram o jovem economista amadurecer algumas noções sobre a relação entre a natureza jurídica das atividades econômicas. É nesse contexto que, em 1937, Coase publica seu primeiro texto influente.

Coase desembarcou nos Estados Unidos no auge da Grande Depressão [início dos anos 1930] e teve a oportunidade de aproveitar a ociosidade das pessoas e indagar sobre seus trabalhos, seus empregos e as razões pelas quais tomavam suas decisões. Como resultado destas investigações, de volta à Grã-Bretanha, escreveu o artigo "A Natureza da Firma” [em 1937] (VALÊNCIO, 2016).

Em 1939 começa a Segunda Grande Guerra e Coase torna-se assessor do Gabinete de Guerra britânico trabalhando no Escritório Central de Estatísticas. A Guerra finda em 1945, e o então primeiro-ministro Winston Churchill sai derrotado na Eleições Gerais que vieram logo depois. A vitória é de Clement Attlee, líder do partido trabalhista. Sem mais o cargo no governo, Coase reassume suas funções docentes na LSE. Em 1948 Ronald Coase passa um curto período nos EUA, mas retorna à Inglaterra onde conclui seu doutoramento em 1951 nesta mesma Universidade.

O cenário pós guerra faz emergir em seu país no início dos anos 1950, as bases do que ficou conhecido como welfare state, o estado de bem estar social, constituído pela “ascensão do papel Estado como empreendedor nos setores postais, telegráficos, de fornecimento de água e energia elétrica e de radiodifusão” (VALÊNCIO, 2016). Embora a LSE tenha oferecido a Coase a cátedra de Ciência Econômica, deixada por Friederich von Hayek em 1950, ele julga que “vários princípios socialistas estão sendo inseridos na economia britânica” (idem) e decide então emigrar para os Estados Unidos da América.

Nos Estados Unidos, praticamente reiniciou sua carreira, começando por dar aulas na inexpressiva Universidade de Buffalo, no estado de Nova York, onde permaneceu entre 1951 e 1959, dedicando seu tempo ao aprofundamento de suas pesquisas, motivo pelo qual rejeitou convites para cátedras em universidades de nome, tais como Harvard e Chicago. Ao final de seu período em Buffalo, foi pesquisador no Center for Advanced Studíes ín Behavíoral Scíences em Stanford, na Califórnia, uma instituição que, financiado pela Fundação Ford, buscava desenvolver pesquisas interdisciplinares sobre o comportamento humano com foco na Antropologia, na Economia, na Ciência Política, na Sociologia e na Psicologia, o que lhe deu base para a publicação de seu artigo "O Problema do Custo Social", no Journal of Law and Economícs, da prestigiada Universidade de Chicago (VALÊNCIO, 2016).

Assim, em 1960 o professor da Universidade da Virgínia (EUA), Ronald Harry Coase, aos 50 anos de idade, publicou o artigo que lhe catapultou ao prêmio Nobel em Ciências Econômicas na área de microeconomia (em 1991). O artigo “O problema do custo social” (COASE, 1960) foi paradigmático na área de legislação econômica e, por essa razão, uma inequívoca referência desde então. Importante ressalvar desde já que essa referência não se dá somente em função de seu alcance teórico, mas sobretudo pela sua aplicabilidade prática tanto no plano econômico quanto no plano jurídico, talvez mesmo na intersecção entre essas duas áreas do conhecimento.


Depois de uma longa, profícua e influente carreira como autor, professor e teórico, fundador mesmo do que hoje denomina-se de Análise Econômica do Direito, Coase faleceu aos 102 anos, na cidade de Chicago, em 2013, quando trabalhava em um livro sobre o poder econômico da China e do Vietnã. A influência do autor, no entanto, sobre os campos econômico e jurídico político seguem profundamente transcendem em muito a sua existência e sua produção teórica (G1, 2013).

Após essa breve nota biográfica, esse artigo tratará, em seu desenvolvimento, mais detidamente sobre uma compreensão do consagrado Teorema de Coase e na conclusão, uma breve ponderação sobre a aplicação desse paradigma sobre o atual contexto jurídico político brasileiro, nominadamente, a Análise Econômica do Direito, suas influências, possibilidades, limitações e consequências.

 

DESENVOLVIMENTO – O TEOREMA DE COASE

 

Em outubro de 1960, então professor de Economia na Universidade da Virgínia, Ronald Coase publica o artigo “O problema do custo social” (COASE, 1960) no periódico Journal of Law and Economics (EUA). Nele, partiu de bases teóricas tanto econômica quanto jurídicas para refletir sobre a questão dos direitos de propriedade. Em essência, o Teorema de Coase propõe que os fatores externos, as chamadas externalidades[2], não devam ser razões para que haja interferência estatal (dos governos em todas as suas formas) nas transações em que, excetuadas essas externalidades, deveriam ser mediadas privadamente. Nesses termos, a função da legislação, compreenda-se aqui os governos, seria apenas, embora isso não seja pouco, a de assegurar que as partes tenham garantidos os seus respectivos direitos. No limite, os direitos seriam tratados como relações econômicas em que ambas as partes obtenham benefícios, mutuamente vantajosos, nos termos do autor, “barganha mutuamente satisfatória” (COASE, 1960. p. 04).

Procurando explicar de forma mais simples, pode-se afirmar que para Coase, todo “problema”, todo litígio, toda “externalidade” possui uma “natureza recíproca” (idem, p.01). Coase pressupõe que toda relação jurídica, por mais particular que seja, insere-se num canário mais amplo, genericamente compreendido como um “sistema de preços” (ibidem). Todo aumento de custos de um lado implica em um aumento de custos em outro. Como em um sistema de êmbolos, toda relação jurídica é, de fundo, uma relação econômica, não necessariamente monetária. Observemos como o próprio autor apresenta a questão:

A abordagem tradicional tende a obscurecer a natureza da escolha que deve ser feita. A questão é comumente pensada na forma em que A inflige um dano em B e o que tem de ser decidido é: como devemos coibir A? Mas isso está errado. Estamos lidando com um problema de natureza recíproca. Para evitar o dano em B, dever-se-ia causar um dano em A. A verdadeira questão a ser respondida é: A deveria estar permitido a causar um dano em B ou deveria B estar permitido a causar um dano em A? O problema está em evitar o dano mais sério (COASE, 1960, p.01). Negritos meus.

