O conhecido golpe de 1º de abril de 1964 não começou a ser arquitetado em março daquele ano, pelo contrário, se olharmos com atenção, podemos perceber que já há investidas em sua direção desde mais de uma década antes. Em outubro de 1950, Getúlio Vargas vence a eleição e volta ao governo pelo voto popular com 48,7%. O retorno de Getúlio ao poder desagradou profundamente as elites econômicas que acreditavam ter se livrado de um governante com forte apoio popular, eleito por um partido trabalhista, o PTB, e consagrado por uma política de aguda digestão moral da pobreza.
Ouve-se
dizer que Lacerda mencionava que Getúlio não podia sequer ser candidato. Se fosse,
não poderia ser eleito, se o fosse, não poderia tomar posse, se tomasse não
poderia governar. E essa foi mesmo a tônica da eleição, da posse e dos
primeiros anos do governo de Getúlio. Nunca teve sossego, o golpe sempre esteve
à espreita. A expressão “mar de lama” era largamente utilizada pelos opositores
do presidente Getúlio Vargas para designar a corrupção que teria caracterizado
seu segundo governo. As tentativas de derrubá-lo nunca cessaram. Em agosto de
1954 o velho caudilho ofereceu seu corpo suicidado e martirizado para deter o
golpe então em curso. Adiou. Diante daquela comoção popular não havia clima
político para concretizar um golpe contra a classe trabalhadora.
Mais
adiante, entre 25 de agosto e 7 de setembro de 1961, Leonel Brizola comanda a
Campanha da Legalidade contra uma tentativa dos ministros das Forças Armadas de
veto à posse de Jango, automática e constitucional, decorrente de uma carta de
renúncia de Jânio Quadros, provavelmente escrita depois de uma forte bebedeira.
A Campanha teve sucesso e mais uma vez a concretização do golpe em curso foi
adiado.
Assim,
ao tentarmos compreender o “Golpe de 64” não podemos prescindir de um
escrutínio minucioso de suas distintas “fases” (anteriores e posteriores) que
percorrem um tempo histórico de aproximadamente 18 anos: eleição democrática de
Getúlio em 1950, seu suicídio em 1954, a Campanha da Legalidade em 1961, o
Golpe propriamente dito em 1964 e seu recrudescimento, com o Ato Institucional
nº 05, em dezembro de 1968.
Creio
que, pelas mesmas razões, para compreendermos o golpe em marcha no Brasil nesses
meados de 2022 devemos retroceder até a eleição de Dilma Rousseff em outubro de
2010. Para que cada fase dessa análise ganhe contornos conceituais tomo de
inspiração a criativa nomenclatura criada pelo jornalista conservador Elio
Gaspari ao nomear as distintas fases da Ditadura Militar-Empresarial decorrente
do golpe de 1964: “A ditadura envergonhada”, enquanto ela não se assumia como
tal; “A ditadura escancarada”, sua fase mais brutal; “A ditadura derrotada”
pelas eleições de 1974; “A ditadura encurralada” pela abertura política e “A
ditadura acabada” pelo governo de transição do general Figueiredo entre 1978 e
1985.
Chamo
de “golpe encapsulado” o tempo decorrente entre a primeira eleição de Dilma e
os movimentos de junho de 2013. A partir daí denomino de “golpe edulcorado” o
interstício temporal que pinta o golpe com as cores falsamente benévolas da
revolução colorida em curso no Brasil. Em 2016, com a derrubada de Dilma, num
golpe sórdido, midiático, parlamentar, misógino, “com Supremo e com tudo”, o
impeachment toma os contornos de um “golpe legalizado”. Dois anos depois, com a
eleição ilegítima de um títere dos valores sociais mais deletérios, um
espantalho miliciano com cérebro de chimpanzé, tem-se o “golpe
institucionalizado” em toda sua plenitude. Quem não for homem, branco, social e
economicamente bem situado compreende com muita facilidade qual o sentido da
eficácia do funcionamento das instituições no transcurso desse golpe atualmente
em marcha.
No
instante mesmo da eleição de Dilma Rousseff à sucessão dos dois governos de
Lula iniciou-se o “golpe em câmera lenta”, nas palavras de Vladimir Safatle.
