quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Diálogo com Edward Said

Edward Wadie Said nasceu em 1º de novembro de 1935 em Jeruzalém na Palestina e morreu em 25 de setembro de 2003 em Nova Yorque.




SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do ocidente. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras. 1990 (1996) (original 1978).
Tomando o final do século XVIII como ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o, em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. Descobri que neste caso é útil empregar a noção de discurso de Michel Foucault, tal como é descrita por ele na Arqueologia do Saber e em Vigiar e punir, para identificar o orientalismo. A minha alegação é que, sem examinar o orientalismo como um discurso, não se pode entender a disciplina enormemente sistemática por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente durante o período pós-Iluminismo. Além do mais, o orientalismo tinha uma posição de tal autoridade que eu acredito que ninguém que escrevesse, pensasse ou atuasse sobre o Oriente podia fazê-lo sem levar em conta as limitações ao pensamento e à ação impostas pelo orientalismo. Em resumo, por causa do orientalismo, o Oriente nao era (e não é) um tema livre de pensamento e de ação. Isso não quer dizer que o orientalismo determine de modo unilateral o que pode ser dito sobre o Oriente, mas que ele é toda a rede de interesses que inevitavelmente faz valer seu prestígio (e, portanto, sempre se envolve) toda vez que aquela entidade peculiar, “o Oriente”, esteja em questão. Como isso acontece é o que este livro tenta demonstrar. Tenta também mostrar que a cultura européia ganhou em força e identidade comparando-se com o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo subterrânea, clandestina. (p.15)

O cientista, o erudito, o missionário, o negociante ou o soldado estavam no oriente, ou pensavam nele, porque podiam estar lá, ou podiam pensar sobre ele, com muito pouca resistência da parte do oriente. Sob o título geral de conhecimento do Oriente, e com a cobertura da hegemonia ocidental sobre o Oriente sobre o período que começa no final do século XVIII, surge um complexo Oriente adequado para estudo na academia, para exposição no museu, para reconstrução no departamento colonial, para ilustração teóricas em teses antropológicas, biológicas, lingüísticas, raciais e históricas sobre a humanidade e o universo, para exemplos de teorias econômicas e sociológicas de desenvolvimento, revolução, personalidade cultural e caráter nacional ou religioso. Além disso, o exame imaginativo das coisas orientais estava baseado mais ou menos exclusivamente em uma consciência européia soberana, de cuja inconteste centralidade surgiu no mundo oriental, primeiro de acordo com idéias gerais sobre quem e o que era oriental, depois segundo uma lógica detalhada governada não apenas pela realidade empírica, mas por um conjunto de desejos, repressões, investimento e projeções. (p. 19)

Pois, se for verdade que nenhuma produção de conhecimento nas ciências humanas pode jamais ignorar ou negar o envolvimento de seu autor como sujeito humano em suas próprias circunstâncias, deve então ser verdade também que, para um europeu ou um americano que esteja estudando o Oriente, não pode haver negação das circunstâncias mais importantes da realidade dele: que ele chega ao Oriente primeiramente como um europeu ou um americano, e depois como indivíduo. (p. 23)

Portanto, o orientalismo não é um mero tema político de estudos ou campo passivamente refletido pela cultura, pela erudição e pelas instituições; nem é uma ampla e difusa coleção de textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo de algum nefando complô imperialista “ocidental” para subjugar o mundo “oriental”. (...) Com efeito, o meu verdadeiro argumento é que o orientalismo é – e não apenas representa – uma considerável dimensão da cultura político-intelectual, e como tal tem menos a ver com Oriente que com “nosso” mundo. (p.24)

O orientalismo tem suas premissas na exterioridade, ou seja, no fato de que o orientalista, poeta ou erudito, faz com que o oriente fale, descreve o Oriente, torna os seus mistérios simples por e para o Ocidente. Ele nunca se preocupa com o Oriente a não ser como causa primeira do que ele diz. O que ele diz e escreve, devido ao fato de ser dito e escrito, quer indicar que o orientalista está fora do Oriente, tanto existencial como moralmente. O principal produto dessa exterioridade é, claro, a representação. (...) O que se deve procurar são os estilos, figuras de linguagem, os cenários, mecanismos narrativos, as circunstâncias históricas e sociais, e não a correção da representação, nem a sua fidelidade a algum grande original. A exterioridade da representação é sempre governada por alguma versão do truísmo segundo o qual se o Oriente pudesse representar a si mesmo, ele o faria; visto que não pode, a representação cumpre a tarefa para o Ocidente. [Não podem representar a si mesmos; devem ser representados. Marx em o 18 Brumário] (p. 32-33)

O Oriente que aparece no orientalismo, portanto é um sistema de representações enquadrado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na cultura ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidental. Se esta definição o orientalismo parece mais política do que outra coisa, isso acontece apenas porque acredito que o próprio orientalismo foi um produto de certas forças e atividades políticas. O orientalismo é uma escola de interpretação cujo material, por acaso, é o Oriente, suas civilizações, seus povos e suas localidades. Suas descobertas objetivas – obra de inúmeros estudiosos devotados que editaram os textos e os traduziram, codificaram gramáticas, escreveram dicionários, reconstruíram épocas mortas, produziram cultura positivamente verificável – são e sempre foram condicionadas pelo fato de que as suas verdades, como qualquer verdade transmitida pela linguagem, estão corporificadas na linguagem, e o que é a verdade da linguagem, disse Nietzsche uma vez, senão “um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos – em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e embelezadas poética e retoricamente e que, após muito uso, parecem firmes, canônicas e obrigatórias para um povo: as verdades são ilusões sobre as quais já esquecemos que isso é o que elas são.” [Friedrich Nietzsche, “On truth and lie in na extra-moral sense”, em The portable Nietzsche, Ed. E trad. Walter Kaufmann (Nova York, Viking Press, 1954), p. 46-7. (p.209)

Assim, o orientalismo não é só uma doutrina positiva sobre o Oriente; é também uma influente tradição acadêmica (quando se faz referência a um especialista acadêmico que é chamado de orientalista), e uma área de interesses definida por viajantes, empresas comerciais, governos, expedições militares, leitores de romances e de relatos de aventuras exóticas, historiadores naturais e peregrinos para quem o Oriente é um tipo específico de conhecimento sobre lugares, povos e civilizações específicos. (...) É, portanto, correto dizer que cada europeu, no que podia dizer sobre o Oriente, era conseqüentemente um racista, um imperialista, e quase totalmente etnocêntrico. Algo da imediata mordacidade poderá ser retirado dessas etiquetas se lembrarmos além disso que as sociedade humanas, pelo menos as culturas mais avançadas, raramente ofereceram ao indivíduo qualquer coisa além de imperialismo, racismo e etnocentrismo para tratar com “outras” culturas. (...) O meu ponto de vista é que o orientalismo é fundamentalmente uma doutrina política imposta ao Oriente porque este era mais fraco que o Ocidente, que eliminava a diferença do Oriente com sua fraqueza. (p. 210)