Aufere-se do trecho citado, que um dano de A sobre B causará um custo, um “custo social”, um “dano”, como mencionado pelo autor no trecho citado. Já a contra ação de B sobre A, cobrando, por exemplo indenização, gerará outro custo social, outro “dano”. A questão, portanto, é saber qual a melhor forma de resolver a contenda ente A e B. E, resumindo, a melhor forma será aquela que gerar o menor custo social do sistema geral de preços. Pelas palavras do autor, aquela que conseguir evitar um “dano mais sério”.

Importante aqui, retornar à questão das externalidades, já mencionadas anteriormente, pois elas são centrais para a inteligibilidade do Teorema de Coase. Em sentido prático, as externalidades dizem respeito a tudo aquilo que o consumo privado ou a produção de um bem ou serviço traz em termos de efeito para toda a sociedade. A produção ou o consumo de um bem ou serviço poderá afetar a um terceiro que não está diretamente associado a essa produção ou a esse consumo desse bem ou serviço. As externalidades são valoradas pelas pessoas, mas não são passíveis de transações mercantis. Elas podem ser positivas ou negativas, isto é, o consumo ou a produção de um bem ou serviço pode trazer consequências benéficas ou nocivas.

Uma das bases da qual partiu Ronald Coase para construir o seu Teorema foi a obra de Arthur Cecil Pigou. Foi ele, na década de 1920 quem primeiro teorizou sobre essa questão. Segundo ele, as empresas perseguiam seus próprios interesses prescindindo da preocupação com os custos externos das suas atividades econômicas. Por outros termos, careciam as empresas de estímulos (econômicos financeiros) que as compelissem a internalizar os custos sociais das suas atividades. Uma vez que nem os produtores nem os consumidos dos bens e serviços levam em conta os custos externos (as consequências a toda a sociedade) das suas ações, todo esse conjunto de atividades não se dará dentro de um quadro de equilíbrio de mercado.

Coase, em seu artigo original, cita o estudo de Pigou:

O presente ensaio versa sobre as ações das firmas de negócios que geram efeitos danosos em outros. O exemplo padrão é aquele da fábrica cuja fumaça causa efeitos aos ocupantes de propriedade vizinhas. A análise econômica de uma situação como essa se dá, geralmente, nas bases da divergência entre o produto privado e o social da fábrica, na qual os economistas têm, largamente, seguido o tratamento dado por Pigou em The Economics of Welfare (COASE, 1960. p.01)

Na sequência, alerta que seu artigo vem no sentido contrário do autor citado. Para Pigou, o correto seria tornar o proprietário da fábrica responsável pelos danos causados. Para tanto, seria preciso a intervenção do estado, por exemplo, por meio da tributação. A figura mais característica dessa intervenção seria o chamado Imposto Pigouviano, cujo objetivo seria reduzir o consumo dos bens e serviços que geram externalidades, custos sociais negativos, e, por conseguinte, alcançar o almejado equilíbrio de mercado e, no limite, a eficiência econômica. Os governos também podem agir impondo limites para a geração de externalidades negativas (normas, cotas, regulações). Quando são impostos maiores alíquotas para produtores de cigarros ou bebidas, por exemplo, o que se tem, na prática, são tributos dessa matriz teórica.

Para Coase o caminho deveria ser o contrário, examinar o sistema como um todo e não apenas cada situação em particular, como em um êmbolo simples. O mais disruptivo da proposta de Coase, à diferença de toda economia jurídica de seu tempo, foi pensar uma mudança paradigmática: Coase não propunha mudanças NO sistema, mas mudança DE sistema, como se pode denotar na conclusão do seu artigo:

Seria claramente desejável se as únicas ações realizadas fossem aquelas nas quais o ganho gerado compensasse a perda sofrida. Mas, ao se escolher entre arranjos sociais, em um contexto no qual decisões individuais são tomadas, nós temos de ter em mente que a mudança no sistema existente, a qual conduzirá ao aperfeiçoamento em algumas decisões, pode muito bem levar à pioria em outras. Além disso, tem-se que levar em conta os custos envolvidos para operar os vários arranjos sociais (se seria o trabalho de um mercado ou de um departamento de governo), bem como os custos envolvidos na mudança para um novo sistema. Ao se projetar e escolher entre arranjos sociais, devemos considerar o efeito total. Isso, acima de tudo, é a mudança de abordagem, para a qual estou advogando (COASE, 1960. p. 36)

Por fim, importa ainda ressalvar que para a justa aplicabilidade da sua proposta teórica, no sentido da eficiência econômica, eram necessárias algumas condições. Se estivermos em um sistema com regras claras e bem definidas (inclusive contratos), com direitos de propriedade bem delimitados, um tipo ideal de sistema econômico liberal, e nele emergir uma externalidade negativa será muito mais conveniente e eficiente encontrar uma alocação de recursos a partir de uma negociação, um acordo, entre as partes. Como se vê, Coase avança sobre a proposta anterior de Pigou. Este, propunha que as possíveis soluções viessem de fora, dos tributos, por exemplo; já Coase, subverte completamente essa compreensão. A solução será sempre mais eficiente, no sentido da alocação de recursos, se advinda de um acordo privado, ente as próprias partes. Nesse sentido, pode afirmar que regras jurídicas e governamentais não afetam (necessariamente) a eficiência na alocação das externalidades, dos custos. E isso porque as partes sempre irão negociar as melhores soluções (o chamado Ótimo de Pareto[3]), ressalvando que, nesses casos, não haja custos de transação e que os direitos estejam claramente definidos.