Obviamente sempre houve conspirações contra um governo que a despeito dos
ganhos financeiros da burguesia, sempre demonstrou uma aguda sensibilidade com
as camadas mais pobres da sociedade, com os trabalhadores, com a educação, com
a democracia, com a institucionalidade. No entanto, como alerta Alysson Mascaro
em “Crise e Golpe”, o golpe foi quantitativo e não qualitativo na medida em que
se trata materialmente de um “rearranjo no seio da concorrência entre frações
do capital internas e internacionais” sumariamente compreendido como “um golpe
de classe burguês contra as classes trabalhadoras” (MASCARO, 2018. p. 91). Explico.
De conjunto, as mesmas forças que atuavam nos interstícios do poder continuaram
sua atuação. O que alterou substancialmente foi a relação entre capital e trabalho,
entre burguesias (mercado financeiro, agronegócio, ramo industrial) e a classe
trabalhadora. É um modelo de golpe que “mais atualiza suas possibilidades que
propriamente altera suas bases” (ibidem). Em resumo, o que mudou não foi a
qualidade do regime político econômico, mas sim, a quantidade de mais valor da
força de trabalho que as burguesias extraem da classe trabalhadora, via
reformas trabalhista e previdenciária, austericído fiscal e corrupção
normativa, isto é, normatizada por aparatos legais antidemocráticos formalmente
legais e essencialmente corruptos, pois corrompem o pacto burguês democrático.
O
golpe ali já está latente, mas encapsulado, portanto, não visível! Só o tempo
decorrido desde então nos permite vê-lo com nitidez. Havia já desde então um
golpe em curso no Brasil. No entanto, ele eclode de seu casulo com as
manifestações de junho de 2013. Ali o golpe aparece para o público em todo seu
esplendor, mas edulcorado com as tonalidades benévolas de uma revolução
colorida pretensamente espontânea e apartidária, “pelo Brasil”, sem bandeiras. Ora,
sou de uma geração que lutou para tê-las, tenho 51 anos e vivenciei na escola
os anos derradeiros da Ditadura civil militar, quando não eram possíveis os
direitos políticos. Portanto, sempre entendi como temerárias as ações e os
discursos da narrativa chauvinista, ufanista e messiânica dos movimentos
iniciados naquele junho de 2013.
Foram
precisos três anos de maturação para que o golpe edulcorado pela revolução
colorida incorporasse um cariz de legalidade. O gângster que presidia a Câmara
soube identificar o momento mais favorável para pautar a votação do impeachment
da presidenta Dilma, eleita democraticamente e derrubada por um golpe
legalizado pelas instituições que sempre funcionaram, se bem que somente em
favor de quem lucra com a mais valia extraída da classe trabalhadora. É
simbólico que o mentor do golpe, e seu principal beneficiário, assumindo o
cargo da presidência, seja um consagrado professor de Direito Constitucional. O
golpe está então legalizado, é saudado pelas classes dominantes, pela mídia
burguesa, venal, de cativeiro, pode-se então chama-lo de impeachment. Um crime
perfeito!
No
entanto, o serviço ainda não está acabado, é preciso ainda institucionalizá-lo,
recolocar a democracia nos trilhos, deslizar de um governo de transição, para
um governo que tenha votos para chamar de seus. O golpe institucionaliza-se em
2018 com a eleição de alguém disposto a implantar a agenda ultraliberal, internamente
tocada pela lúmpem burguesia nacional, associada e à serviço do capital
internacional. Reconheçamos que não foi uma tarefa simples. Para tanto, as
classes dominantes, à custa do sequestro das Instituições, prenderam
inconstitucionalmente o candidato que as pesquisas sinalizavam na época como
vitorioso, impediram-no até mesmo de falar, com medo de que sua voz, rouca e
perigosa, reverberasse nos ouvidos da classe trabalhadora fazendo-a votar no
candidato comprometido com interesses populares. O juiz responsável pela
prisão, recebeu, como prêmio, o cargo de Super Ministro da Justiça no governo
do candidato beneficiado com seus julgamentos espúrios. Tanto o ex-juiz, como
suas sentenças e o próprio processo, tempos depois, foram considerados
suspeitos e sem validade jurídica pela Suprema Corte brasileira, decisões essas
confirmadas por tribunais internacionais de justiça.
