quarta-feira, 31 de julho de 2024

Entrevista para a Revista Úrsula

 1-O hábito de mentir e divulgar notícias falsas não é um fenômeno novo, mas, na contemporaneidade da era digital, ele foi turbinado por um aspecto muito importante, a velocidade de compartilhamento. Segundo pesquisa do Instituto Idea, a cada quatro mensagens recebidas no whatsapp e Telegram, uma é considerada falsa ou duvidosa, com conteúdos distorcidos ou falsos. A partir dessa informação, o professor poderia definir o que são Fake News dentro da atual conjuntura?

De fato, a mentira e a divulgação de notícias falsas não é uma novidade, no entanto, na contemporaneidade, tudo isso ganhou uma nova dinâmica. Trabalhei essa questão na resenha que publiquei sobre o livro do Han (HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson, Editora Vozes, Petrópolis, RJ: 2002) disponível em <https://revista.fdsm.edu.br/index.php/revistafdsm/issue/view/37/45> onde o autor diferencia a mentira da fakenews de forma clara e necessária. Em resumidas contas, na atual conjuntura vivemos uma crise da verdade, tal como a conhecíamos. Essa crise consiste na perda da crença que tínhamos na facticidade. Nessa espécie de vazio, de   um   novo   niilismo   do   século  XXI,  passam  a  circular  informações  totalmente desacopladas da realidade, formando um espaço hiper-real, como diz Han. Aqui, é fundamental desambiguar os termos como mentira e fake news, facticidade e realidade. è fundamental que fique claro que as fake news não são uma mentira..  De  forma  simples  pode-se  entender  a  mentira com algo irreal, que não acontece ou não aconteceu. Já as “fake news” não  consistem simplesmente numa mentira porque elas forjam um novo tipo de realidade, não factual, mas  hiper-real.  Han afirma que o novo niilismo não implica que a mentira foi feita verdade ou que a verdade foi difamada como mentira. Em vez disso, a própria diferenciação entre verdade e mentira é que foi anulada e dentro dessa compreensão, quem inventa uma nova realidade, não mente, em sentido habitual, mas cria um para realidade, uma hiper realidade, uma fakenews, cuja principal função não é narrar a factualidade do mundo mas produzir efeitos nos ânimos e ações dos indivíduos. A função da fakenews não é pretérita, de narrar falsamente o acontecido, mas futura e prospectiva, de mobilizar corações e mentes a agir em função do que preferem acreditar que é verdade.


2-Aprofundando um pouco nesse tema e pensando nas eleições municipais que se aproximam, de que maneira as fake news podem influenciar os resultados? Poderia trazer algum exemplo de eleições passadas?