Ora, a proposta ou princípio teórico implícito no Teorema de Ronald Coase soa como música aos ouvidos da Teoria Econômica do final dos 30 Anos Gloriosos, o ocaso do Walfare State municiado pelos princípios econômicos keynesianos. Escrito há mais de três décadas, o Artigo de Coase é coroado pelo Nobel de Economia, é a teoria econômica, que estabelece um novo paradigma jurídico, muito conveniente para seu tempo: o neoliberalismo. É disso que trataremos na conclusão do texto.

 

CONCLUSÃO – A TEORIA REFLETE AS IDEIAS DE SEU TEMPO

 

Quando vem à luz o texto clássico de Coase, o artigo “O problema do custo social” (COASE, 1960), o mundo era muito diferente do de hoje. Era um mundo que ainda reorganizava-se dos horrores das duas grandes Guerras. Nos países de capitalismo central vigiam políticas keynesianas que lhes propiciava bem estar social e, com ele, uma barreira que continha, nos planos político e econômico, algumas conquistas alcançadas pelos trabalhadores do outro lado da Cortina de Ferro (Oliveira, 2009. p. 243). Foi também um tempo no qual ocorreram os “processos de descolonização da África e da Ásia, sobretudo entre as décadas de 1960 e 1970, [trazendo] novos países para o cenário internacional” (SANTOS, 2017). Esse quadro em tela rebateu sobre a Europa e os Estados Unidos (embora não somente, mas sobretudo) a necessidade de responder teórica e juridicamente a essas mudanças geopolíticas.

Depois de três décadas de Walfare State, do chamado Estado de Bem estar social nas economias econômicas mais ricas do Globo, esse cenário geopolítico entra em crise. Dessa crise, surge o que denominamos hoje de “neoliberalismo”. Os exemplos mais acabados destas economias são os governos da Primeira Ministra da Grã-Bretanha, Margaret Thatcher (entre os anos 1979-1990); do presidente estadunidense Ronald Reagan (entre os anos 1981-1989), e do Chanceler alemão Helmut Kohl (entre os anos 1982-1990) – atravessando a reunificação da Alemanha em outubro de 1990. Depois disso “a onda se espalharia para toda a Europa e, mais tarde, para toda América Latina e para o mundo.

O neoliberalismo ganhava a dimensão de uma ideologia hegemônica em substituição à hegemonia keynesiana anterior” (GENNARI, 2009. p.323), a do Estado de bem estar social. Era um contexto geopolítico convulso com a “Queda do Muro de Berlin” em 1989, simbolizando o desprestígio das economias socialistas como alternativas políticas; e a ascensão de programas de privatizações de empresas estatais – tanto na Europa quanto na América. A ingerência destas fortes economias foi decisiva para as ações dos movimentos sociais, sindicais e trabalhistas. Evidenciam-se graves problemas econômicos e estruturais em países de economia pouco desenvolvida, restringem-se os investimentos das finanças públicas; e em contrapartida, os governos estimulam investimentos do setor privado, causando assim uma retração nas reformas sociais e uma perda no peso do setor público. Convém deixar claro que o “neoliberalismo”, não é o incremento de um Estado liberal, tal qual concebemos o liberalismo até 1929, mas a ação de um tipo de Estado mínimo, do ponto de vista da atenção às agendas sociais, porém militante e ativista no que se refere às relações com os mercados e com o capital.

Não é coincidência que o Teorema de Coase tenha sido concedido dois anos depois do Consenso de Washington. Era preciso uma teoria jurídico econômica que expressasse os anseios de um sistema ávido por conquistar espaço correndo o menor risco (econômico e jurídico) possível. Depois de aproximadamente meio século de economia keynesiana o liberalismo ressurge em todo seu esplendor: proteção da propriedade privada e o livre mercado com seu ideário de autoregulação. As superpotências tem um acúmulo de capital sem precedentes e buscam expandir suas fronteiras geográficas buscando lugares no mundo para implantar plantas produtivas. É sobre isso que recomenda o Consenso de Washington. Haveria uma corrida rumo à América, à Ásia e à África encampando regiões produtivas de matérias primas e privatizações de empresas públicas nacionais, que eram, nesses países, o braço empreendedor do estado. Era preciso, ainda desregulamentar o mercado e eliminar de barreira fiscais. Por outros termos, haveria um forte impacto nas economias locais com consequências muito profundas sobre a vida da população. Dessa forte expansão produtiva decorreria muitos impactos sobre os ecossistemas, afetando flora, fauna, meio ambiente e, em decorrência disso, muito provavelmente, uma avalanche de ações jurídicas requerendo direitos, indenizações, acordos judiciais, que inundariam os sistemas judiciários desses países.

É nesse cenário que o texto de Coase, escrito trinta e um anos antes recebe sua consagração com o Prêmio Nobel de Microeconomia. É a resposta teórica aparentemente mais conveniente (dos mercados) para os problemas materiais com que se defrontariam as economias neoliberais emergentes. É a resposta certa, do ponto de vista das economias ricas, para os problemas mais agudos das economias mais pobres. Problemas que as economias mais pobres jamais se defrontariam se as economias mais ricas não lhes tivessem chutado a escada (CHANG, 2004). O Consenso e o Teorema, paridos em um parto gêmeo, são o dog whistle para os mercados e economias locais buscarem soluções que prescindam do estado, do judiciário. Liberam essas instituições de algo que da sua natureza compulsoriamente social e política. Em qualquer outro contexto tal proposta soaria tão absurdo quanto de fato o é. Mas ali, não. Soou, em verdade, como a melhor proposta. E isso por uma simples razão, porque não foi uma proposta, foi uma imposição. Ideologia neoliberal apresentada, imposta como solução barata, eficiente e moralmente justificada pela sacralização do mercado.

É inequívoco concluir que, para Coase, e isso está claro em seu Teorema, o mercado traz as melhores soluções para os problemas que ele próprio cria. Coase usa o exemplo do caso judicial Sturges end Bridgman, em que um fabricante de doces barulhento é vizinho de um médico silencioso, que tem seu trabalho importunado por aquele, tal que ambos foram à justiça para determinar quem deveria se mudar. Aqui iremos prescindir de cálculo econométricos para explicar a solução do problema, apenas sinalizaremos que a solução mais adequada será sempre aquela buscada entre as partes, pressupondo aquelas condições apontadas anteriormente.

