terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Marionete sem cordas

Thomas Mann publicou em 1924 um dos romances mais influentes da literatura mundial do século XX. “A montanha mágica” inspira-se no tempo que o autor acompanhou, ainda jovem, o tratamento de sua esposa Katharina, em um sanatório, em Davos, nos Alpes suíços. É exatamente nesse mesmo lugar que nos finais de janeiro de cada ano personalidades de todo o mundo se reúnem para debater as questões globais mais prementes. É lá que está nesta semana o nosso presidente da república. A saída do país nesse momento tem suas razões.
Desde que assumiu o cargo, há menos de um mês, muito tem-se falado das ações do novo governo. Não parece haver precedentes de um início de gestão tão insólito e tumultuado. Mas é apenas aparência, removendo um pouco as gavetas da nossa memória encontramos, na história recente, inícios de governos muito parecidos com este que está em curso. Em “Brasil: uma biografia” a historiadora Heloísa Starling e a antropóloga Lilia Schwarcz contam que logo que assumiu a presidência, Jânio deixou claro que se saía melhor disputando votos que administrando o país. Foi um mestre nas patacoadas! Criou uniforme para o serviço público, em estilo safári, e mandou publicar no Diário Oficial. Tinha a cor bege e logo foi apelidado de “pijânio”. Vetou corridas de cavalo e rinhas de galo e para completar colocou dois burros para pastar a grama verde do Palácio da Alvorada. Como se não bastasse, preocupado com o sol forte do cerrado brasiliense, mandou colocar chapéus de palha nos animais!
Collor é outro exemplo: embora também folclórico sua marca foi o impacto. Depois de uma campanha suja apoiada pelo empresariado e pala mídia, assumiu, e, no dia seguinte reuniu a equipe econômica e anunciou à imprensa um severo pacote de reformas. Bloqueava, da noite para o dia, o dinheiro das contas correntes, aplicações financeiras e cadernetas de poupança. Em campanha, alardeou que seriam os adversários que fariam isso. Era um mentiroso, como se soube depois. Congelou salários, reajustou tarifas de serviços públicos, e instaurou pânico entre a população. Não foi um começo tranquilo!
Já o atual governo não deixou por menos. Começou tão insólito quanto tumultuado. O presidente age como um autômato, uma marionete sem cordas no centro de um picadeiro em que o elenco em sua volta não é senão um esboço de sua própria mediocridade, mas é preciso considera-lo com seriedade. Ele se parece muito com Jânio e com Collor: compartilham o mesmo senso de política como espetáculo, embora por ela demonstrem desprezo; desdém pelas instituições, mas sem elas é inviável a democracia. Nenhum dos dois primeiros concluiu seu mandato. E nesta semana, assim que retornar de Davos, o chefe da nação terá muito a explicar a respeito de seu início de governo, sob pena de ter o mesmo desfecho. Talvez perceba, em tempo, que o sanatório que inspirou Thomas Mann nos Alpes é a metáfora exata do que seu governo transformou o país.

Publicado no Jornal Diário de Santa Maria em 23/01/2019
https://diariosm.com.br/colunistas/sociedade/marionete-sem-cordas-1.2119271

sábado, 19 de janeiro de 2019

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sábado, 12 de janeiro de 2019

Sobre o "lixo marxista" (texto do profº Vladimir Safatle)

Imagem relacionadaFolha de São Paulo / 05 de janeiro de 2019

Vladimir Safatle (sempre ele), na minha modesta opinião, o mais lúcido intelectual brasileiro hoje

Nós, o lixo marxista

Tomou posse o primeiro governo eleito de extrema-direita do Brasil. Com ele, não há negociação alguma possível.  E nem ele procura alguma forma de negociação com aqueles que não comungam seus credos, que não louvam seus torturadores e que não acham que “é duro ser patrão no Brasil”. Não há razão alguma para se enganar e acreditar em certa normalidade: a lógica que irá imperar daqui para frente é a da guerra. Pois isto não é um governo, isto é um ataque. 
Já o discurso do sr. Jair Messias foi claro. Questões econômicas e sociais estiveram em segundo plano enquanto as duas palavras mais citadas eram “deus” e “ideologia”. Deus estava lá, ao que parece, para nos livrar da “crise moral” em que a república brasileira se encontra. Isto, diga-se de passagem, há de se conceder ao sr. Jair Messias: vivemos  mesmo uma crise moral profunda. Ela está instalada no cerne do governo brasileiro. Pois como justificar um governo cujo ministro da justiça ganhou seu cargo como prêmio por ter colocado o candidato mais popular a presidente nas grades e pavimentado a estrada para a vitória de seu atual chefe? Como descrever um governo que já nasce com ministros indiciados e um réu confesso que se escarnece da população brasileira ao afirmar “já ter se acertado com Deus” a respeito de seus malfeitos? Como descrever um presidente cujo motorista foi pego em operações financeiras absolutamente suspeitas e se negado duas vezes a comparecer à justiça sem sequer ser objeto de condução coercitiva? 
Mas o destaque evidente é a mais nova luta do estado brasileiro contra a “ideologia”. Enquanto uma de suas primeiras medidas governamentais foi diminuir o valor previsto do aumento do salário mínimo, mostrando assim seu desprezo pela sorte das classes economicamente mais vulneráveis, o sr. Jair Messias convocava seus acólitos à grande cruzada nacional para lutar contra o socialismo, retirar das escolas o lixo marxista e impedir que a bandeira brasileira seja pintada de vermelho. 
Alguns podem achar tudo isto parte de um delírio que normalmente acomete  leitores de Olavo de Carvalho. Mas gostaria de dizer que, de certa forma, o atual ocupante da presidência tem razão. Sua sobrevivência depende da luta contínua contra a única alternativa que nunca foi tentada neste país, que nunca se acomodou nem às regressões autoritárias que nos assolam, nem aos arranjos populistas que marcaram nossa história. Pois ninguém aqui tentou expropriar meios de produção para entregá-los à autogestão dos próprios trabalhadores, ninguém procurou desconstituir o Estado para passar suas atribuições a conselhos populares, aprofundando a democracia direta, e nem levou ao extremo necessário a luta pelo igualitarismo econômico e social que permite à todos os sujeitos exercerem sua liberdade sem serem servos da miséria e da espoliação econômica. 
Ou seja, a verdadeira latência da sociedade brasileira que poderia emergir em situações de crise como esta é um socialismo real e sem medo de dizer seu nome. A sociedade brasileira tem o direito de conhece-lo, de pensar a seu respeito, de tentar aquilo que ela nunca viu sequer a sombra. Ela tem direito de inventa-lo a partir da crítica e da autocrítica do passado. Mas contra isto é necessário calar todos os que não se contentam com a vida tal como ela nos é imposta por essa associação macabra de militares, pastores, latifundiários, financistas, banqueiros, iluminados por deus, escroques que tomaram de assalto o governo e que sempre estiveram dando as cartas, de forma direta ou indireta.
Assim, quando Jair Messias fala que irá lutar contra o lixo marxista nas escolas, nas artes, nas universidades, entendam que esta luta será a mais importante de seu governo, a única condição de sua sobrevivência. Pois ele sabe de onde pode vir seu fim depois de ficar evidente o tipo de catástrofe econômica e social para a qual ele está nos levando.