Tratei pontualmente disso em um texto de janeiro de 2020, também ano de eleições municipais. As fakenews não comunicam a todos, indiscriminadamente, de forma livre e aberta. São mensagens cifradas, direcionadas e transmitidas em bolhas algorítmicas cirurgicamente elaboradas. Eu lembro muito bem quando criei meu primeiro e-mail, nos meados dos anos 1990 e quando uma década depois, em uma aula da graduação, o professor anunciava o Google como um novíssimo site de busca. Naquele momento a informação parecia estar ao alcance de todas e todos. Ainda menino, estudante de uma escola pública na fronteira do RS com a Argentina, quando precisávamos fazer trabalhos escolares nos reuníamos, via de regra, na minha casa. Filho de professora, na estante da minha Madrinha tinha a Barça, a enciclopédia que reunia todo conhecimento científico, tudo que por ventura precisássemos para o trabalho da escola estava ali naquela coleção de livros! Esses dois momentos estão intimamente relacionados e respondem à questão: Nas últimas duas décadas a Internet nos apareceu como a democratização do conhecimento e da informação. Se lá na fronteira, há três ou quatro décadas, eu e meus colegas tivéssemos acesso à Web, todas e todos teríamos igualmente acesso ao conhecimento e à informação e não precisaríamos mexer nos livros da estante. Essa tendência, contudo, não foi exatamente o que aconteceu. Pelo contrário, parece que hoje, na medida em que se amplia o acesso, se amplia também uma espécie de seleção, de filtro pelo qual passa a informação até chegar até cada um de nós: e o nome disso é algoritmo. Ele é um artifício da inteligência informacional que decide e determina antes que saibamos ou queiramos, o que veremos, saberemos, quereremos ou odiaremos. Um caso exemplar disso está no filme “Privacidade Hackeada”. Redes sociais criam, sem que percebamos, um teste de nossa personalidade com base em cinco principais sentimentos: abertura a experiências, responsabilidade, extroversão, agradabilidade e irritabilidade. Em conjunto, esses traços dividem as pessoas em diferentes tipos de personalidade. O algoritmo é extremamente preciso. Com dez ingênuas curtidas nossas a postagens de nossos amigos ele é capaz decifrar o tipo de pessoas que somos, com mais probabilidade de acerto que nossos colegas de aula ou de trabalho; com 150 curtidas ele sabe mais sobre nós do que nossos pais; e com 300 despretensiosas curtidas ele compreende melhor nossa personalidade que nossa ou nosso parceiro (quiçá nós mesmos!). Isso sem considerar que nosso rastro digital é muito mais amplo do que apenas likes ou deslikes. Assim, toda e qualquer informação que nos chega, ou não chega, tem por base essa triagem digital chamada algoritmo. Não vemos tudo, como a internet fazia parecer no início, mas apenas aquilo que o nosso algoritmo selecionou para nós, formando uma verdadeira bolha. Aquela promessa de mundo digital irrestrito e totalmente acessível que sonhamos está amputado por um pequeno recorte que emoldura as informações que a nossa própria preferência ou repugnância configurou. Somos, neste cenário, mais desinformados e menos conhecedores do que os leitores da Barça dos anos 70 e 80. Vemos o mundo por uma fresta pensando que vemos o mundo todo! Só nos aparece nas redes sociais aquilo que, sem que percebamos, está configurado para nos aparecer. Os algoritmos dessas redes são como um buraco no chão, quanto mais fundo mergulhamos nelas mais fechada é a visão que temos do céu, embora sempre pensemos que aquele pequeno pedaço é o céu inteiro. A promessa da sociedade do conhecimento e da informação se realizou de modo inverso, vivemos em bolhas de desinformação e de uma ignorância artificial, principal característica da sociedade do algoritmo. O poder político nessa sociedade é exercido pelos que detém o controle das plataformas, das bigtechs. É contra elas que militamos, por isso a importância da sua regulamentação.



3-Com o advento do Chat GPT e do uso popular das diversas ferramentas de IA, as pessoas com acesso à internet e a dispositivos compatíveis, tem experimentado diversas possibilidades de uso. Como o professor enxerga essa popularização da tecnologia e como seus usos no mundo da política podem induzir os eleitores ao erro?

Essas inteligências artificiais não podem ser compreendidas separadamente das suas estruturas organizativas. As bigtechs tem interesses econômicos em fazer uma commodity parecer informação. Elas se popularizaram justamente por serem um produto à venda no mercado e portanto produz mais lucro na medida em que é mais consumido. as possibilidades de uso são em verdade uma commoditização dos usuários. O uso político dessas ferramentas estará condicionado, por todas essas razões, aos interesses econômicos dessas gigantes da tecnologia. Quanto ao induzimento ao erro decorrente da influência das tecnologias da informação e da comunicação, também não estamos diante de algo inédito. Nos detendo especificamente nas tecnologias digitais e sua crescente popularização a partir do final dos anos 2000, já podemos identificar vários casos que servem de exemplo. Em novembro de 2008, os Estados Unidos elegeram como Barack Obama quando mais da metade do eleitorado admitiu ter usado a internet para se engajar nas eleições. Três quartos dele declarou voto em Obama. Em dezembro de 2010, uma onda de protestos e de revoltas contra governos ditatoriais de países árabes do Oriente Médio e da África tiveram como gatilho as Redes Sociais. A Primavera Árabe disparada pelo Facebook transformou-se, logo depois, num outono árabe e, tempos depois, em um frio inverno árabe. O falso e artificial calor das ruas e a abstração das demandas impulsionadas pelos algoritmos mostraram-se ao seu final em pesadelo. Revoltas em países sem nenhuma tradição democrática foram deliberadamente impulsionadas por interesses econômicos financiados por bigtechs aliadas às democracia burguesas do Ocidente. No Brasil, o Junho de 2013 teve também seu estopim nas redes sociais, mas as suas consequências, 7 anos de golpe e governos ilegítimos, são sentidas na vida concreta de trabalhadores e trabalhadoras até os dias de hoje. O Brexit, a eleição de Trump e Jair Bolsonaro são todos casos típicos desses impulsionamentos algorítmicos. Os filmes “O dilema das redes” e “Privacidade Hackeada” ilustram muito bem essas distopias políticas. A indução ao erro (e o próprio “erro”) é, portanto, em síntese, uma commodity que resulta de interesses muito bem definidos: os do grande capital e sua nova “arminha de brinquedo”, as redes sociais.