Transportando esse princípio econômico jurídico para as relações de mercado típicas de uma economia neoliberal, a mensagem é clara: socializar os custos, mas, obviamente, manter os lucros privados, afinal de contas, para o mercado isto é algo inquestionável. Quando algum agente do mercado é forçado pelos tentáculos do estado a indenizar outro agente a quem causou dano, isso, segundo a doutrina jurídica neoliberal, causa danos a toda sociedade, altera todo o sistema de preços, por isso pouco eficiente. Eficiência, aqui, é eufemismo para prejuízo privado, para responsabilidade fiscal, econômica, moral. Socializar os custos, algo concreto, em nome de um benefício social mais amplo, algo abstrato, é uma estratégia econômico jurídica tanto genial quanto perversa. O léxico do capital é nesse tipo de estratégia narrativa que obnubila os verdadeiros custos sociais em nome da acumulação do lucro privado.

Se em 1910 houvesse um curtume no subúrbio de Londres liberando substâncias venenosas que intoxicassem as crianças do local, muitos na Inglaterra teriam se preocupado em proteger seus habitantes dos crimes que muitas atividades industriais causam no seu entorno. Mas nesse tempo, entre 1880 e 1914 os tentáculos do domínio colonial britânico estavam sobre a Índia (incluindo o Paquistão e Bangladesh), a Birmânia, a Malásia, a Austrália e Nova Zelândia e arquipélagos do Pacífico, sobre o território africano entre o Cairo e o Cabo e ainda detinha concessões na China, no Canadá e em parte das Caraíbas. Era lá que os resíduos de suas atividades industriais, da segunda Revolução Industrial, intoxicavam impunemente seres humanos longe da metrópole.

Mas se Ronald Coase, aquele menino suburbano e pobre tivesse sido uma vítima desse sistema que mais tarde ajudou a proteger talvez não tivesse sobrevivido para criar a teoria que protegeu o sistema, edulcorando um sistema sombrio que esconde a inequivalência ente direitos desrespeitados e sua necessária responsabilização, entre o inequívoco direito de indenização por danos sofridos e a obrigação de indenizar por parte de quem o causou, independentemente do custo econômico que possa vir a acarretar. O pequeno Ronald, se fosse uma criança da colônia, ao invés do império, teria sentido na pele o fato de que o custo não é social, ele é pessoal, na prática a teoria é sempre um pouco diferente. Sua teoria pressupõe compreender que o custo deve ser como que diluído por toda sociedade, socializado. Sua teoria, seu Teorema, é o corolário da economia jurídica neoliberal, onde o custo é social, mundano, real; já o lucro, desse não se fala, pois é privado, intocado e sagrado.

BIBLIOGRAFIA

BUENO, Newton Paulo. Contribuições da Nova Economia Institucional à Pesquisa em História Econômica. EST. ECON., SÃO PAULO, V. 34, N. 4, P. 777-804, OUTUBRO-DEZEMBRO, 2004. https://m5.gs/Qkc4ak acesso em 19/09/2022

 

CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica.. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

 

COASE, Ronald Harry. O problema do custo social. THE JOURNAL OF LAW & ECONOMICS. Universidade da Virgínia, volume III/outubro, 1960. Disponível em <l1nq.com/UZY62> acesso em 20/09/2022.

 

G1. Ronald Coase, Nobel de Economia, morre aos 102 anos nos EUA. Site do G1, 2013. Disponível em: < http://glo.bo/3diqsVc>. Acesso em: 16/09/2022.

 

OLIVEIRA, Roberson de. GENNARI, Adilson Marques. História do Pensamento Econômico, Editora Saraiva, São Paulo: 2009.

 

RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Coase foi um dos pais da Análise Econômica do Direito. Conjur, setembro de 2013. Disponível em <l1nq.com/95R8M> acesso em 19/09/2022

 

SANTOS, João Júlio Gomes dos. SOCHACZEWSKI, Monique. História global: um empreendimento intelectual em curso. Tempo [online]. 2017, v. 23, n. 3 [Acessado 16 Setembro de 2022], pp. 483-502.

 

VALÊNCIO, Márcio Machado. A Firma, o Mercado e o Direito. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics, vol. 4, núm. 2, pp. 579-582, 2016.



[1] Arnold Plant (1898-1978), economista britânico, formado na London School of Economics, lecionou na Universidade da Cidade do Cabo e, posteriormente, na LSE. Sua obra clássica é "The Economic Theory concerning patents for inventions", publicada em 1934.

[2] Esse termo requer uma notação: embora praticamente todas as resenhas, análises, interpretações do referido Teorema tratem nomeadamente dessa questão dessa questão, esse termo não comparece no artigo original (COASE, 1960). A sua utilização parece resultar da recepção ulterior que a Análise Econômica do Direito fez da teoria original.

[3] O ótimo de Pareto é um estado em que os recursos estão alocados da forma mais eficiente possível. Também denomina-se Eficiência de Pareto o conceito desenvolvido pelo italiano Vilfredo Pareto, que define um estado de alocação de recursos em que é impossível realocá-los tal que a situação de qualquer participante seja melhorada sem piorar a situação individual de outro participante.


domingo, 11 de setembro de 2022

PAYADA MARXIANA



O que nos ensina Marx?
Nos ensina a duvidar
Nos ensina a pesquisar
De que é feita a essência 
Oculta sob a aparência
E de que é feito o concreto
Nos mostra o jeito correto
De como fazer ciência

Mas o que é a aparência?
É a expressão de um fenômeno
Apenas o prolegômeno
De algo bem mais profundo
É como aparece o mundo
Olhando à primeira vista
A realidade antevista
Por um processo fecundo

Que mais... Marx ensina?
Que o ser humano é central
E isso é ser radical 
Além de emancipador
É algo libertador
Em um sentido profundo
E este é o pano de fundo
De um mundo devastador