Não
houve eleição em 2018. O que ocorreu foi um protocolo eleitoral chancelado pelo
STE a despeito de suas ilegalidades. Nesse sentido, somos governados atualmente
por um governo sem nenhuma legitimidade, decorrente de um processo eleitoral
eivado de ilegalidades. E tudo isso dentro do campo institucional. É por isso
que denomino essa fase de golpe institucionalizado. No atual momento da
sociedade brasileira, muito se tem discutido se as Instituições estão
funcionando no sentido de garantir a democracia ou se estão capitulando frente
a uma investida contra as garantias democráticas, mesmo que formais e burguesas.
Alerto
aqui que muitos intelectuais tem a impressão de que elas estão funcionando
porque eles não figuram entre uma das quase um milhão de vítimas da Covid-19;
porque não são profissionais da saúde que trabalham sem EPI nos postos de saúde
pelo Brasil, porque suas avós ou netas não moram num acampamento do MST, ou
numa aldeia indígena, achacados pela retórica de ódio do governo; porque não são
professores da escola básica obrigados à precariedade do ensino remoto ou ao
temerário retorno da voltas às aulas presenciais; porque seus filhos ou filhas
não são balconistas no setor comerciário severamente expostos às perdas de
direitos trabalhistas, porque não ficaram presos sem provas por 580 dias,
porque não foi seu neto ou neta que morreu sem ter recebido de volta o tablet
tomado por um juiz parcial e corrupto; porque não depende do auxílio
emergencial para se (sub) alimentar, porque não foi condenado por “atos
indeterminados”. Do patamar de onde esses intelectuais veem o mundo as
Instituições parecem mesmo estar funcionando. Falo “parecem” à luz da história,
em outros tempos as sociedades demoraram em perceber a corrosão das
Instituições democráticas, e, quando perceberam, já era tarde demais! A Itália,
por exemplo, levou 5 anos para imergir no fascismo; a Alemanha mergulhou nele
em apenas 5 meses. E essa diferença se deu porque a crise nos anos 30 era mais
aguda do que na década anterior. Hoje, estamos imersos numa aguda crise
humanitária, econômica e política. A profundeza do nosso abismo é que ditará o
ritmo que nos levará à próxima fase do golpe em curso, ao fascismo aberto.
As
Instituições pararam de funcionar desde muito tempo! Pontualmente, quando um
deputado do “baixo clero” elogiou um torturador, facínora e abjeto, e não saiu
daquela Casa preso. As Instituições hoje apenas reagem, tentando se reerguer
das ruínas que se tornaram. O que os intelectuais burgueses chamam de
funcionamento pleno das Instituições democráticas, em verdade, não se trata da
ação delas cumprindo suas prerrogativas, de suas atribuições (justiça, saúde,
educação, segurança), o que elas fazem é política! E o fazem em favor daqueles
que as aparelharam ao seu favor e benefício. Assim, do ponto de vista da
democracia, elas sobrevivem artificialmente, como se estivessem sufocadas pelo
golpe em marcha.
Diante disso, uma pergunta: qual o próximo ato desse golpe em marcha no Brasil? Temos a oportunidade de interrompê-lo em 2 de outubro elegendo Lula no primeiro turno. A eleição de Lula em 2 de outubro será um primeiro degrau de uma longa escadaria que tentaremos subir nos próximos anos. Um virtual e possível próximo governo Lula terá novamente a tarefa de retirar o Brasil do mapa da fome. Possibilitar à classe trabalhadora sua reorganização, promover o reascenso das massas, autônomas e emancipadas para decidirem os rumos da política econômica. Caso contrário, mergulharemos num abismo sem fim cuja perspectiva é imprevisível. Mesmo em um possível segundo turno há o perigo de uma escalada de violência civil sem precedentes. Se for isso, não faço ideia de qual verbo no particípio passado nominará o próximo ato do golpe em curso. Mas a eleição de Lula no próximo 2 de outubro certamente imporá um intercurso ao golpe em marcha, e aí, talvez, poderemos denominar o próximo ato de golpe interrompido, cancelado, derrubado. Para marcar posição, precisamos antes estar vivos, e nossa vida, nesse momento, depende da eleição de Lula em primeiro turno no próximo dia 2 de outubro.
Publicado (com algumas alterações) na Revista Úrsula em outubro de 2022
https://revistaursula.com.br/politica/como-interromper-o-golpe-em-marcha-no-brasil/