4-Que medidas o Professor acredita que precisam ser tomadas por indivíduos, plataformas e pelo governo brasileiro para prevenir a disseminação de fake news?

Essa resposta é muito simples na minha concepção: a regulamentação das redes sociais.

Em relação à proteção de dados e da privacidade, a regulamentação pode assegurar que os dados pessoais dos usuários sejam protegidos, prevenindo abusos e uso indevido pelas bigtechs. Políticas institucionais regulatórias podem ajudar a combater a propagação de fake news, desinformação e teorias da conspiração, promovendo um ambiente de informação menos inseguro. Regras claras podem ajudar a prevenir e responder a crimes cibernéticos, como assédio, bullying, e outras formas de violência digital. Em especial, a regulamentação pode exigir maior transparência das plataformas em relação a como seus algoritmos funcionam e como decisões de moderação de conteúdo são tomadas. Com isso, pode-se estabelecer obrigações legais para que as redes sociais sejam responsáveis pelo conteúdo que circula em suas plataformas pode incentivar uma maior vigilância contra conteúdos prejudiciais. Como consequência, a regulamentação pode prevenir a manipulação eleitoral e a interferência em processos democráticos, mesmo em seu sentido burguês, garantindo que o debate político público online seja mais equilibrado e minimamente transparente.

 

5-O Professor tem realizado forte militância política na internet, pelo Youtube, Tik Tok, etc. Nos conte um pouco sobre como começou esse trabalho.

Pois então, atuo nas redes desde sempre. Tinha Orkut e usava ele politicamente. O canal do YouTube é de maio de 2008. Minha conta no Twitter é de janeiro de 2010, mesmo ano da conta do Facebook. Na pandemia, em meados de 2020, criei um perfil no Instagram e no TikTok. Nenhuma delas tem caráter apenas pessoal ou privado. Minha inspiração vem dos Velhos Renanos: toda atividade política deve ser pública ou não será. Nela, é fundamental a ocupação de todos os espaços: nas ruas, nas redes, nos tribunais, nos corredores, nos auditórios, em todas as instâncias da vida social. É fundamental também ter claro as possibilidades de cada espaço. Há momentos e meios mais adequados para formação política, para agitação e propaganda, para divulgação, para criação e para embates e confrontos. Nesse sentido, tenho usado o Youtube para essa militância. Até 2020 o canal servia como um repositório de conteúdo didático pedagógico, de apoio aos conteúdos das aulas. Desde lá, o Canal passou a ser alimentado com muito mais frequência e tem crescido bastante. São mais de vinte mil seguidores e o Chimarrão Maarxista, aos sábados e domingos pela manhã reúne mais de cem pessoas simultaneamente para algumas horas de conversa e formação ao vivo. Há todo tipo de público, desde gente sem qualquer formação acadêmica, passando pelo público universitário (professores e estudantes) até pessoas comuns da classe trabalhadora. Repito com frequência que não sei dizer o que essas pessoas aprendem por lá, mas, contrariamente, tenho a mais absoluta convicção do quanto eu mesmo aprendo nas trocas com o chat. Como forma de divulgação eu utilizo o Instagram, o perfil tem perto de 5 mil seguidores, e o TikTok com cerca de 117 mil seguidores. Parte substanciosa da militância política hoje ocorre nas redes sociais e por essa razão é fundamental ocuparmos esses espaços. A classe trabalhadora tem conta nessas redes e considero uma tarefa política oferecer conteúdo nessas plataformas, no sentido de disputar esses espaços.


6-Como entende a militância digital? Acredita que o campo progressista está atrasado em relação a isso, ou entende esse processo como algo natural de maturação da disputa política nas redes?