E por que é devastador?
Porque é um mundo desumano
Radicalmente mundano
Que reifica o trabalhador
É um processo esmagador
Que mortifica o trabalho
Transforma num rebotalho
O que em verdade é valor

Mas o que é esse valor?
É o que vem do trabalho
Como uma gota de orvalho
Do suor do proletariado
Do esforço em tempo contado
Que nunca para um minuto
Restando disso um produto
Que sempre nos foi tomado

E por que nos é tomado?
Porque nos falta consciência
Não nos falta competência
Quem sabe organização
Talvez conscientização 
Que é sempre um primeiro passo
Quando se busca o compasso
Rumo à revolução

Mas o que é revolução?
Transformação como tal
Subverter o capital
Num mundo onde a riqueza
Não seja só um privilégio
Não pareça um sortilégio
Ou coisa da natureza 

E o que é o capital?
Que não é coisa, é processo
Concentração em excesso 
De valor que se expropria
Produção de mais valia
De valor na mão de poucos
Mas irão chamar de loucos
Quem luta pela alforria 

E por que chamam de loucos?
Quem desse mundo discorda
Quem desse mundo se acorda
Sem conhecer os cantões
Ou as determinações
Que o faz ser o que é
Mas nós sabemos por que é
Que ocorrem revoluções

Se esse mundo aparente
Revelasse sua essência
Não faltaria consciência 
À classe trabalhadora
A realidade enganadora
Que a abstração nos revela
E que o concreto é uma tela
De aparência tentadora

Mas se toda aparência
Revelasse sua essência
Não precisaria de ciência 
Pra sua elucidação
Bastava observação
Da realidade hipotética
Por isso é que a dialética
É a forma da exposição

Todo começo é difícil
Em toda e qualquer ciência
Pois despertar a consciência 
E a lucidez que refuta
A mais valia absoluta
Do submundo burguês
É a faina do Galo Gaulês
Nos convocando pra luta

E como faremos isso?
Há um método que nos orienta?
O mesmo que impacienta
E nos empurra pra frente 
Nos guia materialmente
No longo curso da história
De forma contraditória 
E dialeticamente

Mas o que é contradição?
Nem sempre é contraditório 
É um vasta de um repertório
Que pressupõe dois momentos
Reunindo os dois eventos 
A um só tempo num só
E esse é o quiproquó 
Negação e complemento 

Mas é fácil compreendê-la
Não é uma teoria esma 
É a realidade mesma
Transposta para o papel
É como um verso em cordel
Que vai costurando o mundo
Mostrando a cada segundo
Que a vida não é ouropel 

Mas não é somente isso
Que ensina o Velho Barbudo
Também não ensina tudo
Pois é impossível fazê-lo
Desenrolar o novelo
Das teorias marxistas
É obra dos socialistas
Para a qual não tem modelo

Por isso tudo é que Marx
Não é só um autor correto
A dialética do concreto
É a arma do proletário
Farol em tempo brumário
Lamparina em noite escura
A explicação mais madura
Do viés revolucionário

Por isso é que ensino Marx
O mais humano mestres
O mais mítico terrestre
O mais mourisco urutago
Que provocou mais estragos 
Na muralha liberal
O Terror do Capital
O mais vermelho dos magos
 
Só digo mais uma coisa
Sobre esse velho renano
Que ensinou que o ser humano
É o centro mesmo da vida
E disso ninguém duvida
Pois contra um sistema exangue
Se nas veias tiver sangue
A revolução te convida

terça-feira, 26 de julho de 2022

Qual o próximo ato do golpe em marcha no Brasil?


O conhecido golpe de 1º de abril de 1964 não começou a ser arquitetado em março daquele ano, pelo contrário, se olharmos com atenção, podemos perceber que já há investidas em sua direção desde mais de uma década antes. Em outubro de 1950, Getúlio Vargas vence a eleição e volta ao governo pelo voto popular com 48,7%. O retorno de Getúlio ao poder desagradou profundamente as elites econômicas que acreditavam ter se livrado de um governante com forte apoio popular, eleito por um partido trabalhista, o PTB, e consagrado por uma política de aguda digestão moral da pobreza.

Ouve-se dizer que Lacerda mencionava que Getúlio não podia sequer ser candidato. Se fosse, não poderia ser eleito, se o fosse, não poderia tomar posse, se tomasse não poderia governar. E essa foi mesmo a tônica da eleição, da posse e dos primeiros anos do governo de Getúlio. Nunca teve sossego, o golpe sempre esteve à espreita. A expressão “mar de lama” era largamente utilizada pelos opositores do presidente Getúlio Vargas para designar a corrupção que teria caracterizado seu segundo governo. As tentativas de derrubá-lo nunca cessaram. Em agosto de 1954 o velho caudilho ofereceu seu corpo suicidado e martirizado para deter o golpe então em curso. Adiou. Diante daquela comoção popular não havia clima político para concretizar um golpe contra a classe trabalhadora.

Mais adiante, entre 25 de agosto e 7 de setembro de 1961, Leonel Brizola comanda a Campanha da Legalidade contra uma tentativa dos ministros das Forças Armadas de veto à posse de Jango, automática e constitucional, decorrente de uma carta de renúncia de Jânio Quadros, provavelmente escrita depois de uma forte bebedeira. A Campanha teve sucesso e mais uma vez a concretização do golpe em curso foi adiado.

Assim, ao tentarmos compreender o “Golpe de 64” não podemos prescindir de um escrutínio minucioso de suas distintas “fases” (anteriores e posteriores) que percorrem um tempo histórico de aproximadamente 18 anos: eleição democrática de Getúlio em 1950, seu suicídio em 1954, a Campanha da Legalidade em 1961, o Golpe propriamente dito em 1964 e seu recrudescimento, com o Ato Institucional nº 05, em dezembro de 1968.

Creio que, pelas mesmas razões, para compreendermos o golpe em marcha no Brasil nesses meados de 2022 devemos retroceder até a eleição de Dilma Rousseff em outubro de 2010. Para que cada fase dessa análise ganhe contornos conceituais tomo de inspiração a criativa nomenclatura criada pelo jornalista conservador Elio Gaspari ao nomear as distintas fases da Ditadura Militar-Empresarial decorrente do golpe de 1964: “A ditadura envergonhada”, enquanto ela não se assumia como tal; “A ditadura escancarada”, sua fase mais brutal; “A ditadura derrotada” pelas eleições de 1974; “A ditadura encurralada” pela abertura política e “A ditadura acabada” pelo governo de transição do general Figueiredo entre 1978 e 1985.

Chamo de “golpe encapsulado” o tempo decorrente entre a primeira eleição de Dilma e os movimentos de junho de 2013. A partir daí denomino de “golpe edulcorado” o interstício temporal que pinta o golpe com as cores falsamente benévolas da revolução colorida em curso no Brasil. Em 2016, com a derrubada de Dilma, num golpe sórdido, midiático, parlamentar, misógino, “com Supremo e com tudo”, o impeachment toma os contornos de um “golpe legalizado”. Dois anos depois, com a eleição ilegítima de um títere dos valores sociais mais deletérios, um espantalho miliciano com cérebro de chimpanzé, tem-se o “golpe institucionalizado” em toda sua plenitude. Quem não for homem, branco, social e economicamente bem situado compreende com muita facilidade qual o sentido da eficácia do funcionamento das instituições no transcurso desse golpe atualmente em marcha.

No instante mesmo da eleição de Dilma Rousseff à sucessão dos dois governos de Lula iniciou-se o “golpe em câmera lenta”, nas palavras de Vladimir Safatle. Obviamente sempre houve conspirações contra um governo que a despeito dos ganhos financeiros da burguesia, sempre demonstrou uma aguda sensibilidade com as camadas mais pobres da sociedade, com os trabalhadores, com a educação, com a democracia, com a institucionalidade. No entanto, como alerta Alysson Mascaro em “Crise e Golpe”, o golpe foi quantitativo e não qualitativo na medida em que se trata materialmente de um “rearranjo no seio da concorrência entre frações do capital internas e internacionais” sumariamente compreendido como “um golpe de classe burguês contra as classes trabalhadoras” (MASCARO, 2018. p. 91). Explico. De conjunto, as mesmas forças que atuavam nos interstícios do poder continuaram sua atuação. O que alterou substancialmente foi a relação entre capital e trabalho, entre burguesias (mercado financeiro, agronegócio, ramo industrial) e a classe trabalhadora. É um modelo de golpe que “mais atualiza suas possibilidades que propriamente altera suas bases” (ibidem). Em resumo, o que mudou não foi a qualidade do regime político econômico, mas sim, a quantidade de mais valor da força de trabalho que as burguesias extraem da classe trabalhadora, via reformas trabalhista e previdenciária, austericído fiscal e corrupção normativa, isto é, normatizada por aparatos legais antidemocráticos formalmente legais e essencialmente corruptos, pois corrompem o pacto burguês democrático. 

O golpe ali já está latente, mas encapsulado, portanto, não visível! Só o tempo decorrido desde então nos permite vê-lo com nitidez. Havia já desde então um golpe em curso no Brasil. No entanto, ele eclode de seu casulo com as manifestações de junho de 2013. Ali o golpe aparece para o público em todo seu esplendor, mas edulcorado com as tonalidades benévolas de uma revolução colorida pretensamente espontânea e apartidária, “pelo Brasil”, sem bandeiras. Ora, sou de uma geração que lutou para tê-las, tenho 51 anos e vivenciei na escola os anos derradeiros da Ditadura civil militar, quando não eram possíveis os direitos políticos. Portanto, sempre entendi como temerárias as ações e os discursos da narrativa chauvinista, ufanista e messiânica dos movimentos iniciados naquele junho de 2013.

Foram precisos três anos de maturação para que o golpe edulcorado pela revolução colorida incorporasse um cariz de legalidade. O gângster que presidia a Câmara soube identificar o momento mais favorável para pautar a votação do impeachment da presidenta Dilma, eleita democraticamente e derrubada por um golpe legalizado pelas instituições que sempre funcionaram, se bem que somente em favor de quem lucra com a mais valia extraída da classe trabalhadora. É simbólico que o mentor do golpe, e seu principal beneficiário, assumindo o cargo da presidência, seja um consagrado professor de Direito Constitucional. O golpe está então legalizado, é saudado pelas classes dominantes, pela mídia burguesa, venal, de cativeiro, pode-se então chama-lo de impeachment. Um crime perfeito!

No entanto, o serviço ainda não está acabado, é preciso ainda institucionalizá-lo, recolocar a democracia nos trilhos, deslizar de um governo de transição, para um governo que tenha votos para chamar de seus. O golpe institucionaliza-se em 2018 com a eleição de alguém disposto a implantar a agenda ultraliberal, internamente tocada pela lúmpem burguesia nacional, associada e à serviço do capital internacional. Reconheçamos que não foi uma tarefa simples. Para tanto, as classes dominantes, à custa do sequestro das Instituições, prenderam inconstitucionalmente o candidato que as pesquisas sinalizavam na época como vitorioso, impediram-no até mesmo de falar, com medo de que sua voz, rouca e perigosa, reverberasse nos ouvidos da classe trabalhadora fazendo-a votar no candidato comprometido com interesses populares. O juiz responsável pela prisão, recebeu, como prêmio, o cargo de Super Ministro da Justiça no governo do candidato beneficiado com seus julgamentos espúrios. Tanto o ex-juiz, como suas sentenças e o próprio processo, tempos depois, foram considerados suspeitos e sem validade jurídica pela Suprema Corte brasileira, decisões essas confirmadas por tribunais internacionais de justiça.