Creio que a primeira parte já esteja parcialmente respondida e concordo que o campo progressista ainda esteja atrasado nesse campo. Mais que isso, não só atrasados, mas também militando em um campo que é hostil às nossas concepções políticas. De forma geral, a esquerda sofre do que tenho denominado como “MorfoNecroFobia”, o medo de perder a velha forma. Uma espécie de ortodoxia mórbida, equivocada, tosca. Uma aversão a formas novas de militância, agitação e formação política. Um receio de que cedendo a inovações vá transformar-se em algo distinto do que se é essencialmente. Com isso, o campo da esquerda age de forma hostil a inovações, novidades e novas invenções. Essa morfonecrofobia acarreta anacronismos, hesitações e aversões a mudanças necessárias para o trabalho político. Em 2013, por exemplo, a direita se movia confortavelmente nas redes e nós, do campo progressista, sequer sabíamos o que significava shadowban, algoritmos e hashtags. Comemos poeira por anos por conta disso. Hoje, esse cenário tem mudado significativamente, até os mais conservadores têm se convencido da importância da virtualidade na vida política dos partidos, dos sindicatos, dos movimentos sociais e da militância individual. Ressalto também que a preocupação dos mais conservadores não é desprezível, é preciso cautela no trato com a relação entre política e virtualidade. As redes sociais fazem com que saibamos e nos preocupemos mais com coisas longe de nós  do que com problemas concretos do mundo à nossa volta. Como já mencionado anteriormente, as plataformas de redes sociais, as chamadas Big Thecs muitas vezes utilizam algoritmos que priorizam conteúdos que são mais propensos a gerar engajamento e assim a informação vira uma mercadoria. Isso pode levar à exibição de notícias ou eventos globais, muitas vezes mais sensacionalistas, em detrimento de notícias locais ou questões mais próximas. Os usuários podem escolher seguir contas e páginas que se concentram em assuntos globais, celebridades ou eventos distantes. Isso cria uma bolha informativa que destaca mais o que está acontecendo longe do que no entorno imediato. A natureza digital das redes sociais pode criar uma sensação de distância emocional em relação aos problemas locais. As pessoas podem ter a sensação que têm menos controle ou impacto sobre questões próximas, levando-as a se concentrar em questões globais que parecem mais urgentes ou que geram mais discussões, embora não sejam diretamente relevantes para suas vidas diárias. As consequências dessa distorção não são menos perigosas. Focar mais em problemas globais pode levar à desconexão com questões locais e com a comunidade imediata. Isso pode impactar a participação política direta e o envolvimento em problemas que afetam concretamente a qualidade de vida das pessoas. A atenção excessiva a eventos distantes pode levar a discussões superficiais sobre problemas complexos, sem a compreensão aprofundada das implicações locais desses problemas. Para mitigar essas consequências, penso que a única forma seja uma reconexão com as formas históricas de organização da classe trabalhadora: os partidos, os sindicatos, os movimentos sociais, as associações comunitárias, buscando ciência tanto dos problemas globais quanto das questões locais. E isso envolve esforço, organização, consciência crítica do mundo e do impacto das redes sociais nas nossas percepções e prioridades. Caso contrário, continuaremos vivendo uma realidade distorcida, cheia de curtidas, mas sem nenhum engajamento com o mundo real.


7-Para encerrar, como enxerga a atuação do governo Lula em relação a presença nas redes?

Muitos comparam o governo Lula a outros governos pretéritos da América Latinha, em especial o governo de Chaves, que se comunicava diretamente com a população. Acontece que o governo Lula não é um governo de esquerda, é um governo nitidamente social-democrata de cariz econômico keynesiano. Lula é um político popular, um dos maiores estadistas vivo do mundo, mas não é um líder populista e o próprio Lula parece saber disso. Governa a partir da institucionalidade ( das instituições burguesas de governança) e não a partir de um personalismo performático centrado na sua figura. É um democrata, no melhor sentido do termo. Aquele no qual se concebe a democracia dentro dos limites da legalidade, da impessoalidade e do pluralismo político. Nesse sentido, o uso das redes sociais, da tecnologia digital no seu governo atenta e restringe-se aos limites legais de sua utilização. Os críticos a esta posição são aqueles que defendem que o governo deve ter uma atuação mais incisiva no mundo virtual. Talvez por atribuírem a este mundo um peso, na vida social, que ele não tem. Mais do que isso, a vida dentro das redes sociais parece distorcer completamente a nossa percepção da realidade e isso, como mencionei na primeira resposta, é extremamente deletério para a democracia. A gente começa a saber mais e achar mais importante o que acontece nos outros estados do país e não na cidade em que a gente mora. A gente começa a se preocupar mais com a situação da Argentina do que com a associação do bairro em que a gente mora. Passamos a saber mais sobre os conflitos na Ucrânia e em Gaza do que sobre os problemas estruturais da cidade em que a gente mora. Sabemos quem é o presidente do Supremo e não sabemos o nome do presidente da nossa Câmara de vereadores. Talvez a razão disso seja justamente medir a vida social e concreta a partir daquela que vivemos dentro das redes sociais. O governo Lula claramente afasta-se desse tipo de distorção da realidade. A preocupação de Lula e de seu governo é com problemas concretos da situação concreta da classe trabalhadora. Um governo reformista, limitado, ordinário, mas diante do abismo do fascismo por que passamos recentemente no Brasil, isso já é, do ponto de vista imediato, suficientemente revolucionário. 


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