Não houve eleição em 2018. O que ocorreu foi um protocolo eleitoral chancelado pelo STE a despeito de suas ilegalidades. Nesse sentido, somos governados atualmente por um governo sem nenhuma legitimidade, decorrente de um processo eleitoral eivado de ilegalidades. E tudo isso dentro do campo institucional. É por isso que denomino essa fase de golpe institucionalizado. No atual momento da sociedade brasileira, muito se tem discutido se as Instituições estão funcionando no sentido de garantir a democracia ou se estão capitulando frente a uma investida contra as garantias democráticas, mesmo que formais e burguesas.

Alerto aqui que muitos intelectuais tem a impressão de que elas estão funcionando porque eles não figuram entre uma das quase um milhão de vítimas da Covid-19; porque não são profissionais da saúde que trabalham sem EPI nos postos de saúde pelo Brasil, porque suas avós ou netas não moram num acampamento do MST, ou numa aldeia indígena, achacados pela retórica de ódio do governo; porque não são professores da escola básica obrigados à precariedade do ensino remoto ou ao temerário retorno da voltas às aulas presenciais; porque seus filhos ou filhas não são balconistas no setor comerciário severamente expostos às perdas de direitos trabalhistas, porque não ficaram presos sem provas por 580 dias, porque não foi seu neto ou neta que morreu sem ter recebido de volta o tablet tomado por um juiz parcial e corrupto; porque não depende do auxílio emergencial para se (sub) alimentar, porque não foi condenado por “atos indeterminados”. Do patamar de onde esses intelectuais veem o mundo as Instituições parecem mesmo estar funcionando. Falo “parecem” à luz da história, em outros tempos as sociedades demoraram em perceber a corrosão das Instituições democráticas, e, quando perceberam, já era tarde demais! A Itália, por exemplo, levou 5 anos para imergir no fascismo; a Alemanha mergulhou nele em apenas 5 meses. E essa diferença se deu porque a crise nos anos 30 era mais aguda do que na década anterior. Hoje, estamos imersos numa aguda crise humanitária, econômica e política. A profundeza do nosso abismo é que ditará o ritmo que nos levará à próxima fase do golpe em curso, ao fascismo aberto.

As Instituições pararam de funcionar desde muito tempo! Pontualmente, quando um deputado do “baixo clero” elogiou um torturador, facínora e abjeto, e não saiu daquela Casa preso. As Instituições hoje apenas reagem, tentando se reerguer das ruínas que se tornaram. O que os intelectuais burgueses chamam de funcionamento pleno das Instituições democráticas, em verdade, não se trata da ação delas cumprindo suas prerrogativas, de suas atribuições (justiça, saúde, educação, segurança), o que elas fazem é política! E o fazem em favor daqueles que as aparelharam ao seu favor e benefício. Assim, do ponto de vista da democracia, elas sobrevivem artificialmente, como se estivessem sufocadas pelo golpe em marcha.

Diante disso, uma pergunta: qual o próximo ato desse golpe em marcha no Brasil? Temos a oportunidade de interrompê-lo em 2 de outubro elegendo Lula no primeiro turno. A eleição de Lula em 2 de outubro será um primeiro degrau de uma longa escadaria que tentaremos subir nos próximos anos. Um virtual e possível próximo governo Lula terá novamente a tarefa de retirar o Brasil do mapa da fome. Possibilitar à classe trabalhadora sua reorganização, promover o reascenso das massas, autônomas e emancipadas para decidirem os rumos da política econômica. Caso contrário, mergulharemos num abismo sem fim cuja perspectiva é imprevisível. Mesmo em um possível segundo turno há o perigo de uma escalada de violência civil sem precedentes. Se for isso, não faço ideia de qual verbo no particípio passado nominará o próximo ato do golpe em curso. Mas a eleição de Lula no próximo 2 de outubro certamente imporá um intercurso ao golpe em marcha, e aí, talvez, poderemos denominar o próximo ato de golpe interrompido, cancelado, derrubado. Para marcar posição, precisamos antes estar vivos, e nossa vida, nesse momento, depende da eleição de Lula em primeiro turno no próximo dia 2 de outubro.

Publicado (com algumas alterações) na Revista Úrsula em outubro de 2022

https://revistaursula.com.br/politica/como-interromper-o-golpe-em-marcha-no-brasil/

sexta-feira, 22 de abril de 2022

A burguesia se considera a única usuária legítima da prática e da retórica da violência | Quando ameaçada envia seus prepostos

 No dia 13 de abril postei esse vídeo no FaceBook. Depois de ficar 40 minutos na parada de ônibus, quando desci no centro gravei esse vídeo


No dia seguinte, recebi essa mensagem direta de uma rádio local, através de um preposto, tomando satisfações sobre o conteúdo


Transcrevo abaixo o texto da mensagem

Bom dia professor.
Me chamo Rafael Menezes, sou repórter do Grupo Diário. Vimos o seu vídeo sobre as condições do transporte público.
Gostaríamos saber sua opinião por ser um professor universitário a respeito do vídeo publicado nas redes sociais onde é citado que a classe trabalhadora e estudante devem atear fogo nos ônibus. Justamente essa parte da fala que tem gerado repercussão e polêmica.
O senhor sendo um professor universitário acredita que essa seja a alternativa para a melhoria do transporte público?
Se possível nos encaminhar um texto com sua opinião e as respostas para o fato citado.

Seu nome completo, idade e ocupação?
Abraços e tenha um bom dia.

Minha resposta horas depois

olá Rafael, respondendo sua questão, é importante começar ressaltando que o fogo possui uma simbologia histórica marcante. Ele é um "simbologismo" político claro. Quem não lembra da Bastilha em chamas, imagem icônica que marca o início da Revolução Francesa, dia 14 de julho de 1889, quando a burguesia liberal põe fogo no símbolo do poder nobreza e clero? Quem também nunca estudou que as mulheres, consideradas impuras e perigosas eram incendiadas pela Igreja Católica, as chamadas Bruxas, como símbolo de seu poder e dominação sobre o conhecimento e controle do corpo feminino. Há também uma dito, um chavão, corrente nos meios "antifas", quando dizem "fogo nos fascistas", no sentido de enfrentá-los, combatê-los, seja com argumentos, seja mesmo na contenção física da violência do fascismo. Por tudo isso, sim, o "fogo" é um símbolo político que compõem uma retórica de luta e enfrentamento, por vezes real, por outras simbólica, do direito de resistir contra qualquer forma de opressão. Nesse sentido, entendo que o transporte público de Santa Maria, do qual sou usuário, é de péssima qualidade por basicamente duas razões: de um lado o total controle de setores do empresariado logístico sobre o setor. Um setor composto por burocratas que, no geral, jamais tomou um coletivo. Faltam linhas, as que existem estão sucateadas, não há respeito com os usuários, basicamente, trabalhadores e estudantes; por outro, a falta de organização da classe trabalhadora e do meio estudantil, historicamente enfraquecidos pela despolitização de suas formas organizativas, o Movimento Estudantil, os Sindicatos, os Movimentos Sociais, enfim, a sociedade civil organizada. Por todas essas razões, reafirmo que enquanto essas formas organizativas não retomarem suas agendas de luta, em especial pelo transporte público e de qualidade, o empresariado continuará oferecendo um serviço que mais se parece com transporte de "carga viva". Enquanto não houver reascenso da lutas populares, enquanto os estudantes e os trabalhadores organizados não puserem "fogo na situação" continuaremos sem haver contraponto aos setores ricos que governam Santa Maria.

Reafirmo, parecem estar provocando desconforto intencionalmente para constantemente aumentar o valor da passagem sem nenhuma melhoria no serviço ou sequer manter as obrigações já têm.

Um desses dirigentes do comércio e da indústria local nunca tomou um ônibus na vida, nunca voltou pra casa tarde da noite precisando do transporte coletivo ou do serviço público, suas mentes brilhantes só vislumbram os lucro$ que auferem transportando seres humanos como se fossem gado, gado humano. 

Eles sabem o que fazem. Transformam gente em gado porque é de gado que eles precisam para votar neles.

Um grande abraço, satisfação em contribuir.

Guilherme Howes

51 anos

Professor de Teoria Social e Ciência Política

at.te,

Conclusão: A burguesia se considera a única usuária legítima da prática e da retórica da violência | Quando ameaçada envia seus prepostos. 

A lumpemburguesia local, face mais lacaia e mais covarde do rebotalho do empresariado regional, é que detém o controle do transporte público local. Maximizam lucros humilhando a classe trabalhadora, se manterão enquanto os estudantes e os trabalhadores não reagirem à altura!

Nunca mais responderam...

Na semana seguinte, mais uma patacoada do transporte de carga viva no transporte público de Santa Maria



domingo, 6 de fevereiro de 2022

Considerações sobre a entrevista de Jones Manoel à Globo News. Por Regis Marat

Régis Marat: Jones Manoel é uma das maiores surpresas que surgiu na esquerda brasileira nos últimos tempos, porém suas teses e suas ideias nao são nada surpreendentes. Na entrevista citada  concordamos com o rapaz que o racismo é constitutivo e é insuperável a partir da lógica do capital. Porém, o jovem comunista, na mesma entrevista,  reproduz as teses do velho PCB como no caso do seu stalinismo requentado ou o politicismo da jovem esquerda não marxista, como por exemplo a vazia e abstrata tese da frente de esquerda. No primeiro exemplo, ele propõe um socialismo que contemple as “particularidades”, como se existisse um socialismo que não as contemplasse, é a mesma aberração do PSOL que propugna um socialismo com liberdade, como se existisse um socialismo sem liberdade. Aliás, tanto Jones quanto o PSOL se referem a monstruosidade do Leste Europeu; para o primeiro faltou apenas incluir as minorias, já para o partido do Boulos e cia, faltou apenas uma pitada de liberdade no socialismo realmente existente. 

No que diz respeito a frente de esquerda, o jovem comunista adota a velha tese do PCB que entendia essa questão como um aglomerado de partidos e organizações que se autointitulam no mesmo campo, sem considerar ou desconhecendo que uma frente dessa natureza deve ocorrer em torno um programa econômico alternativo que possa unificar essas agremiações ou personificações que representem a mesma perspectiva, e não apenas a justaposição de organizações políticas de esquerda. 

Voluntarista e politicista, Jones ainda tem como referência a falácia do stalinismo ou sua versão mais degradada que é o maoismo, ambas ideologias fracassadas e produto da barbárie do capital coletivo não social que emergiu do malogro da Revolução Russa de 1917 e da Revolução Chinesa de 1949. Jones, ao pensar no socialismo vasculha o lixão da história e recicla o passado como alternativa para o presente, se esquecendo da velha tese marxiana que diz que devemos arrancar poesia do futuro. 

Em um texto no Blog da Boitempo, o jovem comunista do PCB, numa clara defesa do obreirismo e do anti-intelectualismo que caracteriza a esquerda brasileira em geral,  acusou Chasin, Meszaros e Lukacs de serem teoricistas, esquecendo-se o mancebo comunista que o rigor teórico intelectual entre nós não é uma opção. Se esses autores citados por Jones são teoricistas pelo rigor que imprimem em suas análises, fico  imaginando o que ele não diria de Marx quando escreveu o capital!!!

Jones é herdeiro do marxismo epistemológizante althusseriano que imputa elementos estranhos ao pensamento de Marx  provenientes do campo da psicanálise, principalmente do irracionalismo lacaniano. Isso sem contar o esquartejamento epistemológico que Althusser faz de Marx com seu anti-humanismo que tem como fonte o pensador alemão Heidegger, filósofo declaradamente nazista.

Se o jovem e promissor Jones Manoel vem chamando a atenção da  grande mídia é porque no campo da verdadeira esquerda não é grande coisa. Mas penso que como todo grande marxista, Jones ainda tem chance de perceber que as proposições teóricas marxianas são proposições ontológicas e não gnosio-epistemicas como quer  a maioria dos marxistas. Assim O jovem Jones Manoel poderá organizar a cabeça pelo mundo e não o mundo pela cabeça como vem fazendo are aqui.


Regis Marat